segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Abertura Solene de 1870

                                            Diário de Guerra do Tenente João Marcos


Agora que tudo passou e só vive em memórias, posso retratar o estranho acontecimento, que tantas marcas deixou em minha alma.

Não falo como médico ou combatente, mas como alma perdida deste mundo.

Somos matéria desconhecida. Cumprimos rumos extravagantes no milagre que se chama vida, infinita jornada.

Onde estaria o limite entre a realidade e a loucura?

É o que me intriga, desde que conheci aquele ser, tão extraordinário quanto peculiar.

Foi ainda durante a guerra. Abatíamos duramente as forças de Solano López. Ainda não sabia que eu servia a interesses britânicos, apenas zelava por minha pátria e pela lenta recuperação de meus soldados.

Certo dia, enquanto preparávamos tudo para o acampamento, num final de tarde, percebi a bandeira de aviso sendo acenada.

Aproximei-me receoso, imaginando encontrar ali algum prisioneiro inimigo ou algum aliado gravemente ferido.

Ainda não sei ao certo o que encontrei.

Meu espanto não foi menor que minha repulsa e minha ojeriza. Nunca vira antes coisa tão disforme a se delinear em minhas retinas.

Era uma trincheira abandonada, cheia de pegadas nas poças de lama.

Havia escombros, muito lixo, muitos insetos e muitos ratos.

Em meio a tudo, a criatura.

Olhei-o dos pés à cabeça.

Era preto de sujeiras e queimaduras. Tinha um olho costurado; parecia até mesmo assumir um aspecto pastoso e fantasmagórico.

Os outros homens apontavam suas armas, prontos para atirar naquilo, o que quer que fosse.

Coberto de lixo, coberto de pústulas cancerosas, cheirando mal como a própria podridão.

– Precisamos tirá-lo daqui. – eu insistia.

Mas ninguém tinha coragem de tocar nele.

Foi quando estrondou a voz, grave, mas bondosa e assertiva:
– Eu fico aqui.
– Matem essa coisa! – bradavam os mais exaltados.
– O que temem? Posso ajudar. Posso limpar esse lixo para vocês. É minha função.

Agora todos estavam boquiabertos. As aparências enganam? Aquele homem não fazia de tudo para que o maltratássemos?

– Quem é você? – perguntara-lhe meu colega José do Bagre.
– Não sou ninguém. – respondeu a coisa.

E assim ficaria conhecida por nós: o Senhor “Ninguém”.


*                                          *                                              *


Chegou a primeira noite. Eu o observava da barraca.

Continuava trabalhando. Às vezes desfalecia de cansaço; apoiava-se sobre as pernas raquíticas, vomitava sangue sobre os detritos.

A cena daquela miserável forma de vida mantendo-se de pé a muito custo e recolhendo lixo num gesto quase obsessivo era deprimente.

Por que não se banhava num regato próximo? Teria medo de dissolver-se? Comecei a suspeitar inclusive que não tivesse um corpo propriamente dito. Os restos de terra e o estrume de vaca é que lhe davam substância.

Resolvi dormir em paz naquela noite e esquecer de tudo. Meu encéfalo se apagou da fadiga como se apaga um lampião de querosene.

A escuridão era ampla e tinha braços. Parecia poder atingir-me com seus tentáculos de pavor e insegurança. Os uivos lupinos serviram de pretexto para minha insônia.

Só pelas três da madrugada é que consegui dormir um pouco.

Um sono recortado de pesadelos. O pesadelo enjaulou-me, sangrou-me os punhos e os tornozelos, roubou-me lágrimas.

Um grito foi ouvido no Abismo: “Tirem-me daqui! Foi a Guerra Franco-Prussiana que me colocou aqui! Preso, entre dois lugares ao mesmo tempo!”

Acordei com minha própria hemoptise. Era manhã, a luz solar entrava por pequenas frestas, formava um grande crucifixo no teto. Meu leito bem que poderia ser meu Hades, rodeado de vampiros, bruxas e cadáveres de batalhas.

Senti um rumor de vermes por perto.

Olhei diante de mim. O Senhor “Ninguém” me observava, estático.

Agora meu grito fora bem maior.

Os soldados entraram na barraca. Agrediram duramente “Ninguém” com pedaços de pau e estiletadas.

Ele grunhiu e correu de volta ao trabalho.


*                                          *                                              *


Chorava baixinho quando me aproximei, se bem que não me chegasse mais do que três metros.

Limpava o esterco com uma pá.

Cheguei a pensar que pretendia atirar tudo aquilo em mim, mas não.

– Seu João!

Chamou-me várias vezes durante aquele dia.

– Que é que há, Seu “Ninguém”?
– Nada, não, sinhô. Eu só queria ver Seu João. Eu vos perdôo, viu? Sinhô no fundo é bom. Pretende voltar pra Petrópolis?
– Como sabe? Que é você, afinal?

Aquele homem começava a me incomodar profundamente.

– “Ninguém” sabe que Nhô João trata bem os escravos, reza toda noite e ajuda o orfanato, si bem qu’isso não vai adiantar muito quando chegar a hora de prestar as contas. Sabe também que o sinhô ama a paraguaia. “Ninguém” lê seu coração!
– Eu a abandonei!
– Por ter medo de perdê-la na guerra! Mas ama sim!

Sentia-me já enjoado e atônito. O que era aquela criatura? A par de toda a sua imundície misantropa, sua alma era pura, convincente e sincera. O olhar triste e distante, mas incrivelmente são.
Subia as colinas apoiado em seu cajado.

– Vocês não podem decapitar assim esses velhos e crianças, vocês me ouviram? E esse Conde D’Eu que não faz nada pra impedir? O Caxias era um homem melhor!

Os soldados riam:

– E quem se importa? O que mais pode nos acontecer? Tudo já aconteceu!
– Dostoiévski explica. Já leram Dostoiévski? E Tolstói? Um dia, esses pobres inocentes, essas mulheres violentadas, essas aves do pântano, tudo se voltará contra vós, os grandes cairão, o sertão vai virar mar!

As gargalhadas se acentuavam.

Mas afinal, de que falava aquele homem? Seria mais um Antonio Conselheiro vagando pelo mundo? Ou será que o Conselheiro nunca morrera? Ou será que ressurgira?

