segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

ESCÂNDALOS NO SUPERMERCADO


“Her green plastic watering can
For her fake Chinese rubber plant
In the fake plastic earth…”

                                 RADIOHEAD

 
Entre os hortifrutigranjeiros

chego a sentir-me vivo e ancestral,

desejando o sumo da uva, da maçã, da atemoia.

Melões maduros, melancias calejadas e kiwis cabeludos

são sonhos eróticos na mercearia.


Chego a desejar enraizar-me como as batatas e as mandiocas

e enterrar minha cabeça no chão como o avestruz de pelúcia

[da meiga seção infanto-juvenil.

 
Carnes expostas no vidro do açougue

penduradas liricamente aos fregueses atentos

lembram-me das bancas de jornais – açougues humanos –

e me comovem as bocas abertas arrebentadas do cação e da tilápia,

o leitãozinho pendente no pau-de-arara,

as galinhas decapitadas e as vacas esquartejadas.

Ah, presuntos, salames e salsichas,

Com suas porcarias moídas

Como uma antropofagia cultural!

 
Ali os laticínios

Aqui os farináceos

Acolá os cereais matinais

E voltamos aos galináceos:

Eu quero um espeto de corações!

 
Tenho fome, tenho uma ira de consumo.

Meu carrinho de supermercado precisa de itens

como eu preciso forrar-me

de serragem e de palha.

 
Chegamos à padaria:

Os fornos e seus odores sedutores

lançam-nos o pão nosso de cada dia

que cheiram à ilusão de lar.

 
As geladeiras mantêm as bebidas, os iogurtes,

as margarinas, os nuggets e outros quitutes

em estado latente de preguiça

para quem gosta de encher linguiça.

 
Não esquecer sabonete, shampoo, rejuvenescedor facial,

óleo de bebê, papel higiênico, veneno arsênico, hidratante corporal,

que há uma tênue e perene manutenção

daquilo que não se pode manter.

 
Todo eu sou necessidades

do que eu vi na televisão

e nas pop-ups das redes sociais.

O que era da humanidade no passado

antes do advento do Atacadão?

 
Estou surtando.

Estão anunciando

ofertas, crediário, saldão

e mais um stand de degustação.


Eu quero bradar ao mundo o Código de Defesa do Consumidor!

Eu quero valium, paracetamol, para matar a dor!

Eu quero ser resistente às intempéries e aos grudentos

como teflon!

Eu quero matar corajosamente

como detefon!

 
Eu fujo dos seguranças, do caixa, do gerente.

Avanço pelos corredores

numa psicose fremente.

 
Eu quero exilar-me do meu mundo de plástico,

de acrílico, poliéster e tactel.

Eu nunca imaginei ser possível morrer de fome

com a cara emborcada num prato de mel.

 

SONETO DE ANDERSEN


Na Dinamarca romântica e fria,

Viveste pobre e temperamental.

Foste tecelão, ator, dramaturgo,

Excêntrico, só e homossexual.

 

E se fosses pedófilo tal Carroll?

Ou burocrata como os irmãos Grimm?

Ou se da oposição como Collodi?

Ou tivesses de Barrie o amargo fim?

 

Mas teu soldadinho de chumbo era

Abnegação, como a sereiazinha,

E o patinho feio eras tu deveras.

 

A menina dos fósforos calava

E o rouxinol do imperador o canto
 
Que tu, aos homens sem coração, legavas!
 

 

O ÚLTIMO NOTURNO DE CHOPIN


As mãos bailantes ao marfim das teclas

Polonesas raízes aos pedais

Tal qual um cervo cravado de flechas

Expiaria em baladas seus ais.

 

Foste o ser feito para o piano

Como árvore com seiva em berceuses

Encurvada tísica sobre o tampo

Sobrevivendo marcada aos revezes.

 

Vendo prelúdios nas gotas de chuva

Tecendo uma valsa em um só minuto

Teus noturnos nascendo na tarde turva.

 

Mais de um século morto no Absoluto...

Ainda posso chorar a tristesse

Se tocas a marcha em tom diminuto.

 

 

sábado, 2 de fevereiro de 2013

O Professor de Estética


Ó caro professor,

Ouça minha crítica sem rancor,

Pois ando tendo um tremor de infelicidade

E não pretendo pagar a mensalidade.

 

O mundo é sintético demais em tua análise:

Queres achar Saussure nos sussurros

Umberto no eco

Barthes no bartender da história

Aristóteles no aristocrata do filme

Kant nos cantos do verso

E Hegel nas entrelinhas...

Basta!

 

Ora uma expressão do inconsciente,

Ora uma crítica marxista,

Queres achar a metalinguagem do Autor

Mas nem reconheces Deus na Vida.

 

“O poema contém tudo

menos poesia”.

 

João-de-barro de pedra

Água-viva morta

Comigo-ninguém-pode surrada

Abelha-rainha deposta

Louva-a-deus ateu

A tudo desconstróis!

 

Ó professor de estética,

Assassino da beleza de todas as coisas.