terça-feira, 26 de março de 2013

Canção da Lenda Decadente


"Se as portas da percepção forem abertas, as coisas irão surgir como realmente são: infinitas."

Jim Morrison, líder dos Doors


“Morra jovem, permaneça belo.”

Kurt Cobain, líder do Nirvana


Christian Malcolm Ashtray nasceu numa modesta cidade no centro-sul dos Estados Unidos da América (a do Norte, pois existem mais duas outras embora alguns insistam em esquecer). A cidade era Stillwater, estado de Oklahoma, onde fica o campus da universidade estadual.

Dizem que o nome do local fora dado pelos cowboys vindos do Texas em suas comitivas ou pelos índios pawnees que ali residiam e ali sempre encontravam águas calmas, eternamente calmas.

Calmas como nunca foram as experiências de Chris: atravessou uma infância itinerante, morando até em casas de madeira miserável e apodrecida, trailers, abrigos. Do pai nenhuma notícia se tinha após o seu nascimento. A mãe, mais preocupada em arrumar um substituto para o companheiro desaparecido, tudo negligenciava, inclusive a si mesma e à própria honra.

 Um dos padrastos, por azar o que mais se manteve, chegara a esbofeteá-la por mais de uma vez, bêbado em quase todas as madrugadas, gritando o nome inteiro do menino – nome feito da mistura de cristão, de ave frágil e ordinária e de cinzas que ele sempre foi – antes que as agressões lhe atingissem como rescaldo de uma fúria sem cabimento.

 Em suas fugas desesperadas, entre os arbustos cortantes dos bosques próximos, numa tarde em especial angustiante, encontrou um pequeno ninho, onde uma minúscula criatura recém-saída do ovo, que rastejava com esforço ainda cega e sem penas, lhe encantara. Era um filhote de corvo, o único que ousaria chamar de amigo em toda a sua vida. As tardes depois do colégio eram então usadas para visitá-lo, enquanto esquecia a tragédia perene de seu lar.

 Frequentava a escola pública mais próxima e descobriu nos estudos a maior chatice de sua vida. Possuía repulsa aos professores, ao discurso perene e unilateral sobre um mundo, ele intuía, de que nunca poderia fazer parte.

As lições de ética e civilidade na sala do Diretor, constantes – segundo se dizia, exatamente pela falta delas no caráter do menino – e as lições de casa, que se acumulavam como o trabalho nas mesas dos adultos, só lhe representavam uma maneira espúria e criminosa de retirá-lo das tardes entre os arbustos e o corvo, entre o azul do céu infinito e o azul das águas calmas, calmas como as almas dos homens nunca aprenderiam a ser, e por isso se levavam a inventar tantas atividades tolas para justificar sua existência.

Os adjetivos depreciativos passaram a fazer parte do vocabulário de todos que o conheciam, mas, por estranho que pareça, coroavam-lhe com uma estranha dignidade, a dignidade dos eleitos que compreendem e que, por isso, jamais serão aceitos ou amados.

Em um intervalo entre as aulas, entretanto, quando já iniciava o ensino médio, Christian experimentou uma reviravolta em sua vida cinzenta. Ouvira a voz de uma ninfa recém-desabrochada das flores do etéreo e esta voz, fato inédito, sussurrava o seu nome.

 Chamava-se Jully Andersen – ela se apresentara – e revelou-lhe também ter a mesma idade, ambos nascidos no verão de 1971.

 Descobriram alguns gostos em comum: revistas em quadrinhos, contos de terror, nomes proscritos da música popular que poucos em sua idade conheciam. 

O amor de Jully por algumas matérias na escola ajudaram Christian a melhorar seu próprio desempenho. Por exemplo, era a primeira vez que enxergava alguma coisa de belo nas leis da física, nas partículas da química e nas razões que teriam levado George Washington, Abraham Lincoln ou Henrique Tudor a fazer o que fizeram. É que às vezes lhe parecia que os homens do passado não foram constituídos de carne e osso, mas de alguma substância informe e desaparecida nas eras que nada mais tem a ensinar.

 Talvez fosse culpa daqueles insuportáveis que ensinavam com tanto marasmo e talvez até com rancor. O mundo deveria ser feito só de poetas e de ninfas. Por que há tanta gente no mundo especializada em roubar a beleza das coisas? Deve ser por isso que bebem, que gritam, que se matam, é porque lhes roubaram a poesia original. E nestas coisas meditava, e se calava, e fazia anotações nas beiradas das folhas dos Sonetos de Shakespeare que roubara da biblioteca e se masturbava com a imagem de Jully a se contorcer em sua cabeça, e depois dormia abraçado aos lençóis, como um cão que se encolhe no inverno.