O céu exibia a fuga do Sol no horizonte.

Tons confusos de Vincent van Gogh pelas atmosferas.

Paisagens sombrias de um noturno de Chopin tomavam conta de meus olhos e eu me recordava de minha velha e calada mãe, dedilhando com melancolia as partituras do mestre polonês.

Entregava-me à minha preguiça poética, quase Gonçalves Dias, quase Rimbaud, quase Baudelaire.

Tudo era mágico e heróico, sem nenhum feito.

A calmaria das bombas livrava da penumbra o meu exército: negros, cafuzos, mamelucos, estancieiros gaúchos, mato-grossenses, tropeiros de São Paulo, Minas e Goiás.

Sinto vontade de voltar para o Rio de Janeiro, temo o Senhor “Ninguém”.

Resolvo visitá-lo no acampamento, ou, melhor dizendo, na trincheira.

Agora ele tinha um semblante contrariado.

– Pronto para voltar a seu ócio e inutilidade, Tenente João?
– Mas que petulância é essa?!
– Teus amigos, tua sociedade. Tudo máfia italiana amiga de Garibaldi! Pensam-se melhores? Melhores que os trabalhadores que vivem em meio ao lixo?
– Mas, senhor, eu não compreendo...
– Quieto! Sou eu quem falo agora! – e quando ele começava as advertências era quase impossível resistir a ele, tamanha a autoridade e o brilho nos olhos com que falava. – Minha missão se cumpre. Você abriu caminho pra mim. Verá seu mundo ser transformado. Quando os pilares desabam, todo o templo vem para baixo. Pena que o próximo templo é tão iníquo quanto o de vossas orações. Corra irmão, antes que não possas mais correr!

Aquela criatura parecia amar-me gratuitamente.

Tentei abraçá-lo, sem conseguir, devido às sujidades.

Ofereci-lhe uma vida mais digna, banho, comida, engajamento às Forças Armadas. Retrucou-me que a nossa vida é que era indigna.

Propus-lhe uma conversa franca, de homem para homem, que me esclarecesse sobre seu passado e sua verdadeira missão.

Ele parecia animado.

– Amanhã – respondeu-me.


*                                          *                                              *


Dirigia-me, bem cedinho, à trincheira, procurando pelo grande e misterioso mestre.

– Senhor! Senhor! O homem desapareceu!

Fui verificar. O prato com feijão e carne de porco estava intocado. Nenhuma pegada. Nenhum vestígio. Sumira tão misteriosamente como aparecera.

– Despediu-se de mim antes de tomar chá de sumiço. – dizia Zé do Bagre. – Falou que veio de Belém do Pará, um maluco que vem se martirizando a vida inteira. Disse que é pelos pobres e oprimidos.
– Deus meu!
– Não se aperreie não, Seu Tenente! É cabra safado, herege e mentiroso! Contou umas histórias estranhas de destino, missão no mundo, nascer de novo, entrar no rio que tem espumas flutuantes... Doidim, doidim!

A ida de “Ninguém” perturbou-me, como antes sua presença me perturbava.

E, ao menos na minha cabeça, foi a sua partida que desencadeou o que vi na noite posterior, como se sua companhia benfazeja fosse a responsável por manter a maldade do mundo em níveis aceitáveis e controlados.

Foi após o grande êxito obtido na batalha de Peribebuí, agora estávamos em Nhu-Guaçu, ou em Campo Grande, como se diz em língua civilizada.

O exército inimigo era formado em sua maioria por crianças, adolescentes, velhos que mal sabiam marchar. O ditador paraguaio os recrutara à força como uma tentativa desesperada de manter-se vivo por mais tempo.

Eles chegavam bufando como animais, com olhos revoltos, como se estivessem indo ao matadouro, e mal tinham forças para empunhar as baionetas e espadas.

Alguns já deviam ter sido infectados pelo cólera, tantos o foram, inclusive nas nossas trincheiras.

Nossos homens receberam ordens de partir para cima deles, sem misericórdia. A resistência incansável do exército inimigo acirrava a ira de nosso lado, ira que causaria os fatos mais detestáveis da história brasileira.

Naquela noite, ouvi uma marcha triunfal e diabólica, saída dos metais do inferno, com o ritmo marcado pela salva cadenciada dos canhões que mutilavam e explodiam e pelos cascos dos cavalos que retumbavam seu caminho sem volta. Até os músicos que acompanhavam as tropas para animá-las ao combate usavam seus instrumentos para golpear o inimigo na cabeça, enquanto este tentava furar-lhes o ventre com seus facões de lavrador.

O campo aberto se cobria de sangue e o cheiro de pólvora e carne queimada subia aos céus como um holocausto ímpio, oferenda de trevas que fazia a maioria de nós vomitar e virar o rosto para não ver mais.

Mas era impossível não ver. Os ataques vinham de todos os cantos e a insanidade se apoderou dos homens de nosso lado e dos meninos e criaturas senis do outro lado.

Havia urubus voando em círculos pelos ares, como harpias tornando podre tudo o que tocavam – nunca vi tantos urubus! – aguardando o banquete de carniça humana que lhes era preparado.

Fomos vencedores, se podemos chamar aquilo de vitória.

Muitos de nosso lado tombaram, mas nada se compara ao genocídio causado do lado deles.

Atendi tantos moribundos naquela madrugada que não tenho a conta de quantos vi morrer.

Dormi por dois dias ininterruptos depois daquilo, o sono incompleto e atormentado dos injustos.




Semanas depois, chegou-nos o decreto de Vossa Majestade Pedro II: era finda a Guerra do Paraguai.

As tropas do General Correia da Câmara chegaram ao último acampamento paraguaio, em Cerro Corá, e Solano López foi ferido a lança pelo implacável cabo Chico Diabo, e depois crivado de balas.

Os brasileiros ficaram satanicamente eufóricos depois disto. Mataram civis, incendiaram barracas e choupanas, trucidaram feridos e doentes nos ranchos.

Vossa Majestade declarava lamentar os eventos e afirmava que preferiria López preso a morto.

Mas o imperador recuperou sua popularidade. Nas notícias levadas a prelo na Capital, dizia-se que “a justiça divina fora feita”.

