quarta-feira, 18 de outubro de 2023

JAIR E LUÍS

Era uma vez dois meninos do mato,

Que moravam num sítio

Atrás de uma biboca;

Um arrancava palmito,

O outro, mandioca.


 

Um era de Glicério

E foi estudar em Eldorado,

Outro, de Garanhuns,

De caminhão foi pra São Paulo.


 

Um viveu entre quilombolas e guerrilheiros de esquerda,

Outro entre coronéis e donos de fábrica de aço.

Um sonhava com planos grandiloquentes de guerra,

Outro com greves, discursos e panelaços.


 

Um sonhava em não trabalhar mais marchando,

Outro sonhava em não trabalhar mais na linha de produção.

Os dois conseguiram virar deputados ensebando,

Sorvendo prazeres às custas da nação.


 

Um se arvorou em defender policiais, militares, padres e pastores;

O outro em defender operários, camponeses, discriminados, professores;

Mas o que seus asseclas ingênuos não percebiam

É que só a si mesmos eles satisfaziam.



Um foi preso por soltar uma bomba no Exército;

O outro foi preso pela Ditadura e pelo Moro;

Mas eram anjos na opinião de seu séquito

E quem discordasse entrava no couro!


 

Um com nome de salvador sagrado,

Outro com nome de molusco,

Envolveram corações nos tentáculos da idolatria

E cagaram uma nação que já há muito se contorcia.


 

Um gostava de jóias árabes, leite condensado e rachadinhas,

Outro, de triplex, pedalinhos, empreiteiras e caipirinhas.

Um odiava tomar vacina, tratar de emas e veados,

Outro odiava o capital, mas só o dos não cooptados.

 


Os dois provaram ao mundo

A dominação carismática de Max Weber

E jogaram num buraco bem fundo

A Suprema Corte de Rosa Weber,

 


Pois lá trabalha um careca soturno

Que fodeu com o primeiro,

E lá já trabalhou um negão sobranceiro

Que fodeu com o segundo.

 


E depois que todos foram traídos

E os dois aprenderam a agir como putas

(ou melhor, como rufiões combalidos),

O cinismo já tornara as esperanças mudas.

 


Popularidade baixa, os extremos se igualam,

E o começo do século vinte e um

Tanto ao começo do século vinte se compara,

Caricaturas de mau gosto num cartoon...


 

Aí estão os dois moleques bobos

Brincando de aparecer nos palquinhos

Enquanto se engalfinham seus amiguinhos tolos

Ficando cada vez mais ferrados e mesquinhos.




terça-feira, 23 de maio de 2023

FÉS

 

“Que a fé 'tá na mulher
A fé 'tá na cobra coral
Oh, oh
Num pedaço de pão.

A fé 'tá na maré
Na lâmina de um punhal
Oh, oh
Na luz, na escuridão.
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá (olêlê)”

Gilberto Gil – “Andar com Fé”

 

Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se veem”. (Hb 11.1)

 

 

Apanhar um pão de Santo Antônio,

Um cão doente benzido por São Francisco,

Um carro velho benzido por São Cristóvão,

Uma rosa de Santa Rita,

Uma rosa de Santa Teresinha,

Uma chave de São Pedro e São Cipriano,

Um vaso de espadas de São Jorge,

Um saco de balas de São Cosme e Damião,

Um acarajé de Iansã,

Uma pipoca de Omolu,

Uma pulseira do Senhor do Bonfim,

Uma pomba branca do Espírito Santo,

Uma pomba branca do opaxorô de Oxalá,

Um tridente de Exu,

Um tridente de Shiva,

Uma pena de pavão de Krishna,

Uma moeda de Lakshmi,

Uma presa de elefante de Ganesha,

Uma maçã de Idunn ou de Afrodite,

Uma toalha suada do apóstolo Valdemiro Santiago,

Uma porrada de paletó do pastor Benny Hinn,

Um gato da sorte japonês,

Um rosário católico,

Um japamala budista,

Uma roda de orações tibetana,

Um copo d’água magnetizado pelos espíritos evoluídos;

 

Pendurar pedidos em papeis no Akimatsuri

Ou despachá-los na barquinha com espelhos de Iemanjá;

 

Pendurar um quadro do anjo da guarda sobre a cama;

 