Eram também estas as coisas que contava ao seu inseparável confidente, o corvo, agora já estufado de penas negras e capaz de voos razoáveis. Os voos do corvo já o levavam para a casa de Christian e ali se achegava para pousar em sua mão enquanto o olhava com olhos estranhos, olhos de corvo de Edgar Allan Poe.



           *                                                        *                                             *                          

            As más línguas da vizinhança, implacáveis, continuavam a demandar uma providência social contra Chris. Profilaxia, castigo, ocupação decente, trabalho voluntário, o que fosse.

Sua mãe, agora mais atenta à opinião pública do que a si mesma e à sua triste história – não obstante jamais atenta ao filho – decidiu levá-lo para o coral da Igreja. Igreja bem quista pela comunidade, algumas pessoas problemáticas entraram lá caindo aos pedaços e saíram cidadãos respeitáveis, deveria servir.

 Reverendo Hall, sempre muito solícito e comunicativo, recebera-os na primeira visita.

 E foi ali que Chris iniciou suas aulas de violão e canto com a Sra. Hall, esposa do pastor. Aprendeu rudimentos de teoria musical, ritmo, conheceu os clássicos de Bach, Handel e Beethoven, e muito, mas muito dos negro spirituals.

 Cantava em casa esses louvores entremeados de dor dos negros das plantações de algodão, sensação muito parecida com a que sentia, da alegria do canto nascida em peito dolorido.

Na noite de Natal daquele ano, tudo estava sendo preparado na igreja. Desde o Dia de Ação de Graças – quando Jully resolveu dar as caras em sua casa – ensaiavam-se músicas e apresentações teatrais, e Christian resolveu convidar seu amor para vê-lo.

Haveria uma apresentação do coral entoando clássicos como Peace in the valley, Oh come all ye faithful, Amazing Grace e Silent Night.

 O reverendo faria sua pregação com base no segundo capítulo do Evangelho de Lucas e depois haveria uma montagem de A Christmas Carol de Dickens, encenada pelas crianças. Por fim, uma ceia comunitária no salão social.

Jully aceitou o convite. Estava feliz.

*                                                        *                                             *                         
A noite tranquila chegou. Jully não foi. Enquanto aguardava sua vez de se apresentar, o menino saía até a rua para tentar ver a tão esperada. E nada.

 Nem o corvo apareceu.

 No dia seguinte, Chris correu até a casa de Jully e ouviu aos berros de seu pai que a garota havia engravidado de um cara (o mais imbecil da escola, frise-se bem) e iria fugir com ele para a Califórnia. O velho bufava de ódio “que vá para os diabos vagabundazinha”.

Que encanto ainda haveria para ele naquela cidade? Agora era a revolta que lhe encravara no espírito

Se permanecesse naquele lugar, só lhe restaria conseguir um emprego no Wallmart, na Universidade ou passar num concurso público para preencher formulários ou tapar buracos da rodovia.

 Começou a tocar nas ruas e em bares até de madrugada. Tocava um rock bem clássico, no estilo dos anos 60. Sempre quisera fugir da mistura de folk, country, blues e rock que apelidaram de “Red Dirt Music” e que era a marca registrada de sua cidade natal. Não queria nada daquela merda, nem as lembranças que tendiam a aderir mais do que a poeira dos sapatos que ele já descartara.

Mas era preciso ir embora. Que mais faria ali?

E para onde iria? Go West, diziam os antigos. E não era pra lá que Jully ia tentar a vida, ainda que com outro? Nunca se sabe...

 Arrumou a pouca bagagem que levaria, e depois de uma longa e patética despedida do Sr. Hall, que lhe presenteou com uma bíblia na versão do Rei Jaime, e cheia de comentários, tomou o último ônibus da rodoviária.

Foi a Los Angeles. Ali se assustou: parecia uma selva, caminhos infinitos de concreto percorridos pelos viadutos e edifícios, gente estranha e de todo tipo, protótipo do caos urbano.

Apresentou-se numa espelunca, onde ninguém notou muito a sua presença. Mas conseguiu um lugar para se hospedar, um quarto imundo, sem energia elétrica e coabitado por baratas – e barulhento também, já que se ouviam as buzinas dos carros no engarrafamento e os gritos dos bêbados no balcão do bar que ficava logo abaixo.