A justiça referida pelos meios oficiais consistia na morte de mais de trezentas e cinquenta mil pessoas, no quebrar os joelhos de um país que nunca mais se reergueria e no manter a América do Sul longe de fazer nascer qualquer potência com influência maior que a regional.

Retornei a Petrópolis. Observava a residência da Família Real, lembrava-me minha doce infância, quando passava a noite acordado, esperando o Sol nascer. Então dançava nu pela grama, pisando a terra fofa. Na varanda, minha irmã já aprendia a coser com nossa ama-de-leite.

Tudo passou, tudo varrido. Pensava agora no que significava ser um homem e um cidadão.

Todas as profecias do homem se cumpriram: vi o fim da escravidão e da Monarquia. A proclamação da República e o governo dos marechais. Numa emboscada por questões de terra, o tiro que inutilizou minhas pernas: “Não mais possa correr!”.

Ainda vejo aquela criatura, numa secreta caverna, como imortal deus guarani, em sua missão de profeta de palavras desconhecidas.

Espero sinceramente não o ter desapontado, pois tudo quanto desejo e tudo quanto levo em mente é tornar-me tão nobre quanto o Nobre Senhor “Ninguém”.





quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Os Sinos de Saratov

A igreja de Saratov era triste. Como todo o povoado às margens do Volga, pairava sobre ela uma mancha de passado, uma marca opressiva que preferiu se calar depois da Revolução.

No topo da tímida construção, as torres escorriam como num castelo de areia, exibindo maciços sinos de bronze que aprenderam a resistir ao tempo. Rachaduras sobrepunham-se a um branco pálido, desgastado; branco ruidoso das paredes que circundavam portas resmungantes.

O átrio, ladeado por colunas de estilo coríntio, resguardava um frondoso jardim, das mais diversas espécies vegetais. Este era o verdadeiro tesouro das senhoras de Saratov: a vida e o verde, que brotavam do mesmo solo um dia pisado pelos doentes mentais do Asilo Público.

Lá fora, no mundo menos tranquilo, mas ainda pacato, onde se assentava o parque, cães que se espreguiçavam e dançantes melodias das balalaicas disputavam o direito de transmitir sons.

Dentro desta atmosfera vaga e imprecisa, embebida no vinho do ócio, os sinos falavam por si só, e tinham sua própria história. Presentes do czar, metal do Oriente, timbre específico.

Havia os dois maiores, imponentes, de som grave e pesado como um velho monarca. Havia os intermediários, feitos de um bronze mais lapidado, de som mais desenvolto como damas num passeio. Havia os pequenos, sem muita espessura, de expressão aguda e penetrante, como lindas donzelas. E havia os ainda menores, feitos de cerâmica, delicados e puros como infantes aprendizes.

Todavia, o que os singularizava de fato, por assim dizer, era o sineiro. Ao mesmo tempo regente e executante da orquestra, era um marujo solitário de cidades aéreas, suspenso sobre cordas e músicas de improviso.

Yuri Yuritchim Yurianov era assim chamado desde os tempos do orfanato, pois nenhum registro havia sobre seu verdadeiro nome ou sobrenome. Apareceu de repente, deitado sobre o chão frio, envolvido por uma echarpe de pelo de marta, na porta do Orfanato da Igreja Ortodoxa. E foi lá que cresceu.

Acostumado a comer a famosa e rançosa sopa de batatas – no desjejum, no almoço e no jantar – Yuri apenas aceitava seu destino, pois nenhuma força ou talento, até então, parecia revelar-se para ele. Vivendo sob a alcunha de “retardado”, era sempre ele que varria os amplos salões, limpava as latrinas, observando todos os outros aprenderem a escrever.

O menino preferia não se dirigir aos seus colegas. Vivia absorto em seus pensamentos, sorrindo aos céus como se pudesse desafiar com uma felicidade criada a miséria da sua existência.

Nas aulas, nada mais sabia colocar no papel do que desenhos – rabiscos confusos como seus pensamentos.

Hoje, Yuri tem seu próprio mundo, um lugar que ninguém pode aceitar ou compreender, a não ser a lagartixa que carrega em seu bolso.

O sineiro já aparenta idade, possui cabelos ralos e brancos, parcos dentes na boca que ainda se mantêm intactos e profundos leitos de rio lacrimoso nas faces.

Mas quando lhe perguntam sobre seu passado, palpita uma voz concisa e experiente: “A Segunda Grande Guerra ou a Repressão de Stalin levou os meus pais”.

Verdade ou não o que lhe contaram, isto não importa. Pelo menos garante uma imagem mais heróica do que um mero abandono de bebê por uma mãe perturbada ou despreparada.

Então reina o silêncio, e a conversa termina.

Poucos sabem que foi o contra-revolucionário religioso Alexander o salvador de Yuri. Extravagante e populista? Poderia até ser. Mas o jovem sacerdote envergava ao peito um verdadeiro coração cristão, condizente com o enorme crucifixo que jazia sobre ele, embora muitos usassem o símbolo como os fariseus usavam suas orações.

Padre Alexander agia mais como o publicano, reconhecia-se pequeno e imperfeito, por isso podia aceitar outros seres humanos, tão pequenos e imperfeitos como ele. E em sua pequeneza e em suas crises de melancolia, era maior e mais amado pelo povo do que toda a tirania política dos homens sem Deus.

Yuri dele recebia conselhos sobre o poder do perdão, sobre resistir às tentações, sobre a vinda do Reino dos Céus. Então olhava para a cúpula e as paredes da igreja e os ícones lhe pareciam ganhar vida, como parte de uma história da qual ele mesmo faria parte um dia.

Na mente confusa do menino, Padre Alexander trabalhava como o assistente direto de Jesus, o Salvador, e lá estavam todos eles, pisando nuvens, assentados à roda de uma mesa grande, com muitos pães diferentes para se comer, servidos pela Virgem Maria, preparados por anjos, na companhia de São José, com suas mãos calejadas de carpinteiro e seu sorriso condescendente de sabedoria e resignação, de São Nicolau que lhe trazia os presentes de Natal, de São Serafim de Sarov que já em vida falava com os anjos e com os animais do bosque, de São Jorge que contava e recontava a história de como matou o dragão do pecado, e de São Pedro, sempre com a chave do Paraíso pendurada ao cinto, chave sempre pronta a abrir as portas do Céu a Yuri na hora dos sonhos da noite.