Acender uma vela pra Chaguinhas na Igreja das Almas dos Enforcados na Liberdade,

Mais uma pras 13 almas do Edifício Joelma no Cemitério da Vila Alpina;

 

Dançar na missa conga de São Benedito no Lardo do Paissandu;

 

Trazer ao pescoço uma figa, um trevo, um olho grego e uma carranca,

Uma estrela de Davi, um crucifixo e um hilal;

 

Mobiliar a casa de acordo com o Feng Shui;

 

Equilibrar no corpo o yin e o yang;

 

Fumar maconha ouvindo reggae com jamaicanos,

Trajando vermelho, amarelo e verde,

Cultivando o leão interior, vegetariano,

Cultuando uma extensa linha de reis etíopes;

 

Tomar a ayahuasca, aspirar o rapé

Com xamãs urbanos, fechando os olhos

Pra ver índios, araras e constelações caleidoscópicas

Mergulhado em sensação orgástica;

 

Devorar seres humanos cada vez mais jovens em orgias,

Devorar comidas cada vez mais caras em banquetes,

Pra sentir transcender todo poder humano;

 

Chicotear-se na Ashura, na Sexta-Feira Santa;

 

Pintar ovos na Páscoa;

 

Emular os mortos-vivos atormentados no Halloween,

Conversar com seus túmulos no Dia de Finados,

Oferecer-lhes missas votivas no sétimo dia de sua morte

E no primeiro mês e no primeiro ano,

Guardar suas fotografias para que seus sorrisos não se apaguem das mentes dos vivos;

 

Tecer guirlandas no Advento do Natal;

 

Pensar positivo, bater na madeira três vezes, acordar com o pé direito, ler livros de coaching e autoajuda;

 

Desprender-se paulatinamente dos bens materiais, da carne, do ego;

 

Gastar um fim de semana no voluntariado;

 

Ver todas as eras como um grande desfile de Carnaval;

 

Escalar cada um dos ramos da árvore das dez sefirot da Cabala,

Dos trinta éons do neoplatonismo, dos degraus da escada de Jacó;

 

E na dúvida do sentido da vida e no leito da espera da morte,

Tu finalmente verás a Deus?





quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

ODE ÀS FADAS (ou O FIM DO BOÊMIO)

“As fadas… eu creio n’ellas!

Umas são moças e bellas,
Outras, velhas de pasmar…
Umas vivem nos rochedos,
Outras, pelos arvoredos,
Outras, à beira do mar…

Algumas em fonte fria
Escondem-se, enquanto é dia,
Sáem só ao escurecer…
Outras, debaixo da terra,
Nas grutas verdes da serra,
É que se vão esconder…

O vestir… são taes riquezas,
Que rainhas, nem princezas
Nenhuma assim se vestiu!”

ANTERO DE QUENTAL

  

                            I

 

Em leitos perfumados de rosáceo sonho,

De gozo se abrem as pétalas das mãos.

Acariciam o ser, o corpo, a alma,

Teus olhos me fazem cristais pelo chão.

 

Esparges luz em tua pele plenilúnia,

Beijas orvalhos com tua boca de sol,

Teus seios, carpas silvestres carmesins,

Encontram meus lábios, sedento anzol.

 

 Teu ventre palpitante de volúpias

Enterra minha ventura ou desventura

Em delícias, nas palavras que soluças

Em meus ouvidos que te buscam como cura.

 

Mulher, fada, destino, ninfa,

Anjo de noites que dormem saciadas,

Espírito das flores, rios, pequenas vidas

Dos seres do ar que flanam suas asas!

 

Por que és tão bela quando ris,

Quando calas – secreta pérola,

Quando partes – flor-de-lis,

Quando danças – tenra libélula?

 

Por que enches meu dia de alegria:

Colibri, quetzal, faisão, quartzo, opala?

Por que enches minha noite de agonia:

Morfeu, Caronte, Perséfone, Ostara?

 

Mariposa-bruxa, mariposa-atlas

Que carrega o mundo nas costas,

Que faz a vida d’um homem dar voltas,

Que abre de Pandora a arca,

Rainha lepidóptera, borboleta-monarca!

 

Tu és como a musa que encanta Apolo,

Astarte que brilha na primeira hora da manhã,

Flora que acaricia mistérios ao branco do colo,

Erato e Euterpe das liras pagãs!

