quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

SOBRE O AMOR



O que disseram os filósofos:


Se para Platão, no Banquete em que devaneava,
Pela voz de Fedro, que da imortalidade tratava,
Eros era o mais antigo dos deuses
E a cada ato do homem emanava,
Havia também entre os seres
Um Eros vulgar, outro divino:
Um cultuava o Belo nos corpos,
O outro o venerava na alma.
Um buscava na lascívia o seu vinho,
Outro conhecimento sorvia dos copos.

Contava-se a história, por voz de Aristófanes,
Que espíritos, dantes inteiros,
Foram fustigados pelos demiurgos autóctones,
Sendo por isso partidos ao meio,
E então buscavam, aflitos, seus consortes.

Por fim, o mártir da filosofia,
O mestre de que nunca se esquece:
Sócrates, em sua costumeira calmaria,
Via no amor a busca do que se carece,
O desejo que pode mais que a posse,
O contemplar do Belo em si mesmo,
Que liga os homens aos deuses
E o faz em elo tão forte,
Que suplanta formas, conceitos e termos.

Duvidas que assim esteja decretado?
Como explicas então os corações exilados?

O caro irmão Paulo, escrevendo aos indóceis coríntios,
Disse por sua vez que o amor está acima
Ainda da fé e da esperança,
Que é marcado pela humildade e temperança,
Não folga co’a injustiça, é pleno de sapiência,
E que guarda na renúncia sua intrínseca essência.

Lembrando seu confrontador, o messias, o cordeiro:
Jesus, o Verbo, que tira os pecados do mundo
– o que foi tentado nos ermos
e veio nos salvar de nós mesmos –
Sabia que amor maior não há que, no madeiro,
Dar a vida pelo próximo, e mais, pelo injusto,
Que não sabia amar quando cego, em cativeiro.

Alguns têm seu deus na ágora,
Outros o têm no mercado,
E ainda outros no templo,
Ou quiçá no estádio.
Mas se queres conhecer o deus desconhecido,
Aprende a calar,
Aprende a cantar,
Aprende a conhecer,
Aprende a prantear,
Aprende a semear,
Aprende a se doar!

Não sei se de origem divina ou humana,
Se o mais complexo e sutil dos egoísmos
Ou o mais impossível dos desprendimentos,
Não me perguntem quem está correto,
Porque nas ciências do espírito
Só se vive através do mistério
E o que se define com palavras
Para sempre se perde...

EPOPÉIA ÁRIDA (Excertos)


A Fauna (mudos coadjuvantes):


O tatupeba,
A onça parda,
O gambá-de-orelha-branca,
O cachorro-do-mato,
O azulão,
A asa-branca,
O calango-de-cauda-verde,
A arara-azul-de-lear,
A cutia, o sagui,
O soldadinho-do-araripe,
O rapazinho-dos-velhos,
O veado-catingueiro,
Mãos-peladas,
Sapos-cururus,
E quiçá as últimas
Ararinhas-azuis.

Seus passos lentos,
Seus olhos negros,
Seus pés que pisam
Mortos gravetos
Já viram tanto e nunca falaram,
Já andaram nas trilhas
Que os homens cavaram
Na mata-branca
Que engana e encanta
Quem de lá não é.

Eles conheceram o saci,
O quibungo,
A alemoa,
A cabra-cabriola,
O papa-figo.
Eles já lamberam a mão da princesa
Do reino encantado de Jericoacara,
Eles tiveram a bênção do rei D. Sebastião
Antes d’ele entrar no mar de cavalo e tudo.
Eles deram o caminho da correnteza
Dos rios que se secam no início
Às sedentas almas do purgatório,
À folha mais tenra, à flor mais rara.

Mas isso foi no tempo que os bichos falavam,
Então o bicho-homem vaqueiro apareceu
E tinha uma outra e rude voz.

Só quem seguiu dos animais o pior
Foi a ossuda vaca, foi o resignado jumento
– A mesma que cedeu seu estábulo no presépio,
O mesmo que carregou triunfante a Nosso Senhor –
E o homem logo os escravizou no seu intento
À sua própria labuta de cemitério,
Ao seu próprio cotidiano de dor.