Os dois eram vistos sempre juntos, nas filas para comprar comida e nas aulas improvisadas na torre.

Um dia, a triste carta do bispo chegou ao sacerdote. Os sinos deveriam se silenciar, por ordem da Duma. Se o Estado não conseguira acabar com a fé em Deus – o que considerava uma superstição medieval que continuava a oprimir o povo – que ao menos fosse desencorajada e nunca mais anunciada.

Foi demais para o sonhador Alexander. Com toda a força de seus pulmões, ele bradou em sua mais alta voz, chegando a assustar Yuri: “Toque o sino!”

Eis o início de tudo. A tímida arte só reconhecida por aqueles que aprenderam a rezar em silêncio. Foi a primeira vez que Yuri assumiu seu ofício de sineiro, e a balbúrdia dos sinos foi tanta que o céu se enrubesceu e o padre foi embora com uns homens vestidos de cinza que lhe batiam, para nunca mais voltar.

O garotinho limpava o pequeno nariz nas mangas da camisa, subindo as escadas num ímpeto desatino e, a partir de então, o bronze não deixou de tinir a cada alvorada e a cada pôr-do-sol, mesmo sem haver mais missa alguma.

Desta vez, o Estado não interveio. “Era só o menino, o retardado”. "Quem atenderá à sua canção de lamento?" 

  Quando o Império implodiu e um novo clérigo chegou, Yuri foi dar-lhe as boas-vindas, apresentando-se como o melhor tocador de sinos de todas as terras que a linha do horizonte pode alcançar.

A Igreja Ortodoxa ressurgiu, a Máfia governou, as pessoas correram aos bancos. Tudo isso não interessava ao sempre presente Yuri, que aprendera uma simples mágica da Natureza, que só o Onipotente pode criar e manter, um feitiço que tem seus efeitos, mas não se explica, não se mede e não se conclui. Isso se chama “Vida”.

As rosas do átrio pareciam mais perfumadas e vistosas do que nunca. Um pombo alvo como a neve alçava vôo, migrando em direção aos picos coloridos da Vasilia Blazennogo, a muitos quilômetros dali.

Um besouro pousou sobre o parapeito da janela, mas o sineiro não quis tocá-lo. Ao vê-lo com as pequenas patas para cima, esperneando sem trégua, Yuri deixou correr uma lágrima. E sorriu.




segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A Ópera de Petrônio

Meu nome é Petrônio. Petrônio brasileiro, como milhares de outros Petrônios, com milhares de outros sobrenomes.

Minha história começa no rigoroso inverno de 1943, ano de guerra, maldita ira insensata dos homens.

Foi quando vim ao mundo, numa cidadezinha bem ao sul do Brasil, chamada Santa Rita dos Inválidos. Não adianta procurar no mapa, ela não está lá; é tão insignificante quanto eu.

Como ia dizendo, nasci no tal dia. Minha mãe dizia que eu tinha a mesma cara de sapo assustado que todo recém-nascido tem, mas que, na época, apesar das terríveis dores do parto, ela me achou mais lindo e fabuloso do que qualquer coisa sobre a face da Terra.

Meu pai levou pecinhas de tricô que eu poderia precisar vestir; agia como tolo, como se aquele primeiro encantamento de paternidade o tivesse reduzido ao mesmo estado de jocosidade gratuita e inocência completa daquele bebezinho, que completava o bucólico Auto de Natal junto ao resto da família.

Bom sujeito o meu pai: Sr. Gioachino Antonio; mais tarde eu descobriria ser por causa do Rossini.

Como o caro leitor já deve ter percebido, tratava-se de um italiano legítimo. E o governo federal ordenara que os nobres herdeiros do Lácio entregassem seus aparelhos de rádio. Depois, foram convocados para lutar contra os fascistas de Mussolini, que já mais pareciam fantoches de Hitler na Abissínia e no Mezzogiorno.

Falaram-me de mamãe chorando, agarrando-se a ele pelas barras das calças, na nublada tarde de despedida, como uma Tosca ou uma Lucia de Lammermoor num desespero lancinante de perder o homem amado.

Durante os muitos meses seguintes, Dona Amália teria de se virar para cuidar de mim. Lavando, passando, cozinhando, costurando para fora.

Nunca sequer chegara carta da Itália. Comecei a engatinhar, falar, andar. Brincava com um chocalho de lata, às vezes acertava minha própria cabeça e desatava a chorar. Minha mãe logo acudia, preocupada com minhas moleiras.

Meus avós maternos vieram então ajudá-la nos afazeres domésticos. Nunca saberei ao certo se para exercer solidariedade ou se para preencher o vazio de suas próprias vidas e dar sentido a um casamento esvaído pelos anos. Pelo menos, ao que demonstravam, parecia estar-se mais perto da última opção.
Tudo transcorria calmamente como a pequena horta de alface, tomates e manjericão que mantínhamos nos fundos da casa; silêncio total, talvez quebrado por uma briga de pardais, pelo leve roçar de um ouriço nas plantas da cerca ou duma lesma despencando do muro.

Um dia, eis que surge do horizonte como miragem, eu devia ter lá pelos meus dois anos: um homem em trajes militares, um rosto possuído por um misto de melancolia e alegria, uns olhos fundos de quem tudo viu e preferia não ter visto.

“Papá é aquele, mamã?”

Faz muito tempo, mas me lembro bem dos abraços distribuídos. Lembro até de tê-lo ouvido falar, alguns anos mais tarde, da vitória em Monte Castelo, duma história de descanso e de mulheres na Suíça não muito bem explicada. Lembro dos almoços com frango assado, espaguete, porpeta. Lembro do cálice de vinho de meu pai e de seu olhar distante que às vezes demorava horas para voltar-se ao seu redor.

Depois de certo tempo, meu pai assumira mais estranha postura. Chorava ao ombro de minha mãe, contava sobre o Tenente Maurício, que pisara numa mina e ficara reduzido a órgãos expostos e a uma pasta uniforme de sangue escuro. O recruta Gioachino foi incumbido de recolher os pedaços e guardá-los num saco de lixo.