 Para pagar as despesas, ele ainda trabalhava lavando pratos e servindo às mesas, quando também começou a beber para esquecer o passado. Foi arrumando amigos arruaceiros, que se reuniam para ouvir velhos discos de rock n’ roll, falar de mulheres, jogar pôquer e tomar cerveja. Aí também conheceu a cocaína, e desde então os entorpecentes de várias espécies passaram a fazer parte de sua vida.

Montou uma banda de heavy metal cheia de colorido, laquê e lantejoulas – como era modinha na costa oeste daquela época – a qual agradou muito, passando a fazer vários shows pelas proximidades.



Começaram a ganhar muito dinheiro. O público adorava ver aquele baterista martelando os tambores com a selvageria de um Neanderthal, o baixista com uma cadência milimétrica, os dois experientes e virtuosos guitarristas, brutos e delicados ao mesmo tempo, ofertando a dose exata de peso e lirismo.

Mas a atenção principal era o vocalista, uma personagem em cima do palco, vestido eternamente de preto, com um olhar misterioso e penetrante, longa cabeleira encaracolada, as mãos crispadas ao microfone, a voz possante e aguda. Nascia uma estrela, nascia uma lenda: Chris Ashtray, o Cavaleiro Negro.

 E se a imprensa local lhe perguntava:

 - Quem é você?

 Ele respondia, áspero e direto:

 - Eu sou a morte.

Nessa toada, começaram a viajar pelo país. Iam a Las Vegas apostar nos cassinos tudo o que ganhavam. Às vezes ganhando, às vezes perdendo, mas mantendo o mais importante: a emoção do jogo.

Continuaram as apresentações, desentenderam-se, misturaram-se a outros músicos ainda melhores: a junção de bandas diferentes gerou uma nova e definitiva – os Black Angels.

Era tudo mais perfeito e harmonioso, um trabalho sério, não mais apenas companheiros de farra. Sonhavam ser muito mais famosos.

 A formação estava completa: Chris Ashtray no vocal, Mark Angel na guitarra rítmica, Adrian Lee na guitarra-solo, David Ramsdom na bateria e Kim Berry, um descendente de orientais, no baixo.

Uma madrugada, quando se apresentavam no palco de uma média casa de espetáculos, surgiu-lhes a grande chance. Stephen Murdock, um caçador de talentos, estava observando os rapazes.

Ali mesmo entraram em acordo e foi fechado um contrato com uma grande gravadora.

Não fariam mais covers, teriam agora que compor as próprias músicas – Chris já rascunhara algumas, que mostrou a Stephen. Aliás isso não foi motivo de preocupação para Ashtray, que descobrira um enorme prazer com a catarse da composição e no ato de escrever as letras, apesar de não fazerem muito sentido – para ele faziam.

Stephen era o empresário, e, claro, abusou das jogadas de marketing, ordenando aos garotos que revezassem entre o sincero e o teatral, o simples e o exuberante, as escorregadelas e escândalos contrabalanceados com campanhas de responsabilidade social.

 Mas é claro que também lhes arrancava o couro para que o dinheiro continuasse fluindo como água. Os shows pareciam intermináveis, as turnês cortaram o país de lado a lado e de cima a baixo, e logo já atravessavam o Atlântico e o Pacífico.

As prostitutas, os traficantes e os agenciadores disputavam espaço no camarim, esperando as migalhas do sucesso que lhes cabia.

 Em pouco tempo já haviam dilapidado tudo que ganharam com drogas e pareciam trapos sonolentos arrastando a voz nas entrevistas. Era preciso acabar com aquilo.

Todos se internaram espontaneamente em clínicas de desintoxicação – cada um em uma cidade diferente, como consideraram melhor.

Depois de muito sofrimento, solidão, crises de depressão e de abstinência, tentativas de suicídio e de fuga, conseguiram amainar suas tempestades internas. Só Adrian tinha mais dificuldade em se livrar daquilo – e olha que ele sempre foi o cara que dizia que tudo era uma questão de saber usar e que ele tinha pleno controle dos seus baratos e viagens alucinógenas – mas por enquanto dava para levar assim, ele aceitou diminuir e não usar antes dos shows e das gravações.

 O primeiro álbum já havia vendido 2 milhões de cópias, mas isso não era suficiente para Chris Ashtray. Queria mais, já que estava atolado em dívidas: só um milagre poderia salvá-lo. Quanto à tristeza, o pó branco e as pedras azuis lhe tentavam em sonhos e em pensamentos conscientes, mas isso lhe parecia não ajudar muito na atual situação.

