sábado, 18 de maio de 2013

Piquenique na Floresta


Os ursos velhos enforcados em colarinhos

A debater os problemas que não resolvem

E ai daqueles que se colocam em seus caminhos

Bradando por uma manada mais jovem!

 

Ah, as formigas, ternas soldadinhas,

A carregar pesarosamente os seus doces

A montar na relva as suas barraquinhas

Sem encontrar um freguês que fosse!

 

Os cupins relembrando idílica historieta

Dos tempos em que eram larvas sem estofo.

Como poderia conhecê-las o pombo estafeta

Se ainda estava no ovo?

 

Alegremente crocitavam as gralhas

Sobre o debutar entre os pavões

Ah, tanto fogo em palha,

Chamuscando-lhes o rabo aos borbotões!

 

Os filhotinhos de asinino

Esperando em fantasias seu momento

De crescer e engordar como um suíno

E assumir uma cátedra de jumento!

 

A festa era mesmo uma delícia

Que até os peixes se tentaram a sair do mar.

E o corvo neste dia de estultícia

Tinha muito a refletir e observar.
 
 

terça-feira, 14 de maio de 2013

As Armas do Animal

Não é verdade
que eu ando com sete pedras na mão.
Eu ando com quarenta e nove
e mais um machado afiado,
agitado para todo lado.

Enquanto o sonho me deu asas de águia,
a vida me deu couraça de tatu,
ferrão de marimbondo
e uma mão de vaca,
uma língua afiada
(faca de dois gumes),
uma boca aberta
e um coração fechado,
um escudo de porco-espinho
para rechaçar cobras,
papagaios
e jumentos.

Mas carregar esta carapaça de tartaruga nas costas
Cansa tanto quanto sustentar parasitas.

A Unha Encravada


“Acontece que me canso de meus pés e de minhas unhas,
do meu cabelo e até da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem”.

PABLO NERUDA

Espinho na pata
do leão de São Jerônimo;
Espinho na garganta
do menino de São Brás;
Espinho na carne
das queixas de São Paulo;
Todo mundo tem o seu.
Limite do voo da galinha,
Limite do desenho do passado,
Limite do frio na espinha,
Limite.

Latejando
Pulso de sangue e pus,
Supurando
No sapato fechado sem luz.

Calcário duro
que insiste sempre em crescer torto,
abrindo caminho na carne tenra e indefesa
que lhe serve de abrigo enquanto necrosa,
tornando inviável a antiga destreza.

Eu recebi este
Propositalmente
Para me lembrar
De que nada é como me parece
De que não vou aonde quero
De que a punhalada é o limite do passo.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

DIA DE GATO



Despertei ao som do chamado tão conhecido. A voz de minha mulher, porém, não soava tão terna e confiante como das outras vezes. Era a voz de quem me confiava uma missão, valiosa para ela, duvidosa para mim.

A gata, a gata malhada, vira-lata, idosa, patética, que há muitos anos habitava a casa de sua mãe e que – sabe-se lá por que cargas d’água ninguém tinha coragem de levar ao veterinário – agora seria levada. E o condutor, o prestativo, cavalheiro, patético condutor, seria eu. A mulher, mais afeiçoada ao felino, iria acalmá-lo e explicar-lhe inutilmente nossas razões.

Encontramos o animal em sua sacada de sempre, na mesma pose de aristocracia anacrônica e contemplativa. Porém, ao nos aproximar, notamos como parecia ofegante, ressentido, senil. Olhou-nos como se pressentisse algo ruim e inevitável. Após alguns gracejos infantis de nossa parte, entrou na caixa transportadora sem alarde, miando poucas vezes durante o trajeto. E desceu do carro taciturno.

Na sala de espera, a gata se pôs a reconhecer o ambiente. Parecia pouco à vontade, e de quando em quando me encarava, em tom de mudo desafio, desfilando no fundo das retinas uma história de rivalidade e dependência, que por milênios unia sua espécie à minha. Vi dentro daquela íris medonha e indecifrável seus antepassados egípcios – divinizados, mumificados –, seus ascendentes persas – arrancados das ruas do Irã por aventureiros italianos – seus tataravós azuis e gordos na Corte Inglesa, esfregando o rabo impertinente na cara da Rainha Vitória e propondo charadas a Alice, com um sorriso idiota, no País das Maravilhas. Devolvi-lhe meu olhar de humano: reprovador, superior, racional, escorado em séculos e séculos de civilização. Ela não se importou. Sua espécie estava acostumada a explorar-nos como parasitas e dar-nos as costas pelo chamado da natureza, sem nunca revelar-nos o que lhe havia na alma, se é que alma havia.

Sempre achei que a serpente do Éden bem poderia ser um gato, tão mais apropriado do que um animal repulsivo e rastejante que lambia a terra para sentir alguma coisa. Lembrei-me da Lygia Fagundes Telles, na primeira vez que a vi, depois de muito esperar como ardoroso fã, na porta da Academia Paulista de Letras. Lembrei-me de como ela desceu daquele táxi com um gato pendurado ao pescoço, dedicando-lhe toda afeição, e o chá dos imortais esperando... Por que, por que eu não conseguia? Não partilhava da opinião da minha escritora favorita, da minha esposa, da minha sogra, de que os gatos poderiam oferecer um amor tão terno e genuíno como o desajeitado e kitsch amor dos cães. “Não há que se confundir independência e elegância com crueldade e desprezo”, talvez me dissessem.

Os gatos demarcavam seu território com urina e rosnados; nós com muros, cercas e preconceitos: não havia na realidade diferença substancial entre nós, a não ser que agora o poder trocara de mãos.

A veterinária chamou-nos, pelo nome da gata, a paciente. A ficha preenchida pela recepcionista adicionava o sobrenome de solteira de minha esposa ao nome da gata, o que me pareceu uma tentativa piegas de humanização e empatia.

O exame foi feito, injeções aplicadas no pescoço, na pata dianteira, três pessoas para segurar o frágil mas relutante corpo, o termômetro introduzido no ânus do animal com precisão e frieza, enquanto este nos olhava de maneira assustadoramente desafiadora, como se a interrogar “como vocês puderam?”.

Contas pagas, conversas amigáveis para cumprir o protocolo, a veterinária nos explicava como o quadro lhe parecia o de uma bronquite talvez associada à sinusite. Até a doença dela era humana, céus, o que mais poderia nos roubar?

Despedimo-nos, sabendo que a volta seria diferente da ida. Algo mudara nos dois lados. A gata, andando pouco, em círculos, demonstrava uma soberba resignada, em sua estoica solidão de felino, enquanto seus olhos me fitavam, da mesma forma que os meus fitavam os dela.

Nunca foi segredo para ninguém que eu não gostava muito dela, mas neste instante, nesta cumplicidade do saber-se vivo para fazer tanta coisa de que não gostávamos, parecíamos nos compreender, no mesmo silêncio, no mesmo andar em círculos.