 

Viviane, Morgana, Sininho, Titânia,

Sortilégio, facho de luz, rosa-dos-ventos...

Fadinha, como dormes em paz tamanha

Dentro da tempestade dos meus pensamentos? 

 

II

 

És como nascida de novo.

E como ainda podes ser renascida

Das tuas primaveras destruídas,

Dos teus invernos solitários,

Dos outonos da tua vida?

 

Como podes ainda renascer bela

Quais belos verões de girassóis,

Qual porto sem naufrágios, sem atóis,

E tecer constelações de tua janela?

 

Como podes estender asas,

Fecundar flores, dar frutos, casas

A homens sem esperança e sem lar,

Àqueles que nem sabem amar?

Se te deitas com todos eles,

Tu mesma inda sabes amar?

 

Cartas, runas, pitonisas, vísceras de aves

Mo revelaram...

É mais difícil se libertar de muitos entraves

Se eles docemente te abraçaram...

 

“Arranca teu olho, tua mão, teu coração,

Se eles, em teu desejo tolo, te fazem pecar...”,

Já dizia o Mestre no férreo Sermão do Monte

Ao douto fariseu, ao pobre pastor sem nome.

Portanto vai-te, em noites desencantadas, te embriagar

Co’as outras fadas, as estrelas, o vento e seu carrilhão!

Eu permaneço aqui, penitente e insone...

 

Por que cavaste labirintos e petúnias em meu peito

E me prendeste a teu destino e a teu leito,

Se o tempo, indiferente, só escoa e avança,

Se meu amor só pode viajar contigo à distância?

 

III

 

Tique. Taque. Tique.

O tempo é implacável.

Então ouve

No que quer que isto implique:

 

Pelos meus olhos pelos meus poros

E pelos sonhos – claros ou ignotos,

Revives a pulsar como a própria vida

Com teu sorriso fácil de extasiar

Mas difícil de decifrar.

 

Teu olhar de amêndoas crestadas,

Teu corpo de muitas sendas,

Tua pele de calêndula,

Tu’alma de cestro ferido à invernada

É de sobrevivente de tempestades,

Como quem luta sobre as ondas

Sem deixar de ser nereida, dríade, náiade.

 

Oxum que se mira, Oiá que assombra,

Kuan Yin que abraça, Amaterasu sem sombra,

Vênus calipígia das espumas do mar,

Diana régia do lupino luar,

Freya ou valquíria a tonitruar,

Iara dos rios igarapés a jorrar

Que conduz o uirapuru a cantar.

 

Quero nos teus braços nos teus seios nas tuas ancas

Nos teus laços nos teus receios nas tuas danças

Me enrodilhar pareado com teus passos,

Acariciando estrelas nos teus cabelos

E ainda que sobrem só lampejos e traços

Destes doces melífluos novelos,

Que tu nunca mais te olvides,

Que tu nunca mais duvides

Da minha poesia a te guardar como selo.

 

IV

 

“As mariposa quando chega o frio
Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá
Elas roda, roda, roda e dispois se senta
Em cima do prato da lâmpida pra descansá

Eu sou a lâmpida

E as muié é as mariposa

Que fica dando vorta em vorta de mim

Todas noite só pra me beijá”.

                                   ADONIRAN BARBOSA

 

Quando descia do transporte gratuito

Para o baile da terceira idade,

No mesmo velho parque de damas, gamões e ludos,

Em que dava pipocas aos pombos da cidade,

Era um predador que agia sozinho,

Que ainda tomava das azuis pílulas,

Que ainda cuidava do impecável terno de linho,

Ensaiando o repertório de bandas estrídulas.

 

Marias, Auxiliadoras, Aparecidas, Conceições,

Lurdes, Fátimas, Teresinhas, Encarnações,

Renatas, Moniques, Melissas, Patrícias,

Anunciattas, Judites, Dalilas, Padilhas,

Passavam por seus braços nos mesmos salões

E por ele chegavam às raias das sevícias.

 

Compasso binário, ritmo sincopado,

Dois pra lá, dois pra cá, e dá uma rodadinha,

Conduz a dama, esconde-a do gavião frustrado,

Que ela é sua enquanto se enredar na fiada conversinha.