O segundo álbum, totalmente manipulado pela gravadora e pelo empresário, apresentava um peso mais moderado e letras mais politicamente corretas, um som mais comercial incluindo três baladas românticas, parecia mais vendável.

Sete músicas caíram como uma bomba nas paradas de sucesso. Algo como um Led Zeppelin IV, um Dark Side Of The Moon do Pink Floyd, um White Album dos Beatles ou um Black Album do Metallica. A porrada sonora de Metal Heart fazia contraste com as românticas Pearls Of My Soul e The Bridges Of New York. Angels Without Heaven, carro-chefe que dava nome ao álbum, chegou ao segundo lugar da parada da Billboard em três semanas e de lá só saiu depois de três meses.

Os videoclipes, abusando do erotismo e da computação gráfica, estouraram na MTV. Poder-se-ia dizer que tocavam em cada rádio do planeta: um fã escreveu de um bar numa montanha do Nepal...

Aos poucos pagaram tudo o que deviam, e melhor, enriqueceram.

 Excursionaram pelas três Américas, depois pela Europa, Ásia, Austrália e Nova Zelândia. A turnê Angels on all the Earth encerrou-se numa véspera de Natal nas Ilhas Fiji, onde emendaram merecidas férias – constantemente perturbadas por papparazzi, é claro.

As arquibancadas ficavam lotadas – o que acontecia nos quatro cantos do mundo. As garotas (e as velhas também) gritavam, num espetáculo de histeria e ninfomania coletiva.

Os ingressos se esgotavam instantaneamente, pagariam qualquer coisa para ver aquele cantor novo, agora de cabelos repicados e cheios de laquê, tatuagens nos dois braços, brincos de ouro, crucifixos pendurados no pescoço, erguendo o punho para o ar, como se amaldiçoasse o destino, e de quando em quando um misterioso e enigmático corvo negro vinha lhe pousar sobre os nós dos dedos.

O público o concebia como algo mitológico e transcendental, e ele acreditava nisto. Uma legítima lenda como aquelas saídas do CBGB ou do Cavern Club. Críticas favoráveis no New York Times, outras críticas um tanto piores. Desde Jelly Roll Morton tocando piano nos bordeis de Storyville e praticamente inventando o jazz, ou Robert Johnson fazendo um pacto com Satã numa encruzilhada à beira do rio Mississipi, em troca de um sucesso fugaz e amaldiçoado que lançaria o blues no mundo inteiro, nunca houve e nunca haverá nada melhor. Nada melhor do que os Black Angels.

Nenhum obstáculo ao caminho das estrelas: “Rolling stones gather no moss!”.

 O resto da banda se preocupava um pouco com o excesso de vanglória de Christian. Isolava-se em seu culto de si mesmo de tal forma que deixara até de participar das famosas orgias com o pessoal todo.

Mas como se ocultava seu antigo sentimento de insignificância! A imagem da sua mãe, da sua cidade Natal, do Rev. Hall, de Jully...

Todavia não era isso o que as pessoas viam nele. A imagem onírica do artista! As pessoas o agarravam na rua como se quisessem pedaços seus, e levavam cartazes, e pediam autógrafos, e tiravam fotos e queriam entrevistas exclusivas! A imprensa o acusara de estar envolvido com magia negra, ter casos com todas as top models da Califórnia, e excentricidades do gênero. Tinha que agradar tanto ao público quanto à crítica, o que era quase impossível, já que os dois sempre discordavam.

Se queria ir jantar fora no quarteirão seguinte, insistiam em levá-lo de limusine.

Lembrava de Jenny e invejava as pessoas pobres e comuns, que construíam famílias relativamente estáveis e maldiziam a vida pelo enfadonho cotidiano. Cansavam-lhe as orgias intermináveis, as noites vazias, as mulheres de almas mortas e pernas abertas.

E aqueles advogados, diretores e empresários, que o tratavam como criança e ficavam loucos como sanguessugas atrás de seu dinheiro?

 Talvez por isto tentava extravasar sua raiva e descontentamento, envolvendo-se em escândalos e inventando outros, agredindo repórteres, sendo preso e solto constantemente.

A última peripécia fora a de falar umas merdas na imprensa sobre gente importante, e agora respondia a três processos judiciais milionários.

 Chris Ashtray, rockstar, alcoólatra, viciado em drogas, promíscuo, milionário, irresponsável, miserável menino “divino”, Apolo da MTV.

