segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

VAPOR



Ruas apinhadas, homens com chapéus incômodos, mulheres e seus cestos de roupas a lavar no velho Mississipi. Barcos a vapor. Velhos mutilados da Guerra Civil. Vida que pulsa na mesmice que prefere não pensar em morte.

Mas morte é o que vive em mim. Morte da menina esmagada pela locomotiva. Vapor. Barco. Locomotiva. Vapor é o que alavanca o movimento, a vida que se dissolve, embora tu creias nunca.

Os negros marcham com seus trombones, tubas, saxofones, tambores, comemoram – o quê?! Lembram-me dos blues e dos spirituals que os meeiros entoavam na safra do algodão na fazenda do pai. Parece que tiram dignidade do expirar a sua música, incólumes, dói menos...

Meu violão e harmônica não doem menos. Eles choram para ninguém quando toco no bar. E o cretino do Maurice me paga uns trocados por isso. Ou, invés dos trocados, uma cumbuca de chitterlings[1], uns nacos de cornbread[2], uma dose de uísque dos alambiques clandestinos de fundo de quintal. Filho da puta do Maurice, não entende nada de vida nem de música, se entendesse não explorava músicos nem alcoólatras. Eu sou os dois.

A menina me estendeu a mão debaixo da locomotiva. A menina era minha filha. E eu estava bêbado demais para alcançá-la.

Mas que te importa? Pássaro cego e preso canta melhor. Senta nesta banqueta que eu sou capaz de te fazer chorar com duas estrofes.

Sabe, eu já apaguei o que fui. Tudo aquilo é passado. Ninguém me conhece deste lado da divisa, nem a Polícia tem jurisdição aqui.

Meu nome agora é Peter. Não é Peter o apóstolo que nega o Mestre e aquilo mesmo que é? Ou seria melhor Paul, o apóstolo que cai do cavalo, que muda de vida, mas que chega atrasado, precisa ficar cego para poder enxergar, é isso a odisseia da vida então?

Que seja, o nome da pia batismal, de cartório, esse foi pela latrina junto aos documentos. Em breve nem eu mesmo me lembrarei dele. Não era assim quando se entrava num monastério? Seu nome, seus cabelos, seu sexo, seu orgulho, ficavam do lado de cá da clausura. Ali dentro nascia outro homem, arrependimento de Agostinho, inocência de Francisco, desespero de Lutero.

Tenho refletido muito sobre isso. Só que o meu sacerdócio é o do bardo nômade. Um homem que canta suas raízes tira sua seiva da estrada, sua alma vem da terra, ele respira bruma, canta os murmúrios da chuva, se alimenta do rocio da madrugada.

Só por isso eu tive coragem de fazer aquele pacto na encruzilhada.

O houngan[3] das Antilhas, o espírito ao seu lado, desenhado em trevas contra o fundo de luz esfumaçada que só eu vi: “Tudo te darei e nada terás” – eu ouvi ou eu supus?

Sabe, doutor, eu fui bem sucedido nesse negócio de música, me apresentei do Texas ao Maine, tive ideias para 235 canções, registrei todas. O último vagabundo que tentou me passar a perna agora é comido por bagres no fundo de um leito.

E olha o que sou hoje. Na verdade eu só queria um remédio para esquecer. Eu não gosto lá muito de psiquiatras, o último que conheci tentou me prender com os loucos – por que todo mundo acha que pode me meter grilhões? – depois desistiu quando disse que lhe arrancava as tripas com as mãos se tentasse, aí então me deu umas pílulas que eu tomei e vi a vida como ela era do avesso e foi horrível, horrível, sabe como é doutor?

Eu queria esquecer tudo isso, mas o espírito trevoso não deixa. Ele estava de pé lá no quarto do hotel, hoje mesmo de manhã. Ele disse “a sua menina me chegou como metade do pagamento, mas eu nunca vou embora sem a última prestação”.

Doutor, eu vim aqui como último recurso, disseram que tem uma cigana em Baton Rouge que aprisiona almas em sua coleção de cristais, e que tem um pastor pentecostal em Saint Louis que expulsa demônios, existe isso de se livrar da própria sombra? Existe isso de encontrar a paz? De salvação?

Doutor, se preciso, me tranque aqui, eu não aguento mais...

O doutor ouvia, em total atenção, tomando anotações, mas sentia-se mal, sem saber o real motivo, até que se estratificou em horror quando viu o homem gritar, gritar que não queria ir e se transformar aos poucos de carne em neblina, até não sobrar mais nada diante de seus olhos.

  










[1] N. do A.: pedaços de intestino de porco limpo e fritos na própria gordura,  muitas vezes servidos com alho, cebola e molho picante.
[2] N. do A.: pão de milho que comumente acompanha as refeições na culinária sulista dos EUA.
[3] N. do A.: sumo sacerdote no vodu haitiano.