quinta-feira, 14 de outubro de 2021

O MURO

O Muro de Adriano
Separava a Britânia Romana
Dos bárbaros celtas do Norte.
O Danúbio e o Reno
Eram os muros de água da Germânia Romana
Que a separava dos vários bárbaros do Leste.
A Muralha da China
Protegia dos bárbaros mongóis do Norte.
O Muro das Lamentações
Foi o que restou da fúria romana sobre Jerusalém.
O muro de Jericó
Caiu com as trombetas dos hebreus de Josué.
O Muro de Berlim
Separava socialistas de capitalistas
(Como ainda o faz o muro das duas Coreias).
Os muros da Caxemira
Separam indianos de paquistaneses de chineses.
Os bantustões da África do Sul
Separavam negros de brancos de mestiços.
As Peace Lines da Irlanda do Norte
Separam católicos de protestantes.
O Rio Bravo e o Muro de Bush-Trump
Impedem que latinos roubem os serviços sociais dos ianques.
Os muros da Cisjordânia
Separam judeus de palestinos.
A Arábia Saudita, sunita,
Termina um muro que a separa dos xiitas do Iraque.
A Cidade Baixa e a Cidade Alta de Salvador
Separam ricos de pobres
(Como o faz o Muro da Vergonha da peruana Lima)
E o Muro de Roger Waters do Pink Floyd
(Esse do qual somos todos apenas mais um tijolo)
Separava da fúria idólatra dos fãs
E do universo insuportável do inconsciente.
Jamais deveis vos esquecer deste fato:
Construídos com cimento, ódio e ranger de dentes,
Os muros mantêm fora os bárbaros
E não lhes deixam ver a barbárie da nossa civilização.
Minhas retinas alongadas de míope
Jamais se esquecerão deste fato:
Sempre tem um muro.
Sempre tem.





segunda-feira, 20 de setembro de 2021

GETÚLIO VARGAS: CARISMA, RUPTURA E CONTINUIDADE

O vocábulo “demagogia” deriva do grego “demos” (“povo”) e “agogôs” (“liderar”). O conceito surgiu na antiga Atenas, em seu período clássico (séculos VI-IV a.C.), sendo levantado pela primeira vez por Platão de maneira pejorativa. Seu discípulo Aristóteles, na basilar obra “Política”, define-a como “o uso corrente da adulação e o mau uso da oratória para conquistar o público e para apoiar um dirigente político”. Ou seja, trata-se do inverso da própria lógica aristotélica – um sofisma ao invés de um silogismo; um conjunto de falácias, promessas falsas, bajulação, desvios de foco e palavras de efeito sem qualquer significado real, que seduz as grandes massas e recorre muito mais ao emotivo, passional e obscuro do que às propriedades racionais do ser humano.


A demagogia, portanto, está intimamente ligada aos interesses particulares de um pequeno grupo dentro de uma república, ou mesmo de uma monarquia constitucional, já que, não podendo fazer o mesmo uso da força que faria um tirano ou um rei absolutista, escora-se em grandes contingentes populacionais para coagir seus opositores.


Pode-se dizer que o termo está profundamente relacionado com o conceito de “populismo”. O professor Cas Mudde, da Universidade da Georgia (EUA), define populismo como uma ideologia rasa que considera que a sociedade se divide em dois grupos antagônicos, o ‘povo’ e a ‘elite corrupta’”. Entretanto, boa parte dos historiadores prefere aplicar este último vocábulo exclusivamente ao contexto histórico vivido pelo Brasil entre 1930-1964, o que corresponde à Era Vargas e ao primeiro período de redemocratização do país. Outros países da América Latina também viveram contextos parecidos, o mesmo se podendo dizer do período posterior, a ditadura militar num contexto de Guerra Fria.


O período político brasileiro denominado “República Populista” foi totalmente impregnado pela figura onipresente de Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), gaúcho de São Borja, com formação militar e jurídica, impregnado de ideais positivistas[1] e castilhistas[2], que ascendeu no cenário político passando de deputado estadual para federal, governador do Rio Grande do Sul e Ministro da Fazenda do Presidente Washington Luís – o mesmo que iria depor através da Revolução de 1930, pondo fim à Velha República do “Café-com-Leite”.