 

Algumas chegavam mais cedo aos encontros

– Mãos suadas, olhos irrequietos, represados corações – 

Outras nem compareciam, nem davam satisfações

– O toureiro mais se ofende quando o touro lhe faz de tonto – 

 

Aqui nem se lembra de quantas camas de pocilgas,

Dos filhos que mandou abortar,

Das malas de despedida,

Das madrugadas a vagar.

 

E depois quem sabe, uma cuba libre, uma meia de seda,

E ela se dispa de casacos, pudores e rendas,

E um mundo de descobertas rebente as cascas do ovo,

Até que amanhã a busca comece toda de novo...

 

V

 

O homem é só.

Foi jovem, cigano, boêmio.

Hoje é velho, desiludido, abstêmio.

O homem caminha só

Com seu catálogo de espécimes humanos,

Sorvendo taças já sem sabor

Nos bares e cafés da dor.

 

O homem deixa cair sua pasta de arrependimentos,

Seus óculos de ver demais,

Sua bengala de xingamentos,

Seu chapéu de feltro, memórias e tais,

Seu rancor dessas meninas de hoje que se riem,

Seu rancor desses meninos de hoje que não vivem,

E tão convicto da sua estranheza malfadada,

Que quando pela última vez caiu trôpego nas calçadas,

Os passantes acharam que sonhava com as fadas!

 




quinta-feira, 14 de outubro de 2021

O MURO

O Muro de Adriano
Separava a Britânia Romana
Dos bárbaros celtas do Norte.
O Danúbio e o Reno
Eram os muros de água da Germânia Romana
Que a separava dos vários bárbaros do Leste.
A Muralha da China
Protegia dos bárbaros mongóis do Norte.
O Muro das Lamentações
Foi o que restou da fúria romana sobre Jerusalém.
O muro de Jericó
Caiu com as trombetas dos hebreus de Josué.
O Muro de Berlim
Separava socialistas de capitalistas
(Como ainda o faz o muro das duas Coreias).
Os muros da Caxemira
Separam indianos de paquistaneses de chineses.
Os bantustões da África do Sul
Separavam negros de brancos de mestiços.
As Peace Lines da Irlanda do Norte
Separam católicos de protestantes.
O Rio Bravo e o Muro de Bush-Trump
Impedem que latinos roubem os serviços sociais dos ianques.
Os muros da Cisjordânia
Separam judeus de palestinos.
A Arábia Saudita, sunita,
Termina um muro que a separa dos xiitas do Iraque.
A Cidade Baixa e a Cidade Alta de Salvador
Separam ricos de pobres
(Como o faz o Muro da Vergonha da peruana Lima)
E o Muro de Roger Waters do Pink Floyd
(Esse do qual somos todos apenas mais um tijolo)
Separava da fúria idólatra dos fãs
E do universo insuportável do inconsciente.
Jamais deveis vos esquecer deste fato:
Construídos com cimento, ódio e ranger de dentes,
Os muros mantêm fora os bárbaros
E não lhes deixam ver a barbárie da nossa civilização.
Minhas retinas alongadas de míope
Jamais se esquecerão deste fato:
Sempre tem um muro.
Sempre tem.





segunda-feira, 20 de setembro de 2021

GETÚLIO VARGAS: CARISMA, RUPTURA E CONTINUIDADE

O vocábulo “demagogia” deriva do grego “demos” (“povo”) e “agogôs” (“liderar”). O conceito surgiu na antiga Atenas, em seu período clássico (séculos VI-IV a.C.), sendo levantado pela primeira vez por Platão de maneira pejorativa. Seu discípulo Aristóteles, na basilar obra “Política”, define-a como “o uso corrente da adulação e o mau uso da oratória para conquistar o público e para apoiar um dirigente político”. Ou seja, trata-se do inverso da própria lógica aristotélica – um sofisma ao invés de um silogismo; um conjunto de falácias, promessas falsas, bajulação, desvios de foco e palavras de efeito sem qualquer significado real, que seduz as grandes massas e recorre muito mais ao emotivo, passional e obscuro do que às propriedades racionais do ser humano.


A demagogia, portanto, está intimamente ligada aos interesses particulares de um pequeno grupo dentro de uma república, ou mesmo de uma monarquia constitucional, já que, não podendo fazer o mesmo uso da força que faria um tirano ou um rei absolutista, escora-se em grandes contingentes populacionais para coagir seus opositores.