 Mas de certa forma o sucesso compensava. Estava a milhares de milhas de altura em relação às pessoas “comuns”.  Enchia-se de orgulho ao ouvir as notícias sobre ele. Ganhou um Grammy, mais uma estatueta do Video Music Awards e recebera uma indicação para o Oscar como ator coadjuvante num filme onde interpretava um... rockstar infeliz, olha só!

 Atingira a marca de 20 milhões de cópias vendidas, o que num mundo de sucessos instantâneos de verão é muito difícil de alcançar e manter, mas não para ele!

Foi numa noite particularmente especial em que recebera uma homenagem de uma sociedade de músicos que adormeceu ternamente e exausto, e os deuses trágicos wagnerianos sussurraram ao seu delírio uma incrível e verídica história:

Primeiro viu um rio caudaloso que vinha do Atlântico e abria um leito enorme nas costas da América do Norte, empurrando jangadas com negros acorrentados e tristes. O rio atravessava New Orleans, Atlanta, Chicago, Nova Iorque, cortava a oeste rapidamente até atingir San Francisco e Los Angeles e terminava seu curso em Still Water, sua cidadezinha, onde deveria acalmar e morrer.














Então viu no espelho dessas águas a sucessão do jazz, do blues, do rhythm n’ blues, do gospel, do country, do soul. Depois veio a junção disso tudo, com certa dose de fúria e de paixão, originando o ritmo mágico que o DJ Alan Freed decidiu chamar de rock n’ roll.

 Inicialmente os negros como Chuck Berry, Little Richard, Fats Domino e Bo Didley dominaram a cena.

 Mas logo os brancos lhes roubaram – roubaram também isto – trazendo gente como Buddy Holly, o “chicano” Richie Valenz, Jerry Lee Lewis, Carl Perkins, Bill Halley e Seus Cometas e o rei Elvis Presley. Tudo isso ainda na década de 50, que revelou outro grande astro, o gordinho simpático Chubby Checker, encerrando a década com o twist, o que fez com que pela primeira vez fosse possível mostrar publicamente que se gostava do novo estilo musical, representado ainda por Gene Vincent, Neil Sedaka e Paul Anka. Até o racismo perdia forças paulatinamente.

Os anos 60 começaram aparentemente calmos, mas trazendo bandas mais rebeldes que vinham da Inglaterra e invadiam a América: Beatles, Rolling Stones, Animals, The Who e Kinks.

No final da década, a contracultura hippie virou o mundo de cabeça para baixo. Folk e psicodelismo habitavam suas cabeças de cabelos longos e ácido lisérgico: Bob Dylan, Joan Baez, Richie Havens, Carlos Santana, Jefferson Airplane, Grateful Dead, The Mamas and The Papas, The Byrds, The Hollies, Joni Mitchell, The Doors, Jimi Hendrix e Janis Joplin.

Inspirados nos solos ferozes de Hendrix e no blues eletrificado do Cream de Eric Clapton, nasciam os ferozes anos 70, e, com eles, o heavy metal: Led Zeppelin, Black Sabbath, Deep Purple, Kiss, Aerosmith, Alice Cooper, Nazareth, Motörhead, Judas Priest, AC/DC. Outros mais idiossincráticos também conseguiram seu espaço: Neil Young, David Bowie, Eagles, Frank Zappa, Elton John... e o Queen aparecia cantando ópera no rock de arena.

 Outro afluente deste rio decidiu beber em fontes como a música clássica, o jazz e o eletrônico, fazendo discos com faixas do tamanho de sinfonias: era o rock progressivo de Yes, Supertramp, Pink Floyd, Genesis, King Crimson, Emerson, Lake & Palmer.

                 No fim destes anos conturbados, a Inglaterra promoveu nova invasão, desta vez de delinquentes chamados punks, movidos a cerveja, pancadaria e anarquismo. Apadrinhados em Londres por Malcom McLaren e depois em NY por Andy Warhol, apresentaram um barulho básico e ensurdecedor de três acordes e cabelos moicanos, tachinhas de metal e couro preto. Sex Pistols, The Clash, UK Subs (No Reino Unido agora não tão unido nem tão pacífico) e Iggy Pop, Ramones, Patti Smith (a poetisa do punk), New York Dolls e Dead Kennedys – nos EUA.