Getúlio assume o poder através de um Governo Provisório (1930-1934), entra em conflito aberto com os paulistas (Revolução de 1932), aceita a promulgação de uma nova Constituição democrática em 1934, sendo eleito de maneira indireta como Chefe do Executivo nesta ocasião. Através de mais um golpe de Estado, assume definitivamente como ditador antes que novas eleições diretas fossem convocadas, outorgando a Constituição autoritária de 1937, e se mantendo no poder desta forma até 1945, período que ficou conhecido como Estado Novo.


Sua deposição, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, estava em consonância como o novo ideal das democracias liberais que venceram o conflito, em detrimento dos regimes autoritários e ufanistas.


Mesmo assim, é instigante observar que o presidente eleito para 1946 é seu Ex-Ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra, o qual convoca nova Assembleia Nacional Constituinte, que termina por promulgar nova Constituição democrática para o Brasil nesse mesmo ano. E mais instigante ainda: lançado candidato em 1950, Getúlio Vargas é eleito com maioria esmagadora de votos e retorna ao poder, desta vez por vias democráticas, ali permanecendo até seu emblemático suicídio com um tiro no peito no Palácio do Catete, em 24 de agosto de 1954, já totalmente premido pelos protestos populares oriundos do atentado a bala contra seu opositor Carlos Lacerda.


O fantasma de Getúlio, não obstante, continuaria a rondar a política nacional por muito mais tempo. Seu aliado em Minas Gerais, Juscelino Kubitschek de Oliveira, é eleito Presidente da República para o período de 1956 a 1961. Segue-se então o curto período de governo de Jânio Quadros, e o Vice que o sucede é um Ex-Ministro do Trabalho de Vargas, João Goulart, o Jango, que também incendeia o país com pautas sindicalistas.


Apavorados os setores mais conservadores da sociedade, o Legislativo tenta uma mudança do sistema presidencialista para o parlamentarista: nomeia-se um Primeiro-Ministro para dividir atribuições com Jango – Tancredo Neves, Ex-Ministro da Justiça de Vargas. A mudança de sistema político não é referendada pelo povo, Goulart recupera plenos poderes e o inevitável golpe militar chega em 1º de abril de 1964, capitaneado por muitos oficiais que participaram do mesmo movimento tenentista que ofereceu bases de apoio a Getúlio em 30, e que com ele partilhavam muitos dos ideais positivistas.


O mesmo movimento tenentista que também serviu de berço ideológico ao maior rival comunista de Vargas, Luís Carlos Prestes, e a um dos fundadores da União Democrática Nacional (UDN), o Brigadeiro Eduardo Gomes, que concorreu nas eleições presidenciais de 1945 contra o General Dutra[3].


Redemocratizando-se o país em 1985, é eleito de forma indireta o já citado Tancredo Neves, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), mas, falecendo antes da posse, o exercício do mandato caberia ao Vice José Sarney. Realizadas finalmente as eleições diretas para presidente em 1989, é eleito Fernando Collor de Mello, neto de Lindolfo Collor, o primeiro Ministro do Trabalho de Getúlio, entre 1930 e 1932.


Como se vê, não é fácil explicar a intrincada colcha de retalhos que compõe a máquina política nacional e sua história cheia de reviravoltas. Mas as características básicas do populismo – lançando suas raízes na Atenas de Péricles ou na Roma de Júlio César, passando pelas prédicas de Maquiavel na Florença do início do século XVI, por movimentos norte-americanos do século XIX que repudiavam a imigração de católicos irlandeses e alemães, pelos narodniks ou populistas russos que idealizavam uma vida bucólica e incitavam revoltas camponesas no mesmo século, até chegar ao estilo mais comum de propaganda política da América Latina no século XX – ainda permanecem bem vivas e atuantes.