Pode-se dizer que o termo está profundamente relacionado com o conceito de “populismo”. O professor Cas Mudde, da Universidade da Georgia (EUA), define populismo como uma ideologia rasa que considera que a sociedade se divide em dois grupos antagônicos, o ‘povo’ e a ‘elite corrupta’”. Entretanto, boa parte dos historiadores prefere aplicar este último vocábulo exclusivamente ao contexto histórico vivido pelo Brasil entre 1930-1964, o que corresponde à Era Vargas e ao primeiro período de redemocratização do país. Outros países da América Latina também viveram contextos parecidos, o mesmo se podendo dizer do período posterior, a ditadura militar num contexto de Guerra Fria.


O período político brasileiro denominado “República Populista” foi totalmente impregnado pela figura onipresente de Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), gaúcho de São Borja, com formação militar e jurídica, impregnado de ideais positivistas[1] e castilhistas[2], que ascendeu no cenário político passando de deputado estadual para federal, governador do Rio Grande do Sul e Ministro da Fazenda do Presidente Washington Luís – o mesmo que iria depor através da Revolução de 1930, pondo fim à Velha República do “Café-com-Leite”.


Getúlio assume o poder através de um Governo Provisório (1930-1934), entra em conflito aberto com os paulistas (Revolução de 1932), aceita a promulgação de uma nova Constituição democrática em 1934, sendo eleito de maneira indireta como Chefe do Executivo nesta ocasião. Através de mais um golpe de Estado, assume definitivamente como ditador antes que novas eleições diretas fossem convocadas, outorgando a Constituição autoritária de 1937, e se mantendo no poder desta forma até 1945, período que ficou conhecido como Estado Novo.


Sua deposição, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, estava em consonância como o novo ideal das democracias liberais que venceram o conflito, em detrimento dos regimes autoritários e ufanistas.


Mesmo assim, é instigante observar que o presidente eleito para 1946 é seu Ex-Ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra, o qual convoca nova Assembleia Nacional Constituinte, que termina por promulgar nova Constituição democrática para o Brasil nesse mesmo ano. E mais instigante ainda: lançado candidato em 1950, Getúlio Vargas é eleito com maioria esmagadora de votos e retorna ao poder, desta vez por vias democráticas, ali permanecendo até seu emblemático suicídio com um tiro no peito no Palácio do Catete, em 24 de agosto de 1954, já totalmente premido pelos protestos populares oriundos do atentado a bala contra seu opositor Carlos Lacerda.


O fantasma de Getúlio, não obstante, continuaria a rondar a política nacional por muito mais tempo. Seu aliado em Minas Gerais, Juscelino Kubitschek de Oliveira, é eleito Presidente da República para o período de 1956 a 1961. Segue-se então o curto período de governo de Jânio Quadros, e o Vice que o sucede é um Ex-Ministro do Trabalho de Vargas, João Goulart, o Jango, que também incendeia o país com pautas sindicalistas.


Apavorados os setores mais conservadores da sociedade, o Legislativo tenta uma mudança do sistema presidencialista para o parlamentarista: nomeia-se um Primeiro-Ministro para dividir atribuições com Jango – Tancredo Neves, Ex-Ministro da Justiça de Vargas. A mudança de sistema político não é referendada pelo povo, Goulart recupera plenos poderes e o inevitável golpe militar chega em 1º de abril de 1964, capitaneado por muitos oficiais que participaram do mesmo movimento tenentista que ofereceu bases de apoio a Getúlio em 30, e que com ele partilhavam muitos dos ideais positivistas.


O mesmo movimento tenentista que também serviu de berço ideológico ao maior rival comunista de Vargas, Luís Carlos Prestes, e a um dos fundadores da União Democrática Nacional (UDN), o Brigadeiro Eduardo Gomes, que concorreu nas eleições presidenciais de 1945 contra o General Dutra[3].


Redemocratizando-se o país em 1985, é eleito de forma indireta o já citado Tancredo Neves, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), mas, falecendo antes da posse, o exercício do mandato caberia ao Vice José Sarney. Realizadas finalmente as eleições diretas para presidente em 1989, é eleito Fernando Collor de Mello, neto de Lindolfo Collor, o primeiro Ministro do Trabalho de Getúlio, entre 1930 e 1932.