 Isso tudo desaguou no gótico – não o sombrio estilo medieval nem o vampiresco desabafo do mal do século XIX – mas o sombrio estilo grave e poético pós-punk de Joy Division, The Cure, Siouxse and The Banshees, Sisters Of Mercy, The Mission. Também desaguou na New Wave: som mais limpo e mais pop, aparência melhor e mais colorida, sintetizadores e todo aparato industrial e tecnológico: Talking Heads, B52’s, Duran Duran, os irlandeses do U2, New Order (que se originou do Joy Division depois do suicídio de seu vocalista e mentor Ian Curtis), Elvis Costello e Blondie.

 Vieram os grandes astros pop: Michael Jackson, Madonna, Cindy Lauper, Prince, George Michael, Billy idol, Bryan Adams, afora os mais antigos como Tina Turner, Elton John e Rod Stewart, lendas dos 70’s que ressuscitaram na era dos videoclipes.

Dois movimentos metaleiros renovadores revertem o fluxo das águas que tinham quase caído no mar de bosta da discoteca: New Wave Of British Heavy Metal (Iron Maiden, Saxxon, Def Leppard), e West Coast Explosion, nos EUA (Whitesnake – sim, o inglês David Coverdale se cercou de amiguinhos californianos), Poison, Mötley Crue, Quiet Riot, Winger, Guns N’ Roses, Skid Row, Faith No More, Van Halen que já vinha do final dos anos 70). New Jersey forneceu o metal romântico do Bon Jovi e a Alemanha dividida forneceu os Scorpions.

Surge a MTV, grande empreendimento comercial que banaliza o rock.

 Os anos 90 começaram com mais peso com o Metallica (que muito já havia labutado nos anos 80) e Megadeth, levaram o Guns n’ Roses e o U2 ao topo das maiores bandas da Terra e encontrou seu verdadeiro fôlego com o grunge de Seattle (Nirvana, Pearl Jam, Alice In Chains, Soudgarden, Stone Temple Pilots) e terminou com o triunfo de bandas alternativas e independentes, como se viu com Green Day, Offspring, Smashing Pumpkins, Cranberries, Radiohead, Oasis, Blur, The Verve, Prodigy (que de tão alternativas e independentes acabaram todas sugadas pela correnteza do mainstream).

Tudo sempre ameaçado pelos rios transversais do rap (música de protesto surgida nos guetos de Nova Iorque no início da década de 80), reggae (miscelânea do calipso caribenho com o rhythm n’ blues, joia lapidada dos jamaicanos Bob Marley, Peter Tosh e Jimmy Cliff), disco e dance music (estas últimas sobrepondo-se no processo histórico, dominadas por um bate-estaca roubado do funk de George Clinton e James Brown, agora novos hinos da alienação de clubbers e playboyzinhos regados a ecstasy e vodka, dançando no afã de negociar uma noite num motel barato, sábado após sábado...).

No fim, tudo foi aterrado pelo lodo uniforme de conjuntinhos, cantorezinhos e cantorazinhas infantilizados, imbecilizados, mercantilizados e sem talento, tão profundos quanto um comercial de chicletes...



E tudo isto Chris viu em seu sonho, até que a lama, a água e a História foram sugados por um imenso sol negro, com um núcleo cor de sangue, do qual tentava desesperadamente fugir, mas sem êxito.

Então acordou, banhado em suor e em lágrimas.

Passou o dia com a angústia de saber que era agora o limiar da história da música – e o miserável humano perto do fim de tudo que um dia chegou ao auge: o Nada.


*                                                        *                                             *

 O pressentimento de Chris não tardou a se concretizar.

 Um telefonema irrompeu no silêncio. Uma voz chorosa anunciava que Kim estava apresentando sinais de insanidade, alucinações, falas desconexas, ataques de fúria, etc. etc. E lá sempre estava a imprensa, canibal, cruel, aproveitando-se de tudo.

Seus amigos levaram-no a todos os especialistas que conheciam e sempre aquela conversa de médico: exames, testes, laudos, vamos aliar a medicação pesada à psicoterapia, vamos tentar uma técnica nova indiana...

Mas jamais houve qualquer melhora. Sabe, se a vida fez isso com ele, se isso já vivia encalacrado lá dentro como uma bomba relógio e agora explodiu, se ele fritou tudo com as drogas, nós nunca saberemos – disse Adrian um dia, à porta do quarto de hospital, às três horas da madrugada, quando Kim quase arrancara as veias para fora do braço com uma lâmina de barbear.

Acharam melhor interná-lo, ao menos por um ano, e o fizeram, contra a vontade do doente.