É notável que os regimes mais autoritários do Brasil foram responsáveis pela criação da parcela mais expressiva de direitos humanos de segunda geração (direitos sociais, trabalhistas, previdenciários), enquanto massacravam os direitos de primeira geração (liberdades individuais). O Ministério do Trabalho, Comércio e Indústria, a Justiça do Trabalho, a Consolidação das Leis Trabalhistas – (Era Vargas), o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), o Programa de Integração Social (PIS) e o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/PASEP), o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), a unificação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS, transformado em 1990 em Instituto Nacional do Seguro Social – INSS) – (Ditadura Militar), são todos prova cabal deste fenômeno.


Afagar as massas populares com direitos que lhe chamem a atenção e a afeição, que as afastem dos movimentos mais à esquerda ou à direita e que garantam a perpetuação de uma relação infantilizada de paternalismo, culto à personalidade do líder e visão simplista e maniqueísta da realidade, ainda é ponto pacífico na cartilha de muitos personagens da política nacional.


Desde Getúlio como “o Pai dos Pobres”, Jânio Quadros como “a vassourinha que varreria a bandalheira”, até a campanha de Collor contra os “marajás” e a favor dos “descamisados”, ou as mudanças que “nunca se viram antes na história deste país” de um Lula, ou o “vamos resolver isso daí, tá ok?” de um Bolsonaro, os discursos simplistas, porém apaixonados, geralmente escolhendo algum indefinido bode expiatório e apelando a medos muito primais da psique humana, parecem longe de abandonar o inconsciente coletivo do brasileiro, principalmente em uma época em que a internet tornou tão mais fácil a disseminação de pseudo-argumentos e a mobilização de grupos catárticos em busca de algo maior que a mediocridade cotidiana.


Como já dizia o senador romano Cícero no primeiro século antes de Cristo: “O Tempora, o Mores!”.[4]

 

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2006.

BOURNE, Richard. Getúlio Vargas: A Esfinge dos Pampas. São Paulo: Geração Editorial, 2012.

RASOTO, Talita Jacy. Getúlio Vargas e o Populismo. Monografia apresentada ao Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Sociologia Política da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2009.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Getúlio a Castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


NOTAS

[1] Positivismo é uma corrente filosófica fundada pelo francês Auguste Comte (1798-1857), que defende que a humanidade, após atravessar um estágio teológico e um estágio metafísico, finalmente chegou à maturidade em seu estágio positivo ou científico, ou seja, o conhecimento científico é a única verdade válida. Uma de suas frases – “Amor como princípio e ordem como base; Progresso como meta" – serviu de inspiração aos militares brasileiros que seguiam suas ideias e proclamaram a República em 1889, inspirando o lema “Ordem e Progresso” da bandeira brasileira.

[2] Castilhismo foi a corrente política instituída por Júlio de Castilhos no Rio Grande do Sul, com a vigência da Constituição do Rio Grande do Sul de 1891, e com grande influência em toda a Era Vargas. Tem como características a centralização dos poderes no Executivo, a instituição de mecanismos de participação direta, como plebiscitos e referendos populares; a instauração de um Estado modernizador, intervencionista e regulador da economia, além da atuação intermediadora e moralizadora da sociedade.

[3] Fato interessante dessas eleições é que o comitê eleitoral das senhoras que faziam propaganda para Eduardo Gomes produzia docinhos à base de leite condensado e chocolate e os distribuía de porta em porta. O doce acabou levando o nome da patente do candidato: brigadeiro.

[4] “Que tempos os nossos! E que costumes!”.






POLÍTICA CULTURAL E DITADURA MILITAR (1964-1985)

A Ditadura Militar se implantou no Brasil através do golpe perpetrado pelas Forças Armadas na madrugada do dia 31 de março para 1º de abril de 1964, depondo o então presidente João Goulart e substituindo-o por um governo provisório da Junta Militar, que, por fim, empossou o Marechal Humberto de Alencar Castello Branco na Presidência da República, em 15 de abril do mesmo ano.

Castello faleceu em março de 1967, em um acidente aéreo nunca totalmente esclarecido, pouco depois de ver assumir em seu lugar um representante da “linha dura” do Exército, o Marechal Artur da Costa e Silva. A este, seguiu-se mais um presidente da ala mais radical e violenta, o General Emílio Garrastazu Médici – que, embora tenha protagonizado um período de extrema repressão em que a prática de tortura já se institucionalizara, também foi o responsável por governar o país no chamado “milagre econômico”.