A vida na roça também já não o agradava. A calmaria talvez lhe parecesse artificial demais no mundo que agora ele sabia tão cruento.

A aspereza do trabalho de carpir sob o sol, a mísera mediocridade do dia-a-dia, as roseiras vermelhas dos sítios, vermelho que ele odiava com veemência; tudo ali continuava a matá-lo.

Só agora posso entender. É como Homero descrevia em suas personagens atormentadas na Ilíada e na Odisséia. As mulheres foram feitas para a maternidade. Os homens foram feitos para a guerra. A isso lhes empurravam seus instintos, a isso conduziam suas vidas cegamente.

Então resolvemos vir para São Paulo.


*                                          *                                              *         


Fomos morar na Lapa de Baixo. Não era a Lapa boêmia do Rio, mas tinha seu romantismo.

Lapa, bairro tipicamente urbano-industrial, terras provindas de sesmarias e fazendinhas de jesuítas, crescimento provindo das ferrovias do café, piqueniques à beira do límpido igarapé Tietê, afluência de imigrantes italianos e eslavos, olarias e sítios sendo substituídos pelo loteamento do Grão-Burgo da Lapa, engenheiros ingleses da via férrea indo morar na City Lapa, no Alto da Lapa, financiamentos da Caixa Econômica, implantação das tecelagens e vidraçarias, bandinha do Largo da Lapa, colégios tradicionais de professores implacáveis, casas de comércio, Shopping Center, migrantes do Nordeste, comércio informal na Rua Doze de Outubro, bairro esquecido pela Prefeitura Municipal, história tragicômica...

Meu pai tornara-se um operário. Levantava-se cedo todos os dias para juntar-se à manada de seres iguais a ele, que moviam máquinas em ritmos iguais, quase sem parada, para retornar em noites iguais de luares e pernilongos, com salários iguais por muitos e muitos anos.

Nossa casa também era tipicamente operária. Nós três éramos os primórdios da evolução do bairro. Tínhamos toda a resignação do mundo perante as circunstâncias e ouvíamos aflitos a disputa de Marlene e Emilinha Borba pelo título de Rainha do Rádio.

Matricularam-me na escola quando cheguei à idade certa. Lembro-me agora que uma de minhas primeiras tristezas foi perceber os instintos de guerra no coração dos meninos, os instintos de totalitarismo no coração dos professores e do bedel, os instintos de futilidades no coração das meninas...

Seria por isso que acabava sempre levando a palmatória, a repreensão em olhos irados, o castigo na sala do diretor? Não havia espírito mais livre do que aquele menino que fui, nem havia maior prisioneiro na face da Terra. É o que eu ainda sou até hoje.


*                                          *                                              *

Meu pai agora parecia melhor. Voltara a contar entusiasmado suas histórias de sempre.

Disse-me que na Itália a ópera era extremamente popular. Poderia ficar horas falando sobre Verdi ou Puccini, mas por alguma razão lhe fascinaram as lendas alemãs, que ele conhecera de uma obra de Richard Wagner.

Foi numa tarde feia e chuvosa de abril de 1953 que ele me contou aquela história que iria mudar minha vida. Não sei ao certo por qual motivo, mas a maneira simples e canhestra com a qual meu pai narrava aquela epopéia, sobre os males e enganos da ambição no coração do homem, transformou-me para sempre num espectador escrupuloso do mundo, um contemplativo amargurado que vivia nem dentro nem fora do restante da raça humana.

Segundo ele me dizia, no início dos tempos, quando ainda os deuses influenciavam a vida dos bárbaros da Germânia, o rei dos deuses – Wotan – o mesmo Odin dos vikings, resolvera construir um novo castelo no Valhalla, a morada dos bem-aventurados.
Dois gigantes foram contratados para o serviço: Fafner e outro de quem eu não me lembro o nome. O mais importante para o enredo é Fafner, porque mais tarde ela mataria o outro para ficar com o pagamento do trabalho.

Acontece que não havia dinheiro no caixa dos deuses. Sabe como é, Freya, deusa da beleza, devia torrar com cosméticos; Loki, deus da mentira, devia desviar umas verbas, e Heimdall, que vigiava o fim do arco-íris – única ponte entre Asgard e Midgard (o reino do Céu e o reino da Terra) – devia cochilar de vez em quando...



Wotan então decidiu tiranicamente apossar-se do tesouro dos Nibelungos, anões que forjam riquezas das entranhas do solo.

Um dos tesouros em especial, o anel do anão Alberich, era o mais cobiçado.

No entanto, as filhas do Reno montavam guarda e prometeram uma maldição eterna a quem roubasse o ouro, escondido sob suas águas: sua vida destruída!

As jóias foram roubadas mesmo assim, e entregues aos construtores (sendo que só um sobreviveu, Fafner, como já mencionado) e agora, metamorfoseado em dragão, guardava-as como se fossem sua vida.

Enquanto isso, no plano terreno mortal, surge uma misteriosa caravana, onde reluz a beleza de uma rainha e de sua filha.

De repente, um grupo de bandidos os ataca, matando a nobilis regina e raptando a princesa, cuja mão foi entregue como prêmio a um rude lenhador.

Os dois foram morar numa casa estranha, no mínimo extravagante. Era toda construída ao redor de um carvalho gigantesco, árvore secular que trazia encravada a espada do dono. Tal Excalibur de Artur, ela só poderia ser arrancada por aquele que roubasse definitivamente o coração da moça – selo do pacto do destino ou descuido convidativo ao adultério?

Pois não é que o lenhador arrumou um novo amigo, Siegmund?

E não é que o amigo ficou desejando a mulher do próximo?

E desejou ainda mais, ao descobrir que suas histórias se cruzavam, que eles eram irmãos, filhos bastardos de Wotan.

Os deuses são incestuosos, sempre o foram em qualquer panteão. Mas quem, fora de sua família, partilharia de seus dons?

Siegmund arrancou a espada da árvore, fugiu com a mulher do outro e causou a maior confusão. Isso porque Fricka – a mesma Frigga dos vikings – que era deusa do casamento e mulher de Wotan – ficou ensandecida. Já desapontada com seu marido por causa de umas outras histórias por aí, exige vingança: o velho monarca deveria matar o rapaz atrevido e adúltero.

