terça-feira, 24 de novembro de 2020

O ESPELHO

- Stairway to Heaven

- Highway to Hell!

- Whole lotta love


- Whole lotta Rosie!


- Going to California


- Back in Black!


- When the levee breaks


- Jailbreak!


- Babe, I’m gonna leave you


- You shook me all night long!

 


Também és tu um par de opostos

Como Led Zeppelin e AC/DC?

Tu envias teus arautos, prepostos,

Para falarem adiante de ti?

 

Contrabandista às avessas,

Ladrão de ti mesmo,

Lobo cinzento de noites de sexta,

Cordeiro aos domingos posto à mesa?

Como vai a tua dieta

De mentiras, ilusões e torresmo?

 

Não se lamentavam os israelitas no deserto

Pelas panelas de carne e os pepinos do Egito?

Se Oséias tivesse casado com a mulher virtuosa

Em segundas núpcias (se de fato fosse esperto),

Não teria saudades da sua prostituta,

De seu chifre sempre hirto?

 

José pensava na mulher de Potifar, balzaquiana fogosa,

Na solidão da cela da cadeia e da vida bruta?

Não desejava ainda o apóstolo Simão Zelote

Tosquiar bem um romano, arrancando-lhe tiras de couro?

E mais do que o martírio na Pérsia, sob o serrote,

Temia voltar a ser um blasfemo canoro,

Um Barrabás, um Gestas, um Iscariotes?

 

Tu também, qual a mulher de Ló,

Não virarias estátua de sal?

Eu não tenho dó

Da tua síndrome fatal.

 

São Gonçalo tocava viola

E se vestia de mulher, com fitas coloridas,

Quando pregava às putas, e depois pedia esmolas,

Com pregos nos pés, pra compensar com feridas,

Os casamentos que fazia das não-virgens,

O que lhe proibira o bispo – que só abençoava hímens,

E hoje lhe  oferecem doces em forma de “caralhinhos”

As que querem casamento dentre as lusas raparigas!

 

Santa Maria Egipcíaca,

Cansada da prostituição em Alexandria,

Não tinha dinheiro para peregrinar em Jerusalém.

Que fez, então, a nova santa egípcia?

Pagou o barqueiro com o que tinha:

A flor íntima que dava como ninguém!

 

Às vezes não vês tua vida

Como o espelho e seu reverso,

Refletindo o impostor, rainha má,

Alice em seu mundo perverso,

Buscando cogumelos alucinógenos no ralo da pia,

Gatos & lagartas & coelhos & chapelarias,

Como se fosse tudo o que há?

Bela Adormecida com barbitúricos e álcool,

Aladim cansado, convertido em Ali Babá?

 

Por isso o Imperador Augusto,

Uma vez por ano,

Se travestia de mendigo nas ruas da Suburra?

E os demônios onis sempre tinham fome no seu âmago

– Um buraco sem fim no Japão medieval –

À espreita de crianças em arbustos,

Cerejeiras, doces de feijão e vielas escuras?

 

Não sentes que vagas numa vaga ponte

De névoa de quadro chinês,

Entre o divino jorrando das fontes

E o esgoto podre aos teus pés?

 

Por isso tu apenas cobres os espelhos

Depois de te escovares, de te barbeares,

E deixas aos espantalhos

A função de lidar com os corvos e roedores?






terça-feira, 5 de maio de 2020

A CAVERNA



Já os homens pleistocenos
Buscavam ali refúgio,
Deixando impressos aos milênios
Seus mamutes, corças, refugos.

Na caverna de Platão temos a sombra
E a verdade está lá fora e acima.

Na caverna de Orfeu temos o arrependimento
Que olha para trás e perde Eurídice para sempre.

Na caverna de Remo e de Rômulo temos a loba
E o leite e o sacrifício e as lupercais.

Na caverna de Amaterasu,
Ela é o sol que se esconde
Depois que seu irmão – tempestade e mar,
Susanoo, o covarde,
Joga um cavalo morto sobre o seu jantar.

Na caverna do Buda,
Mara, a ilusão,
Depois de derrotado debaixo da figueira,
Sem a costumeira face carrancuda,
Em posição de lótus sobre a pobre esteira,
Lança sua última tentação:
Cansado da penumbra lisonjeira,
Quer trocar de lugar com a iluminação!

Na caverna de Davi temos o medo
E o refúgio e a lira e a oração angustiada
E os salmos se desenrolando
Como uma teia noturna de titiwais[1]
E lá fora a ira dos exércitos de Saul.

Jonas, em meio às ondas do mar,
Encontrou sua caverna de carne
No esôfago de um peixe justiceiro,
Onde se martirizava pelo teimar
Tal Pinóquio esperando seu velho carpinteiro.