Por fim, a ala mais moderada – também chamada “castelista” ou “grupo da Sorbonne”, em decorrência de sua formação na Escola Superior de Guerra e estágios na França e EUA – voltou ao poder com o General Ernesto Geisel, sucedido pelo último presidente do regime militar, o General João Baptista de Oliveira Figueiredo. Nestes dois últimos mandatos, operou-se a chamada “abertura lenta, gradual e segura”, visando o retorno a um regime democrático sem grandes convulsões sociais.

Durante todo o período, foram inúmeras as alterações legais autocráticas, como os 17 Atos Institucionais decretados, sendo o AI-5 o mais temido (conferiu ao Presidente o poder de cassar mandatos, intervir em Estados e Municípios, suspender direitos políticos, decretar o recesso do Congresso Nacional e suspender o habeas corpus para crimes políticos). Também foi outorgada uma nova Constituição, em 24 de janeiro de 1967, concentrando ainda mais os poderes no Executivo, bem como uma nova Lei de Segurança Nacional e uma nova Lei de Imprensa, limitando a liberdade de expressão e levando centenas de jornalistas, artistas, políticos e intelectuais ao exílio.

A situação sombria do período só passaria a se desanuviar com a Lei da Anistia (Lei 6.683/79), a qual perdoava os crimes políticos ou conexos com estes cometidos por ambos os lados (Forças Armadas e movimentos de guerrilha de esquerda), permitindo o retorno de várias personalidades do exílio, embora levantando inúmeras polêmicas até hoje sobre torturadores e homicidas que permaneceram impunes.

Por fim, após a redemocratização do país, a Constituição “Cidadã”, promulgada em 5 de outubro de 1988 e vigente até hoje, garantiu plenamente a liberdade de expressão (“livre manifestação do pensamento”) no inciso IV de seu extenso artigo 5º, o qual elenca direitos e garantias fundamentais de todo cidadão brasileiro e dos estrangeiros residentes no país.

Mas o que se pode dizer da relação do regime militar brasileiro com a cultura nacional? A resposta não é tão simples como muito já se apregoou. Por um lado, a cultura pode ser estimulada como multiplicador de ufanismo, de coesão social e mesmo como a velha política do “pão e circo” a ser dada ao povo. Neste diapasão, assim como Getúlio Vargas ergueu o samba e o carnaval da marginalidade para o centro da mídia e do orgulho nacional, e se beneficiou de Carmen Miranda e do personagem Zé Carioca criado por Walt Disney para estrelar animações ao lado do Pato Donald, numa nítida política de “boa vizinhança com o Brasil” do presidente Roosevelt, a Ditadura Militar também viu no futebol (agora tricampeão da Copa do Mundo em 1970), em movimentos juvenis mais “pacíficos” (como a Jovem Guarda e a posterior carreira solo de Roberto Carlos, abandonando o rock e embalando namoros e sonhos de milhões de brasileiros com suas canções românticas açucaradas) e nos programas televisivos (de humor, de auditório, telenovelas) um excelente meio de entreter e afastar a população da discussão política.

Mas a relativa indiferença do novo regime em seus primeiros anos com os protestos e manifestações culturais parece ter um ponto de virada no emblemático ano de 1968.

Esse foi o ano das passeatas de maio em Paris, com estudantes e operários irmanados contra o presidente Charles de Gaulle. Foi o ano do auge do movimento hippie de San Francisco, Califórnia (EUA), dos protestos contra a Guerra do Vietnã, o ano do assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, da “Primavera de Praga” em que a Tchecoslováquia buscava um “socialismo de face humana” sem a mão de ferro da União Soviética.

