sábado, 25 de abril de 2020

O GRITO


Deveis ouvir o grito
de Sião de São Jorge da Mina da Bastilha
Vila Rica Canudos Salvador 
São Petersburgo Saigon Angkor
Durham Chicago Nanquim Manila
Wounded Knee Amritsar Hiroshima
Selma Soweto Sarajevo Stonewall Holodomor
Triangle Shirtwaist Auschwitz Dachau
Gaza Alepo Paraisópolis Vidigal

Deveis chorar
o chorume azedume queixume estrume
morfina putrescina cadaverina cocaína
do gueto navio tumbeiro chiqueiro canil
aterro sanitário manicômio humanitário
e servil
onde rastejam o escaravelho bosteiro
a mosca-berneira
o ascomiceto trigueiro
a barata-americana
o urubu carniceiro
o enxofre e o metano
onde os ganidos tristes sem limites abafados
pelo discurso das mesas das tribunas
das mesas do tribunal
das mesas de escritório
resistem merencórios
às vezes resignados às vezes desesperados
à beira do costado
à beira da sanha animal

Deveis ouvir o grito
O grito
Não ouvistes?
Pulou o muro pichado
entrou pelas vielas
onde vive o gado
pelo raio que os parta
pelos quintos dos infernos
pela puta que os pariu
onde Judas perdeu as botas na quebrada
pela mina soterrada
pelo canavial de trabalho mal pago
pela confecção de trabalho escravo
pelos escravos transportados
pelo crime organizado
pela mão-de-obra desqualificada
pela escola abandonada
superfaturada
pelo hospital dos baleados
das grávidas adolescentes
e dos aposentados
pelos varais do cortiço
pela zona do baixo meretrício
pelo pavilhão de cadeia
como um salve geral
pela fila da assistência social
e ecoou no necrotério
com amplo abastecimento
e no cemitério
sem taxa de sepultamento

Ouvi o grito!
Como algo que vos doa na real
que jamais vos pareça normal
e luteis por apagar o pavio
Antes que exploda a guerra civil.