Na caverna da Natividade temos o Menino,
A Luz do mundo a dormitar na manjedoura,
Em pequeno facho de luz de humildade
Debaixo da estrela peregrina,
E lá fora as trevas assassinas de Herodes
E as trevas da hora nona que viriam
– E a outra caverna futura –
Cuja pedra de entrada seria removida pela Vida!

Na caverna de São Jerônimo temos o velho
Que buscava em sonhos e pergaminhos
Aquela mesma Luz que lhe salvara,
E lá fora o diabo e as dançarinas de Roma
E o leão de pata machucada.

Na caverna de Maomé temos o susto
Seguido da poesia,
E o anjo Jibril que lhe sobe ao peito
E lhe ordena recitar,
E o pavor e os versos que lhe saem em torrente
E lá fora o vil comércio dos coraixitas
(os que nunca ouvem).

Na caverna de Siegfried temos o tesouro ocultado
E o sulfuroso dragão que o guarda, atormentado,
E o seu sangue que banha o heroi transformado,
E lá fora a ambição que lhe quer roubado.

Encontrariam o tesouro assim
Jasão, Ali Babá, Alladin?

Na caverna da Psicanálise temos o útero materno
E a tumba do homem a renascer,
Descendo as escadas do inconsciente,
Subindo as encostas do verdadeiro Ser.
Não sei que caverna me aguarda,
Mas quando chegar a essa porta do Hades,
Caminho de pedras,
Labirinto de mares,
Quero sorver afoito do vinho
Do Graal que me cura sozinho.






[1] Nome maori para e espécie Arachnocampa luminosa, verme luminescente endêmico da Nova Zelândia, que adere ao teto das cavernas, dando-lhe uma aparência de ceu estrelado.

O VELHO NO BANCO


“All I hear is the sound
Of rain falling on the ground.
I sit and watch
As tears go by.”

“As Tears Go By” – Jagger/Richards/Oldham

Tive canções e poemas favoritos:
Tornaram-se trilhas melancólicas.

Tive amigos importantes:
Tornaram-se estátuas.

Tive amigos inúteis:
Tornaram-se cirrose, delirium tremens, sífilis.

Tive amigos comuns:
Tornaram-se estatísticas.

Tive almas que realmente amei:
Tornaram-se chagas quase físicas.

Eu sou o próximo da fila.
Mas sou diferente: sou místico.
Tornar-me-ei
metafísica.  




sábado, 25 de abril de 2020

O GRITO


Deveis ouvir o grito
de Sião de São Jorge da Mina da Bastilha
Vila Rica Canudos Salvador 
São Petersburgo Saigon Angkor
Durham Chicago Nanquim Manila
Wounded Knee Amritsar Hiroshima
Selma Soweto Sarajevo Stonewall Holodomor
Triangle Shirtwaist Auschwitz Dachau
Gaza Alepo Paraisópolis Vidigal

Deveis chorar
o chorume azedume queixume estrume
morfina putrescina cadaverina cocaína
do gueto navio tumbeiro chiqueiro canil
aterro sanitário manicômio humanitário
e servil
onde rastejam o escaravelho bosteiro
a mosca-berneira
o ascomiceto trigueiro
a barata-americana
o urubu carniceiro
o enxofre e o metano
onde os ganidos tristes sem limites abafados
pelo discurso das mesas das tribunas
das mesas do tribunal
das mesas de escritório
resistem merencórios
às vezes resignados às vezes desesperados
à beira do costado
à beira da sanha animal

Deveis ouvir o grito
O grito
Não ouvistes?
Pulou o muro pichado
entrou pelas vielas
onde vive o gado
pelo raio que os parta
pelos quintos dos infernos
pela puta que os pariu
onde Judas perdeu as botas na quebrada
pela mina soterrada
pelo canavial de trabalho mal pago
pela confecção de trabalho escravo
pelos escravos transportados
pelo crime organizado
pela mão-de-obra desqualificada
pela escola abandonada
superfaturada
pelo hospital dos baleados
das grávidas adolescentes
e dos aposentados
pelos varais do cortiço
pela zona do baixo meretrício
pelo pavilhão de cadeia
como um salve geral
pela fila da assistência social
e ecoou no necrotério
com amplo abastecimento
e no cemitério
sem taxa de sepultamento

Ouvi o grito!
Como algo que vos doa na real
que jamais vos pareça normal
e luteis por apagar o pavio
Antes que exploda a guerra civil.





segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

VAPOR



Ruas apinhadas, homens com chapéus incômodos, mulheres e seus cestos de roupas a lavar no velho Mississipi. Barcos a vapor. Velhos mutilados da Guerra Civil. Vida que pulsa na mesmice que prefere não pensar em morte.