Como se vê, não é fácil explicar a intrincada colcha de retalhos que compõe a máquina política nacional e sua história cheia de reviravoltas. Mas as características básicas do populismo – lançando suas raízes na Atenas de Péricles ou na Roma de Júlio César, passando pelas prédicas de Maquiavel na Florença do início do século XVI, por movimentos norte-americanos do século XIX que repudiavam a imigração de católicos irlandeses e alemães, pelos narodniks ou populistas russos que idealizavam uma vida bucólica e incitavam revoltas camponesas no mesmo século, até chegar ao estilo mais comum de propaganda política da América Latina no século XX – ainda permanecem bem vivas e atuantes.


É notável que os regimes mais autoritários do Brasil foram responsáveis pela criação da parcela mais expressiva de direitos humanos de segunda geração (direitos sociais, trabalhistas, previdenciários), enquanto massacravam os direitos de primeira geração (liberdades individuais). O Ministério do Trabalho, Comércio e Indústria, a Justiça do Trabalho, a Consolidação das Leis Trabalhistas – (Era Vargas), o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), o Programa de Integração Social (PIS) e o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/PASEP), o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), a unificação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS, transformado em 1990 em Instituto Nacional do Seguro Social – INSS) – (Ditadura Militar), são todos prova cabal deste fenômeno.


Afagar as massas populares com direitos que lhe chamem a atenção e a afeição, que as afastem dos movimentos mais à esquerda ou à direita e que garantam a perpetuação de uma relação infantilizada de paternalismo, culto à personalidade do líder e visão simplista e maniqueísta da realidade, ainda é ponto pacífico na cartilha de muitos personagens da política nacional.


Desde Getúlio como “o Pai dos Pobres”, Jânio Quadros como “a vassourinha que varreria a bandalheira”, até a campanha de Collor contra os “marajás” e a favor dos “descamisados”, ou as mudanças que “nunca se viram antes na história deste país” de um Lula, ou o “vamos resolver isso daí, tá ok?” de um Bolsonaro, os discursos simplistas, porém apaixonados, geralmente escolhendo algum indefinido bode expiatório e apelando a medos muito primais da psique humana, parecem longe de abandonar o inconsciente coletivo do brasileiro, principalmente em uma época em que a internet tornou tão mais fácil a disseminação de pseudo-argumentos e a mobilização de grupos catárticos em busca de algo maior que a mediocridade cotidiana.


Como já dizia o senador romano Cícero no primeiro século antes de Cristo: “O Tempora, o Mores!”.[4]

 

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2006.

BOURNE, Richard. Getúlio Vargas: A Esfinge dos Pampas. São Paulo: Geração Editorial, 2012.

RASOTO, Talita Jacy. Getúlio Vargas e o Populismo. Monografia apresentada ao Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Sociologia Política da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2009.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Getúlio a Castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


NOTAS

[1] Positivismo é uma corrente filosófica fundada pelo francês Auguste Comte (1798-1857), que defende que a humanidade, após atravessar um estágio teológico e um estágio metafísico, finalmente chegou à maturidade em seu estágio positivo ou científico, ou seja, o conhecimento científico é a única verdade válida. Uma de suas frases – “Amor como princípio e ordem como base; Progresso como meta" – serviu de inspiração aos militares brasileiros que seguiam suas ideias e proclamaram a República em 1889, inspirando o lema “Ordem e Progresso” da bandeira brasileira.

[2] Castilhismo foi a corrente política instituída por Júlio de Castilhos no Rio Grande do Sul, com a vigência da Constituição do Rio Grande do Sul de 1891, e com grande influência em toda a Era Vargas. Tem como características a centralização dos poderes no Executivo, a instituição de mecanismos de participação direta, como plebiscitos e referendos populares; a instauração de um Estado modernizador, intervencionista e regulador da economia, além da atuação intermediadora e moralizadora da sociedade.

[3] Fato interessante dessas eleições é que o comitê eleitoral das senhoras que faziam propaganda para Eduardo Gomes produzia docinhos à base de leite condensado e chocolate e os distribuía de porta em porta. O doce acabou levando o nome da patente do candidato: brigadeiro.

[4] “Que tempos os nossos! E que costumes!”.