quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

ODE ÀS FADAS (ou O FIM DO BOÊMIO)

“As fadas… eu creio n’ellas!

Umas são moças e bellas,
Outras, velhas de pasmar…
Umas vivem nos rochedos,
Outras, pelos arvoredos,
Outras, à beira do mar…

Algumas em fonte fria
Escondem-se, enquanto é dia,
Sáem só ao escurecer…
Outras, debaixo da terra,
Nas grutas verdes da serra,
É que se vão esconder…

O vestir… são taes riquezas,
Que rainhas, nem princezas
Nenhuma assim se vestiu!”

ANTERO DE QUENTAL

  

                            I

 

Em leitos perfumados de rosáceo sonho,

De gozo se abrem as pétalas das mãos.

Acariciam o ser, o corpo, a alma,

Teus olhos me fazem cristais pelo chão.

 

Esparges luz em tua pele plenilúnia,

Beijas orvalhos com tua boca de sol,

Teus seios, carpas silvestres carmesins,

Encontram meus lábios, sedento anzol.

 

 Teu ventre palpitante de volúpias

Enterra minha ventura ou desventura

Em delícias, nas palavras que soluças

Em meus ouvidos que te buscam como cura.

 

Mulher, fada, destino, ninfa,

Anjo de noites que dormem saciadas,

Espírito das flores, rios, pequenas vidas

Dos seres do ar que flanam suas asas!

 

Por que és tão bela quando ris,

Quando calas – secreta pérola,

Quando partes – flor-de-lis,

Quando danças – tenra libélula?

 

Por que enches meu dia de alegria:

Colibri, quetzal, faisão, quartzo, opala?

Por que enches minha noite de agonia:

Morfeu, Caronte, Perséfone, Ostara?

 

Mariposa-bruxa, mariposa-atlas

Que carrega o mundo nas costas,

Que faz a vida d’um homem dar voltas,

Que abre de Pandora a arca,

Rainha lepidóptera, borboleta-monarca!

 

Tu és como a musa que encanta Apolo,

Astarte que brilha na primeira hora da manhã,

Flora que acaricia mistérios ao branco do colo,

Erato e Euterpe das liras pagãs!

 

Viviane, Morgana, Sininho, Titânia,

Sortilégio, facho de luz, rosa-dos-ventos...

Fadinha, como dormes em paz tamanha

Dentro da tempestade dos meus pensamentos? 

 

II

 

És como nascida de novo.

E como ainda podes ser renascida

Das tuas primaveras destruídas,

Dos teus invernos solitários,

Dos outonos da tua vida?

 

Como podes ainda renascer bela

Quais belos verões de girassóis,

Qual porto sem naufrágios, sem atóis,

E tecer constelações de tua janela?

 

Como podes estender asas,

Fecundar flores, dar frutos, casas

A homens sem esperança e sem lar,

Àqueles que nem sabem amar?

Se te deitas com todos eles,

Tu mesma inda sabes amar?

 

Cartas, runas, pitonisas, vísceras de aves

Mo revelaram...

É mais difícil se libertar de muitos entraves

Se eles docemente te abraçaram...

 

“Arranca teu olho, tua mão, teu coração,

Se eles, em teu desejo tolo, te fazem pecar...”,

Já dizia o Mestre no férreo Sermão do Monte

Ao douto fariseu, ao pobre pastor sem nome.

Portanto vai-te, em noites desencantadas, te embriagar

Co’as outras fadas, as estrelas, o vento e seu carrilhão!

Eu permaneço aqui, penitente e insone...

 

Por que cavaste labirintos e petúnias em meu peito

E me prendeste a teu destino e a teu leito,

Se o tempo, indiferente, só escoa e avança,

Se meu amor só pode viajar contigo à distância?

 

III

 

Tique. Taque. Tique.

O tempo é implacável.

Então ouve

No que quer que isto implique:

 

Pelos meus olhos pelos meus poros

E pelos sonhos – claros ou ignotos,

Revives a pulsar como a própria vida

Com teu sorriso fácil de extasiar

Mas difícil de decifrar.

 

Teu olhar de amêndoas crestadas,

Teu corpo de muitas sendas,

Tua pele de calêndula,

Tu’alma de cestro ferido à invernada

É de sobrevivente de tempestades,

Como quem luta sobre as ondas

Sem deixar de ser nereida, dríade, náiade.

 

Oxum que se mira, Oiá que assombra,

Kuan Yin que abraça, Amaterasu sem sombra,

Vênus calipígia das espumas do mar,

Diana régia do lupino luar,

Freya ou valquíria a tonitruar,

Iara dos rios igarapés a jorrar

Que conduz o uirapuru a cantar.

 

Quero nos teus braços nos teus seios nas tuas ancas

Nos teus laços nos teus receios nas tuas danças

Me enrodilhar pareado com teus passos,

Acariciando estrelas nos teus cabelos

E ainda que sobrem só lampejos e traços

Destes doces melífluos novelos,

Que tu nunca mais te olvides,

Que tu nunca mais duvides

Da minha poesia a te guardar como selo.

 

IV

 

“As mariposa quando chega o frio
Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá
Elas roda, roda, roda e dispois se senta
Em cima do prato da lâmpida pra descansá

Eu sou a lâmpida

E as muié é as mariposa

Que fica dando vorta em vorta de mim

Todas noite só pra me beijá”.

                                   ADONIRAN BARBOSA

 

Quando descia do transporte gratuito

Para o baile da terceira idade,

No mesmo velho parque de damas, gamões e ludos,

Em que dava pipocas aos pombos da cidade,

Era um predador que agia sozinho,

Que ainda tomava das azuis pílulas,

Que ainda cuidava do impecável terno de linho,

Ensaiando o repertório de bandas estrídulas.

 

Marias, Auxiliadoras, Aparecidas, Conceições,

Lurdes, Fátimas, Teresinhas, Encarnações,

Renatas, Moniques, Melissas, Patrícias,

Anunciattas, Judites, Dalilas, Padilhas,

Passavam por seus braços nos mesmos salões

E por ele chegavam às raias das sevícias.

 

Compasso binário, ritmo sincopado,

Dois pra lá, dois pra cá, e dá uma rodadinha,

Conduz a dama, esconde-a do gavião frustrado,

Que ela é sua enquanto se enredar na fiada conversinha.

 

Algumas chegavam mais cedo aos encontros

– Mãos suadas, olhos irrequietos, represados corações – 

Outras nem compareciam, nem davam satisfações

– O toureiro mais se ofende quando o touro lhe faz de tonto – 

 

Aqui nem se lembra de quantas camas de pocilgas,

Dos filhos que mandou abortar,

Das malas de despedida,

Das madrugadas a vagar.

 

E depois quem sabe, uma cuba libre, uma meia de seda,

E ela se dispa de casacos, pudores e rendas,

E um mundo de descobertas rebente as cascas do ovo,

Até que amanhã a busca comece toda de novo...

 

V

 

O homem é só.

Foi jovem, cigano, boêmio.

Hoje é velho, desiludido, abstêmio.

O homem caminha só

Com seu catálogo de espécimes humanos,

Sorvendo taças já sem sabor

Nos bares e cafés da dor.

 

O homem deixa cair sua pasta de arrependimentos,

Seus óculos de ver demais,

Sua bengala de xingamentos,

Seu chapéu de feltro, memórias e tais,

Seu rancor dessas meninas de hoje que se riem,

Seu rancor desses meninos de hoje que não vivem,

E tão convicto da sua estranheza malfadada,

Que quando pela última vez caiu trôpego nas calçadas,

Os passantes acharam que sonhava com as fadas!