Foi triste, triste mesmo, e ninguém nunca mais teve coragem de visitá-lo. Tiveram de substituí-lo por outro baixista, Roger Perry, e lançaram mais dois álbuns, sem obter o mesmo êxito – a magia e o ânimo não eram mais os mesmos.

E o pior ainda estava por acontecer: num belo e maldito dia, quando Mark encontrou o corpo inerte, numa de suas mansões. Era Adrian – resultado da necropsia: overdose de heroína.

Agora era hora de parar. Em nome do respeito e da admiração que mantinham pelos dois amigos idos, um morto e o outro morto em vida, a banda terminou, anunciando o fim numa entrevista coletiva.

Chris Ashtray estava acabado. Os tranquilizantes se tornavam um consolo cada vez mais constante.

 Mas sentia que sua carreira não precisava exatamente terminar. Não precisava se tornar um cretino como Roger – aquele sempre foi o mais medíocre mesmo... – que acabara de fracassar como empresário e como ator e tentava levar algum processando o resto da banda pelos motivos mais idiotas – devia passar os dias maquinando bosta com seu advogado, não é possível...

 Pensou então em levar uma vida menos agitada, quem sabe a postura de um senhor mais respeitável, de cabelos curtos e gostos mais tradicionais não lhe conferissem um outro público-alvo?

Passou férias reconfortantes em Paris, bebeu vinho e café à beira do Sena, percorreu a mesma noite boêmia que fora percorrida por Verlaine, Rimbaud, Modigliani, Hemingway. Visitou o hotel onde Jim Morrison morreu numa banheira olhando para a luz do sol que entrava por uma janela e depois visitou seus restos mortais no Cemitério Père-Lachaise, onde repousa ao lado de Chopin.

Ali teve a ideia de se tornar um cantor de canções standard, canções padrão no que se refere à velha estética americana. Não estavam fazendo isso na Europa com novas roupagens para boleros, árias de ópera e canzone de Nápoles? Ele o faria ao bom estilo Frank Sinatra, Tony Bennett, Bing Crosby, Nat “King” Cole, Johnny Mathis, seus ídolos de infância.

 A gravadora relutou, mas decidiu arriscar, com uma enorme campanha publicitária. Deu resultado.

Chris voltava às paradas, enquanto seus ex-colegas Adrian, Mark e Roger, um pouco cheios de inveja, iniciavam uma turnê com banda nova, tocando músicas próprias e músicas dos tempos de Black Angels, sem pagar royalties a Christian.

Ele preferiu ignorar. Manteve-se em sua nova máscara adulta, responsável e quase estoica.

Manteve a mesma máscara estoica quando deu em todos os jornais que um acidente de avião matara Adrian, Mark e Roger – “os Anjos morreram para sempre”, anunciara-se num tabloide.

Embora parecesse insensível aos olhos de todos, tratava-se apenas de uma peculiar maneira de lidar com a dor, a dor de ver seu mundo inteiro, com todos os seus referenciais e porta-retratos, memórias e esperanças, desmoronar.

Christian Ashtray, o cantor circunspecto de baladas românticas, compareceu ao enterro. Foi mirado por todos, fotografado ao extremo, comentado com maldade. Havia até quem suspeitasse de uma mãozinha sua na tragédia. Preferiu nada comentar, mesmo porque todo mundo já se incumbe de comentar demais.

A tempestade interna irrompeu dois meses depois, numa crise de depressão. Cancelou todos os compromissos e decidiu pelo anonimato.

Arranjou inúmeros disfarces, e saía pela rua às altas horas da noite, chutando latas, arremessando pedras ao destino invisível e sem formas, resmungando apressado de cabeça baixa.

 Era um homem não mais reconhecido, sem sucesso, o dinheiro agora minguando, sem alegria e sem amigos.

Aos poucos ia perdendo os apartamentos luxuosos, os Porsches, as Ferraris, os privilégios, as colunas sociais, e mesmo a autoestima, último apanágio da dignidade de um homem, já se fora.

Escondera durante anos a criaturazinha frágil que havia dentro dele, como o filhote de corvo que conheceu ao sair do ovo.

Quem sabe se não seria justamente este reconhecimento de fraqueza que poderia redimi-lo? A impotência diante do efêmero e dos próprios erros, a lhe irmanar com todas as coisas e todos os homens? Seria isto que os antigos chamavam “sabedoria”?

Foi em um destes momentos que aconteceu.