Ele recusa, desespera-se. Siegmund também era seu próprio filho!

Então transfere o dever para Brunhild, uma valquíria (as valquírias são deusas responsáveis por conduzir as almas dos guerreiros mortos ao Valhalla, e nasceram de um caso de Wotan com a Terra).

Mas Brunhild se nega, afinal era seu irmão. O rei dos deuses resolve castigá-la: condena-a a adormecer sobre um rochedo, em torno do qual se produziu um cinturão de fogo ardente, impedindo o acesso à donzela radiosa.

Wotan, numa cena de incomparável pesar e decepção, parte a espada encantada e mata o próprio filho.

A viúva morre de amargura, sobre o cadáver do marido.

Resta o fruto desse amor proibido: Siegfried.

Este miraculoso bebê cresceu criado por um anão (ou duende, não sei) que exercitava o ofício de ferreiro, e que reforjara a espada de origem divina.

Ouvindo as lendas sobre a caverna de Fafner, e o tesouro que havia por lá – resolve enfrentar o desafio.

O jovem herói mata o terrível monstro, banhando-se com seu sangue. Todavia, uma folha cai, grudando-se em suas costas: este ponto de seu corpo será como o calcanhar de Aquiles.

Então se apossa de toda a fortuna do monstro, agora consistente em um anel e um elmo.

Depois, segue em busca de outra lenda: A valquíria.

Agora invencível, Siegfried atravessa o fogo e desperta Brunhild (sua tia, na realidade).

Como o rapaz nunca vira uma mulher, apaixona-se perdidamente, o mesmo acontecendo com a donzela recém-desperta.




Brunhild recebe o anel dos Nibelungos como presente de noivado. Siegfried fica com o elmo, e parte.

É recepcionado num castelo mágico. Seu anfitrião, Hagen, feiticeiro disfarçado, fornece-lhe uma bebida contendo a poção da amnésia. O herói se esquece da própria identidade e de seu amor passado. Apaixona-se pela irmã do feiticeiro, Gutrune. Aquele, aproveitando-se da situação, oferece a mão da nova amada de Siegfried em casamento, como prêmio em troca de um favorzinho: o vilão desejava a fama de ter salvo Brunhild.

Dessa forma, o ingênuo rapaz apaixonado (com a aparência transfigurada na do maléfico mago) consegue tomar a valquíria à força e levá-la ao palácio.

Vendo Siegfried voltar à sua verdadeira forma, julga ter sido traída por seu amado. Como vingança, revela ao pérfido mago o segredo de seu ponto fraco, nas costas.

Siegfried é então apunhalado, sorrateiramente.

A traição verdadeira é finalmente revelada. A valquíria, arrependida, atira-se à mesma pira mortuária do jovem semideus covardemente assassinado.

O vilão místico tenta apossar-se dos despojos dos cadáveres carbonizados, momento em que é arrastado pelas filhas do Reno para o fundo das águas.

Enquanto isso, no canto do cenário, o castelo do Valhalla está caindo aos pedaços, os deuses morrem aos poucos, perdidos em atônita amargura...

Esta é a tetralogia chamada “O Anel dos Nibelungos”, da qual fazem parte “O Ouro do Reno”, “A Valquíria”, “Siegfried” e “O Crepúsculo dos Deuses”, e é encenada ao longo de cerca de quinze horas.

Meu pai nunca pode vê-la. Ouviu-a de um soldado alemão desertor, que se escondia na casa de camponeses suíços, logo depois da guerra. Esse alemão foi encontrado morto perto do poço da propriedade onde vivia. Havia lágrimas em seus olhos, uma partitura de uma ária de Brunhild na mão esquerda, e um anel de belíssimo e ofuscante brilho na palma da mão direita, fechada com uma estranha insistência.


*                                          *                                              *


Eu devia ter os meus doze anos de idade, quando o destino resolveu derramar sua mais estranha dádiva sobre mim.

Foi quando conheci Berenice.

Na escola, ela brilhava mais do que aquela luz que os esquimós atribuem às tochas que os espíritos dos mortos carregam ao atravessar o céu, e que os cientistas chamam de aurora boreal.

Tinha graciosos cabelos louros e encaracolados, olhos azuis de água-marinha, pele branca como brotos de dália.

Nós passamos a dividir nossos livros e cadernos, nosso lanche na hora do recreio, nossos segredinhos de ansiedade pelo futuro.

Às vezes, quando brigávamos, ela me via com aquela cara de cão amuado, a dizer-lhe em voz murmurada: “Bice...”.

Então me perdoava. Deixava eu apertar suas bochechas, que se tornavam rubras, e sorria de um jeito tão lindo que me lembrava das ninfas voando sobre os bosques da Arcádia.

Eu não conhecia ainda os riscos desse sentimento tão grandioso.

Não sabia perscrutar o caminho em busca de pedregulhos, mas, mesmo assim, deitei-me ao chão esperando pela chuva ou pelo sol, naquela passividade afetiva que só a inocência e o encantamento das crianças podem ter.

Guardo as lembranças como diamantes num cofre-forte: memórias do verde da grama, do parquinho, do balanço, das aulas de música que meu pai me prometia e nunca deu, o Nero – cachorro vira-lata que resolvi criar, e o aniversário de minha princesinha, quando apaguei as velinhas pela última vez.


*                                          *                                              *


Um dia, ou melhor, uma noite, o bairro pôs-se num murmurejar lacrimejante, que logo despertou meu interesse.

Estava com meu pijaminha branco, abri a janela.

Um assustador cortejo fúnebre levava o corpo de Berenice.


*                                          *                                              *


Três meses depois, já com um ar de maturidade e personalidade noctívaga, pude voltar à escola.

Não mais desmaiava ou batia minha própria cabeça contra a parede, aceitava a comida e os contatos sociais básicos, mas me recusava a sorrir, nunca mais voltaria a sorrir em minha vida.

Passei a frequentar a biblioteca com mais constância. O ambiente valioso porém abandonado, repleto de prateleiras empoeiradas com os mais belos clássicos, parecia-se com uma metáfora de minha própria existência – esse arcabouço infinito de epifanias e de megalomanias, deixado para trás por todos e por mim mesmo, ilha de versos e de notas tristes em que eu mesmo me exilei.

