terça-feira, 5 de maio de 2020

A CAVERNA



Já os homens pleistocenos
Buscavam ali refúgio,
Deixando impressos aos milênios
Seus mamutes, corças, refugos.

Na caverna de Platão temos a sombra
E a verdade está lá fora e acima.

Na caverna de Orfeu temos o arrependimento
Que olha para trás e perde Eurídice para sempre.

Na caverna de Remo e de Rômulo temos a loba
E o leite e o sacrifício e as lupercais.

Na caverna de Amaterasu,
Ela é o sol que se esconde
Depois que seu irmão – tempestade e mar,
Susanoo, o covarde,
Joga um cavalo morto sobre o seu jantar.

Na caverna do Buda,
Mara, a ilusão,
Depois de derrotado debaixo da figueira,
Sem a costumeira face carrancuda,
Em posição de lótus sobre a pobre esteira,
Lança sua última tentação:
Cansado da penumbra lisonjeira,
Quer trocar de lugar com a iluminação!

Na caverna de Davi temos o medo
E o refúgio e a lira e a oração angustiada
E os salmos se desenrolando
Como uma teia noturna de titiwais[1]
E lá fora a ira dos exércitos de Saul.

Jonas, em meio às ondas do mar,
Encontrou sua caverna de carne
No esôfago de um peixe justiceiro,
Onde se martirizava pelo teimar
Tal Pinóquio esperando seu velho carpinteiro.

Na caverna da Natividade temos o Menino,
A Luz do mundo a dormitar na manjedoura,
Em pequeno facho de luz de humildade
Debaixo da estrela peregrina,
E lá fora as trevas assassinas de Herodes
E as trevas da hora nona que viriam
– E a outra caverna futura –
Cuja pedra de entrada seria removida pela Vida!

Na caverna de São Jerônimo temos o velho
Que buscava em sonhos e pergaminhos
Aquela mesma Luz que lhe salvara,
E lá fora o diabo e as dançarinas de Roma
E o leão de pata machucada.

Na caverna de Maomé temos o susto
Seguido da poesia,
E o anjo Jibril que lhe sobe ao peito
E lhe ordena recitar,
E o pavor e os versos que lhe saem em torrente
E lá fora o vil comércio dos coraixitas
(os que nunca ouvem).

Na caverna de Siegfried temos o tesouro ocultado
E o sulfuroso dragão que o guarda, atormentado,
E o seu sangue que banha o heroi transformado,
E lá fora a ambição que lhe quer roubado.

Encontrariam o tesouro assim
Jasão, Ali Babá, Alladin?

Na caverna da Psicanálise temos o útero materno
E a tumba do homem a renascer,
Descendo as escadas do inconsciente,
Subindo as encostas do verdadeiro Ser.
Não sei que caverna me aguarda,
Mas quando chegar a essa porta do Hades,
Caminho de pedras,
Labirinto de mares,
Quero sorver afoito do vinho
Do Graal que me cura sozinho.






[1] Nome maori para e espécie Arachnocampa luminosa, verme luminescente endêmico da Nova Zelândia, que adere ao teto das cavernas, dando-lhe uma aparência de ceu estrelado.

O VELHO NO BANCO


“All I hear is the sound
Of rain falling on the ground.
I sit and watch
As tears go by.”

“As Tears Go By” – Jagger/Richards/Oldham

Tive canções e poemas favoritos:
Tornaram-se trilhas melancólicas.

Tive amigos importantes:
Tornaram-se estátuas.

Tive amigos inúteis:
Tornaram-se cirrose, delirium tremens, sífilis.

Tive amigos comuns:
Tornaram-se estatísticas.

Tive almas que realmente amei:
Tornaram-se chagas quase físicas.

Eu sou o próximo da fila.
Mas sou diferente: sou místico.
Tornar-me-ei
metafísica.