Vagava pelas calçadas de Hollywood, quando de repente se deparou com aquela mulher, caída ao chão, esfaqueada e ensanguentada, depois de ter sido arremessada de um carro. Logo percebeu que se tratava de uma prostituta, daquelas que trabalhavam pelas redondezas, e se apiedou como há muito tempo não o fazia, pois já havia se destreinado de sentir pena de qualquer um.

Quando olhou profundamente em seus olhos de lágrimas e maquiagem borrada, percebeu que ela era Jully, a mesma Jully que tanto amara na adolescência, agora travestida desta forma decadente.

Gritou por socorro e conseguiram auxílio para chegar ao hospital mais próximo, onde todas as providências foram tomadas.

 Finalmente puderam conversar quando ela se recuperou, embora tudo que ela dissesse por dois dias consecutivos fosse apenas o nome de seu herói improvisado: Chris! Chris! Chris!


*                                                      *                                              *

Quando ela recebeu alta, eles foram morar num dos apartamentos de Christian, bem situado em Manhattan. Frequentavam os espetáculos da Broadway e até se intrometeram no mundo do teatro e da literatura infantil, produzindo alguns escritos de certa sensibilidade e imaginação, embora considerados imaturos pela crítica especializada.

 As novas perspectivas pareciam boas, as noites de amor eram interessantes e selvagens, o cotidiano era suavizado pela necessidade constante de viagens, apresentações e entrevistas, o que não lhes cansava em nada um do outro.

Este foi um paliativo perfeito para a interação de dois espíritos misantropos, acostumados à solidão forçada e ao exílio das idiossincrasias, pela primeira vez na vida dispostos a dividir a vida com alguém. Ingrata tarefa!

Também não mantinham qualquer espécie de contato com seus pais ou o restante da família, o que evitava as datas terríficas que perderam o sentido ao longo da história e que reuniam artificialmente as pessoas em torno de uma mesa de fartura e de bocejos, tais como o 4 de julho, o Dia de Ação de Graças, Natal, Réveillon...

 Começou a ocorrer-lhes a ideia de ter filhos, de abandonar a carreira artística e converterem-se em pessoas comuns perdidas na massa de trabalhadores e donas-de-casa. Recusaram amantes e propostas indecorosas, diminuíram as brigas que no início sempre acabavam em safanões mútuos, hematomas e delegacias.

Tudo até normal, normal até demais, cafés ao invés de drinks, leito nupcial ao invés de madrugadas aventurosas, problemas íntimos ao invés de escândalos.

Jenny engravidou na mesma primavera em que Chris recebeu o direito de afundar suas mãos no cimento fresco da Calçada da Fama, e agora parecia que a maldição do rockstar havia se acabado.

 Foi quando ela deixou uma carta sobre a cômoda avisando que abortara e que ia embora para sempre, que o problema era ela e não ele e essas coisas que se diz quando não se tem o que dizer.

Christian passou três meses em desespero, voltou a beber ensandecidamente, a arrebentar pessoas e coisas que encontrasse em seu caminho.

 Durante uma chuva fria de dezembro decidiu mudar-se temporariamente para um castelo semidestruído que adquirira no Norte da Inglaterra. Aquele seria o cenário perfeito para seu fim.

Trancou-se num dos quartos, que pertencera a um arquiduque amaldiçoado que se enforcara por amor a uma donzela leprosa. Cães do inferno sombreavam sua alma atormentada. Sabia que a mente humana era a máquina mais perversa do universo, e ele mesmo foi capaz de tudo, beirou as fronteiras da existência, da razão, do absurdo.

Colocou um LP com músicas de Grieg para tocar no gramofone restaurado que adquirira em Paris, apanhou o revólver de pequeno calibre que guardara na gaveta, encostou-o ao palato, e disparou. O sangue escorreu pelo antigo assoalho. Era como se um misterioso Angus Young tocasse a Canção de Solveig no Valhalla, para que as bestas do Ragnarök pudessem se lamentar antes de dar início ao fim do mundo....


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O corvo negro alçou voo pela última vez. Seu protegido partira para sempre e sua missão falha de guardá-lo se esgotara. Sentiu uma dor intensa, como se lhe prensassem as vísceras. Seus órgãos internos pareciam querer sair para o mundo externo, estava zonzo e atordoado. Suas asas bateram-se desesperadamente contra os rochedos, até que despencou ao mar como uma estrela em todo o seu esplendor antes de chocar-se contra as trevas do Universo, e desapareceu nas águas da incompreensão e do anonimato.