Ano de lançamento do “White Album” dos Beatles, de “Beggars Banquet” dos Rolling Stones, de “Waiting for the Sun” dos Doors, do álbum duplo “Electric Ladyland” de Jimi Hendrix, de “Panem et Circensis” que inaugura a Tropicália, de “Raulzito e os Panteras” que apresenta o futuro ícone do rock brasileiro Raul Seixas. Ano em que nasceram as bandas Led Zeppelin, Black Sabbath e Deep Purple, que popularizariam o termo heavy metal, e também bandas como Yes e Rush (e o Pink Floyd, criado em 65, substituía seu vocalista Syd Barrett, acometido por graves problemas mentais agravados pelo LSD, por Roger Waters como seu principal letrista e líder temático). É o ano de lançamento dos álbuns de estréia do Genesis e do Jethro Tull: assim nascia o rock progressivo. Ano de filmes como “2001: Uma Odisseia no Espaço” (Stanley Kubrick), “O Bebê de Rosemary” (Roman Polanski), “Romeu e Julieta” (Franco Zeffirelli), “Yellow Submarine” (animação de George Dunning sobre músicas dos Beatles). 

No Brasil, a passeata dos 100 mil, no Rio de Janeiro, após a morte do estudante Edson Luís, de 18 anos, pela Polícia Militar, e o discurso irônico do deputado federal Márcio Moreira Alves contra as Forças Armadas, contribuíram para acelerar o processo de endurecimento do regime, originando o Ato Institucional n. 5 em 13 de dezembro do mesmo ano.

Agora, ao lado do interesse de aumentar a infraestrutura e integração nacional com as telecomunicações, de realizar a concessão das redes de televisão a aliados do regime – como Roberto Marinho (Globo), Silvio Santos (SBT/ e também proprietário de metade das ações da TV Record entre os anos 70 e 90) e Adolfo Bloch (Manchete) – e de fomentar a música erudita, as artes plásticas e o folclore através da FUNARTE (Fundação Nacional de Artes), fundada em 1975, também residia a preocupação com manifestações culturais populares que fugiam ao escopo e controle do governo.

Os grandes festivais de música realizados pela TV Record e pela TV Globo, de 1965 a 1972 – onde de quando em quando surgia algum Chico Buarque, algum Caetano Veloso, algum Geraldo Vandré, que de forma velada ou direta criticavam o autoritarismo nas letras sofisticadas de suas canções – bem como diretores teatrais como José Celso Martinez Corrêa e Gerald Thomas, ou o Cinema Novo de Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues, consistiam todos em uma grande “ameaça e afronta” à “moral e aos bons costumes” e à “doutrina da segurança nacional contra os inimigos internos da Revolução de 64”.

Uma Portaria de 1970 oficializou a censura prévia contra todas as obras que fossem consideradas “subversivas” ou “obscenas”. Peças teatrais e shows deveriam passar por um ensaio geral assistido pelos censores antes de serem liberados ao público geral. Comissões de leitores atentos analisavam obras literárias antes de seu lançamento pelas editoras.

Entretanto, o tempo mostrou ao regime militar que seus esforços pareciam levar justamente ao efeito oposto do planejado. Até hoje, críticos de arte se lembram com saudosismo da qualidade das obras produzidas no período. O refinamento e sutileza que as letras de música e os livros precisaram adquirir para escapar aos censores, o esmero em se produzir uma crítica social e política convincente mesmo não contando com recursos oficiais, levaram a cultura brasileira a outros patamares, inaugurando um tipo de música agora apelidado de Música Popular Brasileira – MPB, levando o cinema nacional ao reconhecimento internacional, e nossa literatura nunca foi tão traduzida para outros idiomas.

Outrossim, o declínio rápido observado em decorrência da ausência de financiamento público foi uma das causas do aumento da cultura de massa de qualidade inferior, patente nas “pornochanchadas”, na enxurrada de histórias em quadrinhos produzidas nos EUA, França e Itália que substituíram os livros nas mãos de muitas crianças, na música pop norte-americana das rádios FM (que subjugaram as músicas de raiz brasileiras e a música erudita às pequenas rádios AM) e na “realidade” pasteurizada da televisão.

Os impactos da Ditadura Militar para o Brasil são tremendos, mas talvez seja na área da Educação e Cultura que isto se torne mais patente. A preocupação obsessiva em limitar o pensamento crítico e treinar novas gerações para a obediência terminou por reproduzir o velho modelo de “educação bancária” descrito por Paulo Freire (aliás mais um perseguido pelo regime), onde os alunos são meros instrumentos passivos do depósito de conhecimentos das gerações anteriores, sem quaisquer perspectivas de mudança, muito menos da capacidade de criar e empreender.