A leitura transformava-se em poder de oratória, em expressão do incontido sempre mudo, arma mais poderosa de meu espírito rancoroso e inconformado.

Comecei a ir muito bem na escola. Futuro brilhante? Não para gente pobre no Brasil.

Com meus 14 anos, peguei o diploma do Ginásio e fui procurar emprego.

Tornei-me office boy em diversas empresas do Velho Centro.

Cortava o cabelo numa espelunca da Avenida São João, e, uma vez, andando à toa pela Rua Aurora, como gostava de fazer, conheci a imprevisível Carmen, espanhola de idade nunca revelada, que aceitava só os clientes que escolhia.

Minha cara de menino triste levou-a a me escolher, como ela mesma diria depois.

Estive enredado em seus braços de cobre e em suas palavras perigosas, sempre ditas em voz muito alta, por poucas vezes. Depois nunca mais a vi. Dizem alguns que voltara à Catalunha, outros que agora vagava pelas ruas, arruinada pela sífilis. Eu prefiro pensar que ela voltou para o lugar de onde eu pensava que viera, um templo de Eros e Afrodite numa colônia grega que não existia mais.

Em uma das últimas tardes em que voltava mais tarde do trabalho, com a indispensável parada no quarto miserável de Carmen, encontrei um grupo de pessoas que olhava ao chão com feições de repulsa e compadecimento. Era meu fiel e amigo cão. Nero estava estirado numa poça de sangue. Gania desesperadamente.

Tivemos de chamar o veterinário às pressas. Ele foi sacrificado com uma injeção letal.

Enterramo-lo no quintal. Joguei flores amareladas sobre sua cova, flores mortas como meu coração.

Durante toda a madrugada, minha mãe tentou baixar minha febre, que começou a me conduzir pela trilha dos delírios.

Naqueles dias, passei a ver Berenice pelos cantos da casa, e Nero me aparecia como o Cérbero dos infernos, sempre me impedindo de tocar minha amada que se escondia por detrás de véus brancos tecidos no Hades.

Dormia na chuva, desejava a morte bradando às alturas, mas como medo de que Deus me ouvisse e castigasse.

Por uma única madrugada, pude ter um sonho: vi a bela Suíça de que meu pai falava em minha infância, com paisagens, odores, comidas, vestimentas, histórias, montanhas e pastos, tudo.

Chamou-me a atenção a presença de um filhote de cervo, com pintas e cauda branca, entre a pelagem acastanhada e luzidia. E enquanto este bebia água dum riacho, nada mais eu percebia que a imortalidade de sua fragilidade e de sua pureza.





*                                          *                                              *


Algum tempo se passou. Ainda não conseguira emprego fixo em um escritório.

À noitinha, imagens perversas e esparsas das curvas de Carmen voltavam e me incomodar.

Quando tinha por volta dos dezoito anos, sob certa pressão dos pais, prestei um concurso na Light, na busca de um futuro mais estável. Eu consegui.

Não é muito ruim ser funcionário público no Brasil. Especialmente porque a palavra estabilidade não significa muito para a iniciativa privada. Com uma desculpa esfarrapada de empreendedorismo, o neoliberalismo tenta abandonar todos à própria sorte e fazê-los se sentirem culpados por isso.

Fortuna favet fortibus, disse Virgílio há mais de dois mil anos. Talvez por isso eu nunca tenha tido sorte na vida. Ou talvez a sorte seja isso mesmo que ela significa, pura sorte, acaso, dama oculta e caprichosa que escolhe seus favoritos a esmo, e que também lhes retira tudo quando cisma em girar a roda. Assim é o mundo.

Com meu novo emprego, minha única e preponderante obsessão era uma viagem à Suíça.

Foi o que amarguei por todo o tempo, até o colapso nervoso de meu pai. Soube que ele guardava livros marxistas para ajudar os estudantes da UNE. Era a época do AI-5.

Começou a receber ameaças, ficar nervoso, quase a andar pelas paredes.

Teve um acidente vascular cerebral. Padeceu toda a família junto dele, foram-se minhas pequenas economias com tratamentos ineficazes.

Sua renitente vida foi tirada por um ataque cardíaco. Estava eu a amargar, vestido de preto outra vez.

Mais do que nunca, a viagem à Suíça se tornara um ponto de honra imprescindível. O sonho de meu pai agora só poderia ser realizado por mim. Essa viagem era a única coisa que poderia desatar os nós da minha existência, ou fazer-me encontrar o único fio da meada, ou pelo menos era isso que eu esperava.


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Aprendi a lidar com toda a burocracia que se me apresentava.

Dinheiro? Investido na minha quitinete, no meu fusquinha, depois trocado por um chevette.

Minha vida passou como um encanto ruim, com a viagem sempre adiada e a monotonia sempre presente.

Em cada trem lotado, em cada hora perdida num engarrafamento, em cada dia em casa passado diante dos programas estúpidos de televisão, morria o ser vivente e sonhador dentro de mim.

Nada de incrivelmente biográfico. Aliás, os escritores só têm biografias fascinantes porque adquiriram a capacidade de recriar sua própria história. De resto, dá tudo na mesma.


*                                          *                                              *


Eu já era um cinquentão quando conheci Beatriz.

Ela foi trabalhar na mesma repartição que eu. Felizmente, os computadores, a crise asiática e as privatizações não roubaram nossos cargos de supervisores.

Ela sempre foi atenciosa comigo. Trazia-me compotas de doces, que ela, como nativa do Sul de Minas que era, aprendera a fazer com mãos de fada desde a infância.

Era viúva, tinha uma filha problemática que nunca parava em casa e dois netos muito educados e vivazes, que ela trazia em casa para assistirmos desenhos animados e fazer artesanato ou preparar algum bolo.

Os olhos azuis de Beatriz eram uma promessa de céu, e de Berenice.

Nossa amizade foi muito pura, embora eu não soubesse se era exatamente assim que eu a queria. Ela foi meu último consolo.

Bia lembrava Bice.

Quando íamos ao litoral, perto de Mongaguá, eu a via sentada sobre as pedras, na divisa com a Praia Grande, observando as ondas, sob o sol alaranjado do poente.