Mas morte é o que vive em mim. Morte da menina esmagada pela locomotiva. Vapor. Barco. Locomotiva. Vapor é o que alavanca o movimento, a vida que se dissolve, embora tu creias nunca.

Os negros marcham com seus trombones, tubas, saxofones, tambores, comemoram – o quê?! Lembram-me dos blues e dos spirituals que os meeiros entoavam na safra do algodão na fazenda do pai. Parece que tiram dignidade do expirar a sua música, incólumes, dói menos...

Meu violão e harmônica não doem menos. Eles choram para ninguém quando toco no bar. E o cretino do Maurice me paga uns trocados por isso. Ou, invés dos trocados, uma cumbuca de chitterlings[1], uns nacos de cornbread[2], uma dose de uísque dos alambiques clandestinos de fundo de quintal. Filho da puta do Maurice, não entende nada de vida nem de música, se entendesse não explorava músicos nem alcoólatras. Eu sou os dois.

A menina me estendeu a mão debaixo da locomotiva. A menina era minha filha. E eu estava bêbado demais para alcançá-la.

Mas que te importa? Pássaro cego e preso canta melhor. Senta nesta banqueta que eu sou capaz de te fazer chorar com duas estrofes.

Sabe, eu já apaguei o que fui. Tudo aquilo é passado. Ninguém me conhece deste lado da divisa, nem a Polícia tem jurisdição aqui.

Meu nome agora é Peter. Não é Peter o apóstolo que nega o Mestre e aquilo mesmo que é? Ou seria melhor Paul, o apóstolo que cai do cavalo, que muda de vida, mas que chega atrasado, precisa ficar cego para poder enxergar, é isso a odisseia da vida então?

Que seja, o nome da pia batismal, de cartório, esse foi pela latrina junto aos documentos. Em breve nem eu mesmo me lembrarei dele. Não era assim quando se entrava num monastério? Seu nome, seus cabelos, seu sexo, seu orgulho, ficavam do lado de cá da clausura. Ali dentro nascia outro homem, arrependimento de Agostinho, inocência de Francisco, desespero de Lutero.

Tenho refletido muito sobre isso. Só que o meu sacerdócio é o do bardo nômade. Um homem que canta suas raízes tira sua seiva da estrada, sua alma vem da terra, ele respira bruma, canta os murmúrios da chuva, se alimenta do rocio da madrugada.

Só por isso eu tive coragem de fazer aquele pacto na encruzilhada.

O houngan[3] das Antilhas, o espírito ao seu lado, desenhado em trevas contra o fundo de luz esfumaçada que só eu vi: “Tudo te darei e nada terás” – eu ouvi ou eu supus?

Sabe, doutor, eu fui bem sucedido nesse negócio de música, me apresentei do Texas ao Maine, tive ideias para 235 canções, registrei todas. O último vagabundo que tentou me passar a perna agora é comido por bagres no fundo de um leito.

E olha o que sou hoje. Na verdade eu só queria um remédio para esquecer. Eu não gosto lá muito de psiquiatras, o último que conheci tentou me prender com os loucos – por que todo mundo acha que pode me meter grilhões? – depois desistiu quando disse que lhe arrancava as tripas com as mãos se tentasse, aí então me deu umas pílulas que eu tomei e vi a vida como ela era do avesso e foi horrível, horrível, sabe como é doutor?

Eu queria esquecer tudo isso, mas o espírito trevoso não deixa. Ele estava de pé lá no quarto do hotel, hoje mesmo de manhã. Ele disse “a sua menina me chegou como metade do pagamento, mas eu nunca vou embora sem a última prestação”.

Doutor, eu vim aqui como último recurso, disseram que tem uma cigana em Baton Rouge que aprisiona almas em sua coleção de cristais, e que tem um pastor pentecostal em Saint Louis que expulsa demônios, existe isso de se livrar da própria sombra? Existe isso de encontrar a paz? De salvação?

Doutor, se preciso, me tranque aqui, eu não aguento mais...

O doutor ouvia, em total atenção, tomando anotações, mas sentia-se mal, sem saber o real motivo, até que se estratificou em horror quando viu o homem gritar, gritar que não queria ir e se transformar aos poucos de carne em neblina, até não sobrar mais nada diante de seus olhos.

  










[1] N. do A.: pedaços de intestino de porco limpo e fritos na própria gordura,  muitas vezes servidos com alho, cebola e molho picante.
[2] N. do A.: pão de milho que comumente acompanha as refeições na culinária sulista dos EUA.
[3] N. do A.: sumo sacerdote no vodu haitiano.