Hoje, em pleno século XXI, em que tais características são praticamente obrigatórias no perfil profissional das mais diversas áreas, tal tipo de mentalidade mostra seus resultados perversos e anacrônicos.  


REFERÊNCIAS

 

FERNANDES, Natalia Ap. Morato. A política cultural à época da ditadura militar. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, v. 3, n. 1, jan-jun 2013, pp. 173-192.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 48. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa . São Paulo: Paz e Terra, 2011.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Getúlio a Castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Castelo a Tancredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

VENTURA, Zuenir. 1968: O Ano Que Não Terminou. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.





sábado, 17 de abril de 2021

SONETO ROCK N' ROLL

(COM 6 ESTROFES PRA FICAR MAIS REBELDE...)


Chuck Berry, Little Richard, lá do Sul,
Negros “perigosamente” entre brancos,
Chegam a Buddy Holly e Peggy Sue,
Fazem-lhes dançar twist em seus tamancos.

Doors abrem as portas da percepção,
Beatles, besouros, campos de morangos,
Submarinos, sargentos e quejandos,
Rolling Stones, pedras rolam no grotão,

Jimi, Janis, Kurt, Amy, onde se metem?
Cuidado: A maldição dos vinte e sete!
Outro lado da Lua Pink Floyd reflete...

Guns n’ Roses, armas e rosas, paz
não há, Não há Oásis nem Nirvana,
U2: Domingo sangrento na Irlanda!

Led Zeppelin, esse balão de chumbo,
Black Sabbath, ode ao terror, velho bruxo,
E o Deep Purple, o roxo profundo!

Ora, se o quadril de Elvis inda é rei,
Volta ao gabba hey, Ramones é a vez,
Viva a vida no amarelo Coldplay!



quinta-feira, 8 de abril de 2021

SONETO DE FRIDA KAHLO

 Sofrida, coluna partida, um ferro embutido,

A viga do bonde perfura a vagina, as entranhas:

O acidente em Coyoacán, um veado ferido,

Pernas de poliomielite não sustêm a sanha.


Macacos, beija-flores, cocos, colares de espinho,

Corações expostos, cactos, três abortos sangrentos,

Na cama, de molho, convalesce, pinta aquarelas,

Na cama, ama, loucamente, homens e mulheres:


Diego Rivera, que só lhe faz sofrer quimeras;

Maria Félix, a atriz de dramas de malmequeres;

Até Trótsky, asilado em seu moreno ninho.


Sombra de sobrancelhas, "Sou frida mas não me kahlo",

Li certa vez em um grafite dum beco cinzento,

Símbolo ou mulher? Deusa asteca que ganhou seu halo?














SONETO DE MOZART

 A estrela viva diante do menino,

Corre descalço, pardais na peruca,

Persegue o arco-íris, som dos sinos,

Quer o mundo, quer dormir, quer astúcia.


Menino-prodígio, que quer não sê-lo,

Que compõe sinfonia aos oito anos,

Transcreve uma ópera inteira sereno,

E a infância finda em assuntos mundanos.


Menino eterno, uma flauta mágica,

Dom Giovanni, Fígaro, Papageno,

Mente a Rainha da Noite sarcástica...


Pequeno divertimento noturno,

Rondó, quarteto, Réquiem e pleno,

Sinfonia Júpiter, grande ele mesmo!




quarta-feira, 24 de março de 2021

GEORG FRIEDRICH HÄNDEL

“The Kingdom of this World is become

The Kingdom of Our Lord and of His Christ,

And He shall reign forever and ever!

King of Kings and Lord of Lords!

King of Kings and Lord of Lords!

Forever and ever, Hallelujah, Hallelujah,

Hallelujah!”

                (Do oratório “Messiah” - 1741)

           


Natural de Halle na Alemanha,

Superstar em Roma, Nápoles e Veneza,

Instalado definitivamente na Corte Inglesa

De George II, George I e Ana.

 

Diretor em Londres da Real Academia de Música;

Compositor de óperas: “Almira”, “Rinaldo”, “Xerxes”, “Ácis e Galateia”.