Então chamei-a “deusa do arco-íris e do mar”.


*                                          *                                              *


Como em poucas vezes da minha vida, senti-me feliz de verdade.

Comecei a sentir que tinha alma de artista, observava as pessoas em seus mínimos detalhes, amava e odiava com furor e com frequência.

 Num único domingo, assisti a um concerto no prédio da FIESP, duo de piano e violoncelo apresentando sonatas de Beethoven e Shostakovich e o Grand Tango de Astor Piazolla, e os músicos poetas manghaniyars e langas do Rajastão indiano, no SESC Pompéia.

Incrível como o Governo do Estado anda promovendo a cultura e sucateando o ensino público. Fico me perguntando se isso não serve para manter uma realidade elitista e anestesiada.

Mas o que importa é que eu andava procurando o caráter tríplice da vida: o masculino, o feminino e o hermafrodita dos deuses africanos; os três tipos de escrita dos japoneses; minha mãe, Berenice e Beatriz – as três mulheres que dominavam minha vida...


*                                          *                                              *


Foi em abril que começaram as dores no peito.

Passei a trancafiar-me cada vez mais.

Ouvia o Rio Moldava de Dvórak, que corria melancolicamente como os prelúdios, noturnos e berceuses de Chopin, como as águas barrentas e turbulentas do Tietê, do Tamisa, do Tamagawa, do Sena, do Reno...

Tudo corre e tudo flui.

Flui minha juventude e todo o tempo. Não mais um garoto que vivia de imagens de filmes de Sean Conery, de Charlton Heston, de trilhas sonoras de Enio Morricone e Henry Mancini. Não mais um Canio a vestir uma máscara de palhaço sem sua Colombina, diante de um público pagante que não conhece o que se passa na coxia.

Como dizia T.S. Eliot: “O tempo se conquista unicamente pelo tempo”.
Mas o que eu conquistei?

Talvez precisasse ligar para a Beatriz, talvez precisasse de promoção no emprego, de extinção dos conjuntos de pagode, de ressurreição do Partido Comunista, talvez.

Não é assim que a maioria dos seres humanos vive? Por uma causa, por um brinquedinho novo? E quando se acabam as causas e os brinquedos, foi tudo um espetáculo a se debater em vão?!

Uma senhora no apartamento ao lado colocou para rodar uma velha vitrola, e cortou meu pensamento.

A voz de Beniamino Gigli inundou a sala:

Nessun dorma! Nessun dorma! Tu pure, o Principessa,
nella tua fredda stanza
guardi le stelle
che tremano d'amore e di speranza...
Ma il mio mistero è chiuso in me,
il nome mio nessun saprà!
No, no, sulla tua bocca lo dirò,
quando la luce splenderà!
Ed il mio bacio scioglierà il silenzio
che ti fa mia.

Só acabei acordando no hospital. Beatriz dava socos no meu braço: “Reaja, desgraçado, reaja!”.

Minha mãe chorava a um canto da parede.

Il nome suo nessun saprà...
E noi dovrem, ahimè, morir, morir!

Então dormi de novo. Um sono muito mais profundo do que jamais sonhara antes.

Dilegua, o notte! Tramontate, stelle!
Tramontate, stelle! All'alba vincerò!
Vincerò! Vincerò!


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Naquele dia, Petrônio deixava suas amarras presas nas linhas do tempo.

O passado, o presente e o futuro transformaram-se em pó diante de seus olhos, num imenso palpitar de Allegros e Prestissimos que pouco a pouco transmutavam-se em majestoso Adagio sostenuto, imutável.

Visões de campos de papoulas e tulipas. Grandes tufões de luz, castiçais de fogos-fátuos.

Pardais gorjeavam, soava o terceiro movimento do Inverno de Vivaldi. O Grande Arquiteto recriava a realidade. Ou seria esta a realidade suprema por detrás da ilusão?

De repente, a velocidade do flutuar no quase-vazio de tempo-espaço diminuía bruscamente.

Uma planície garrida de flores surgia à sua frente, com um perceptível aroma de lavandas.

A música que Petrônio ouvia agora era a Suíte número 1 para violoncelo, de Johann Sebastian Bach, executada por um menino vestido em tons pastéis, a combinar com suas faces rubras.

Um homem de rosto estranhamente luzidio, trajado de azul e dourado, ofereceu-se para conduzir Petrônio e lhe indicou um portal tecido em estranho fogo, que parecia não queimar e não se consumir.

O portal foi atravessado, como na viagem de Dante, não sem temor, e Petrônio chorou, pela primeira vez em anos ele chorou.




Então, o homem sem nome e sem mácula iniciou a lhe mostrar todas as estâncias de sua vida.

Por fim, as imagens exibidas no lago cristalino mostravam o corpo inerte, um cadáver de touro ou bisonte negro, que se afundava num lago de putrefação da antiga Babilônia.

Uma chuva de folhas de outono varreu tudo da paisagem.

Foi então que ouviu uma vez terrivelmente familiar, a qual aumentava cada vez mais e mais. Virou-se. Seu pai Gioachino Antonio corria em sua direção.


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Petrônio fora levado a uma vasta campina, que, de tão banhada pelo Sol, assemelhava-se a um trigal. Seu pai parecia ansioso e lhe preparava uma surpresa.

“Petrônio, filho meu, quando você atravessar o trigal, sem temer os corvos, e descer a colina que existe ao final, onde crescem os girassóis, você encontrará o que busca”.

E ele foi.

Quando se afastava, seu pai se voltou para o homem desconhecido e indagou: “Já é chegada a hora?”.

O homem assentiu com a cabeça, e Gioachino, abrindo suas mãos indefinidas, quase sem matéria, susteve sobre as palmas um anel de grande porte, pesado, antigo, radiante, misterioso, e com uma fisionomia de alívio atirou-o ao ar. Na sua queda, a jóia foi tragada pelo chão que se transformara nas revoltas águas do Reno.


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No fim da colina, na dobra das eras, as densas paisagens da Suíça desvelaram-se diante dos olhos de Petrônio, enquanto um cervo bebia água de um riacho.

Ali, coroada de narcisos, recostada em um rochedo à beira do lago de Wallenstadt, Berenice lhe sorria como Brunhild sorrira a Siegfried.