terça-feira, 12 de julho de 2011

O Cenário da Caatinga (da "Epopéia Árida")

A carnadura
A carne dura
A cana-brava
A ditadura
Do solo-areia
Da língua
à míngua
Seca
A secura
Da alma meia
Metade de homens
Metade de mulheres
Metade de crianças
Aqui  só os mortos são inteiros.

Orfeu encontra Krishna (das "Canções de Orfeu")

"Fizeste-me sem fim, pois esse é o teu prazer. Vives esgotando esta taça frágil e enchendo-a sempre de vida fresca. Levaste por montes e vales esta pequena flauta de cana, e soprando-a, atravessaste-a de melodias sempre novas. Ao toque imortal das tuas mãos, o meu pequeno coração esquece os limites da alegria e cria inexprimíveis expressões. Teus dons infindos vêm a mim apenas sobre estas minhas tão exíguas mãos. Passam os tempos, vais vertendo sempre, e vai havendo sempre o que encher”.

      RABINDRANATH TAGORE - Gitanjali

Fala Orfeu:

Hare, amigo das terras longínquas,
Flautista que enleva a alma das tuas gopis,
Príncipe coroado das penas de pavão,
Que vive enlevado por Rada, a tua Lakshmi.

Rei-filósofo de Dváraka,
Filho adotivo de Yasoda,
Aparência efêmera do Vishnu celeste,
Pastorzinho cor de lápis-lazúli, da paisagem agreste,
Que conduziu a quadriga de Arjuna para a batalha,
E que irá, em lutas, ali encontrar tua mortalha!

Invejo tua origem e teu destino,
Parabrahman do vale do Indo,
O que vieste me dizer de tão longes paradas,
Se agora vou me definhando para nada?

Fala Krishna:

Ave, amigo, filho de Febo,
Rebento da Trácia,
Infeliz de fim negro!

Flautista das odes, das éclogas, das epopeias,
Cantor rouco das horas lúgubres das melopeias,
Vim perguntar se não choras ainda por ignorância,
Ou por ocultar com persona de lírio a mais rude jactância,
E se não amas o Absoluto na couraça do Relativo,
E se não preferes o lago dos mortos ao rio sempre vivo.

Não será em tu´alma a cegueira a clamar por luz?
Não será tua lira a litania do vazio?
Qual a sensação depois do torpor das pitonisas?
Qual o proveito da orgia das bacantes e seu cio?
Que é o homem, seu tesouro e sua fama?
Que é a paixão no leito, o mármore no túmulo,
A glória no espelho e tudo quanto ama?

Chamas a isto de Eurídice
Pois ao homem só apraz nomear
Com o que lhe vai mais próximo
Inda que permaneça a ignorar
Seu verdadeiro propósito.

Há um abismo em ti que nada preencherá
Enquanto cavares em fontes de água salobra.  
Conheces o rio de água viva que brota longe daqui
E que promete matar a sede que te sobra?

Fala Orfeu:

O amigo me fala de coisas perturbadoras,
Charadas inúteis, antigas, herméticas,
Sabes que dor é a minha?
Conheces o peso da minha sina?

Fala Krishna:

Falo de coisas sinceras, sem temores, sem  máscara,
Daquilo que não se te apresentará
Enquanto o antigo orgulho dos dórios e dos jônicos
Cobrir-te a tez com o vinho que te matará.

Chegará o tempo, amigo ária,
Em que homens virão com pergaminhos estranhos,
E não serão nem do Indo, do Ganges ou do Bramaputra,
Nem do Estige, nem do Letes, nem do Tibre,
Nem do Reno, do Eufrates, nem do Tigre,
E te mostrarão como se torna branco o que se lava com a púrpura.

Adeus, amigo e sofredor,
É chegada a hora do fim,
Em minha carruagem que conduzo pelas hordas dos céus,
Encontrarei a morte numa flecha de fel.

Fala Orfeu:

Adeus, amigo de melhor sorte,
Vai em paz e cumpre teus dias,
Que meus ouvidos só estão prontos a ouvir
O que me interessa em minha roda de morte.

Vai e não percas teu precioso tempo,
Que entre o sábio e o tolo o limite é tênue,
Que o verão continua dando lugar ao outono,
Que a ilusão é brilhante e é prenhe.

Segue teu rumo, eu sigo minha Tróia,
Que no sonho de que construímos nossa história,
Vamos cantando alegremente a insensatez maldita,
De que algures tivemos domínio sobre nossa desdita.


– Parte  Krishna. Cai de joelhos Orfeu –