Sua “Música Aquática” desfilava sobre o Tâmisa,

Mas o público, mais e mais, cansava de suas melopéias...

 

Cheio de dívidas, obeso e glutão,

Celibatário, para alguns maníaco-depressivo,

Para outros, um grande humorista bonachão,

Levava a sério seus dotes com tom incisivo.

 

E pensar que seu pai, barbeiro-cirurgião,

E seu avô, pastor luterano,

Nunca viram com bons olhos sua vocação:

Só a mãe, às escondidas, incentivando,

Dava-lhe instrumentos escondidos no sótão,

Que foram a única alegria depois de órfão.

 

Mesmo com o pai morto, sua sombra permanecia:

Georg cursa Direito, última vontade do falecido.

Mas por óbvio que seu pendor não emudecia

E em Hamburgo, imberbe, toma do violino.

 

Em Lübeck, disputa um cargo de organista

Com Johann Mattheson, outro compositor,

Surgem rusgas de suas excentricidades de artista

E acabam num duelo de espadas, de etílico torpor.

 

Não fosse o botão do casaco roto

A desviar o golpe certeiro, ao peito, da lâmina,

E não teríamos hoje o mestre barroco

Dos anglo-saxões e sua flâmula,

Que mesmo endividado e desprezado,

Compunha oratórios como um condenado

Que quer diminuir sua pena, escravizado

Ao mundo secreto de sua espiritual campânula.

 

Quando rascunhava “O Messias”, sua obra-prima,

Ao surgir-lhe a idéia do magnífico “Aleluia”,

Perguntou se estava fora do corpo ou acima

Enquanto tão altiva melodia compunha.

 

Ao ouvi-la, à prima vez, o Rei Jorge

Levanta-se em sinal de respeito

E até hoje a tradição tem suporte:

Só se ouve o “Aleluia” desse jeito.

Handel também morreu cego como Bach,

Não deixou cônjuge nem herdeiros,

Mas deixou um mundo sonoro a se admirar

Carregado da realeza de um trompete alvissareiro.   

 


 

 

 

 

 

 

 

terça-feira, 23 de março de 2021

JOHANN SEBASTIAN BACH

Órfão aos 10 anos, criado pelo irmão,

Debruçado ao órgão, ao cravo, ao violino,

Na igrejinha luterana, os joelhos em oração,

Ou – sua maior e tresloucada devoção –

Dos dedos-raízes às teclas,

Das cordas-carícias aos hinos,

Dos ouvidos atentos aos anjos sibilinos.

 

Casado co’a prima Maria Bárbara: sete filhos;

Viúvo aos 35, casado com Anna Magdalena,

Com metade da sua idade: treze filhos;

Em meio aos choros e cueiros, o tinteiro e a pena,

A despensa é efêmera, mas o talento é perene:

Haja paciência, haja dinheiro, haja pênis!

 

O duque Wilhelm não lhe dá valor,

O príncipe Leopold sim, mas paga menos,

O conde Hermann sofria de insônia:

Só sua música lhe devolvia nervos amenos.

Ninguém sabia ainda que o prodígio da Saxônia

Traria ao mundo a Tocata e Fuga em Ré Menor,

A Paixão Segundo São Mateus, a Ária na corda Sol,

Jesus Alegria dos Homens, o Cravo Bem-Temperado,

Os Concertos de Brandenburgo, o Minueto em Si Bemol.

 

Morreu cego, mereceu uma nota de rodapé num jornal.

Ficou esquecido até Mendelssohn trazer-lhe à luz do dia,

Mais de um século depois, num festival.

Se não, conheceríamos sua harmonia

Que fundou os princípios tonais da música ocidental?  

 

Quantos aprenderam, canhestros, o piano

No Pequeno Livro de Anna Magdalena Bach?

E não disse o filósofo amargo e poeta ateu

Emil Ciorán, que odiava a todos e a Deus,

Que a única coisa que amava no Cristianismo

Era a música de Johann Sebastian Bach?

 

Se queres uma prece sincera em forma de música,

Se queres conhecer o êxtase em empírea acústica,

Tenta ouvir calado o humano trinado do Mestre de Eisenbach!