Dizem que se você chegar perto
Com a devida ciência e paciência,
Eles terão a lhe contar do deserto
De estrelas-faíscas d’onde tiveram nascença.



A Flora (espinhos n’alma):

Não se iluda com o redondo farto
Da barriguda e da coroa-de-frade.
Não se iluda com o sangue escarlate
Da aroeira-vermelha e do caroá.

É nos espinhos secos
Da bromélia e do mandacaru
Que o mais esperto bebe água
Qual fosse umbu ou juá.

Aqui tudo tem espinho
E recolhe as folhas com um propósito,
Pois o sol é inclemente, é mesquinho,
E faz até do vento seu acólito.

Mas não se iluda também que é só secura.
Nos começos do ano, se a chuva cai,
É verde, é florado, avivado e frescura
– mas não, não é sempre que ela cai –

Aí é uma tristeza,
Que o rio não dura,
O lago, a terra engole
E o solo vira ranhura
– Deus me console –

Aí é só a pedra que continua altiva,
Os píncaros rasgando o céu feito foice,
Os bichos só saem de noite,
E só as aves carniceiras ativas,
Já que vivem de morte.

Aqui a seiva é outra,
É de lágrima seca,
É semente revolta,
É raiz de rabeca,
Acordeão de chorar defunto,
Aboio triste de melodia sem assunto,
Cabo de enxada, caixão de pé junto.

E tudo cai na terra de novo...

(...)




Corisco:

Eu não nasci rico
Nem nunca poderia me fazer doutor
O que eu tenho a natureza me deixou:
Nasci bonito.

Me chamam Diabo Louro.
Escolho rapariga e mulé dama.
E se não posso escolher tomo à força
Como a minha Dadá que levei pra cama.

Meu nome de batismo é Cristino
Mas o caminho de Cristo não é fácil seguir
Que nesse mundo seco e assassino
Dar a outra face é como desistir.

Com 17 anos eu matei
Um protegido do coronel de Água Branca
Foi assim que meu destino tracei:
Me restou a vida impura ou a cova santa!

Procurei Virgulino, o Lampião,
Que de mundão injusto ele entende.
Ganhei dele até meu próprio grupo
Pra despistar poliça de volante que é tudo burro.

O que ele não sabia é que já no fim,
Eu e Dadá não queríamos mais.
Mas quando eu ia lhe falar
Foi o dia da emboscada dos animais...

Soube que lhe traíram, furaram na bala,
Degolaram, desfilaram co’as cabeça em praça pública.
Tomei vingança dos coiteiros que delataram
Passei no fio da navalha cada uma
Das gargantas que demais falaram.
Uns dias depois descobri meio triste
Que matei toda uma família errada.
É difícil saber da verdade numa terra de ilusão,
Como quando prometeram a tal da anistia
Pra quem deixasse o cangaço e o sertão.

Prometeram mas me cercaram em Barra do Mendes,
Zé Rufino e o Tenente, enviados do Cão,
Com metralhadoras estraçalharam a perna de Dadá
E puseram minhas tripas de fora da barriga,
Foi assim que acabaram minhas memórias nesse chão.

Minha cabeça também virou troféu.
Colocaram numa escada de museu pr’as visita
Do lado da de Lampião e de Maria Bonita!



Dadá:

Eu tinha 13 anos,
Cosia, cozinhava, plantava,
Que sabia eu da vida?

Chegou Corisco trazendo vingança
Sabia lá eu do quê
– E ainda não sei se meu pai sabia também –
Mas alguém ouvia? Mas quê!

No meu pai bateram, cortaram as orelhas,
A mãe trancaram num quarto sem comida,
Dos meus irmãos, cortaram os dedos feito folhas,
E me jogaram no lombo dum jegue para a vida.

Quando me defloraram eu sangrei feito nascente
E tive febre por semanas a fio.
E quando já era corpo e alma dormente,
Meu nome já era de bandida até em jornal do Rio.

Entre as agruras que se vive no cangaço,
O ódio e o amor se misturavam,
E virei a companheira de Corisco,
O carrasco que chorava ao meu regaço.

Pai, professor, amante, protetor.
Ele que me ensinou a ler, a contar, a atirar.
Ele me ouvia pra diminuir a crueldade e o horror,
E as meninas o bando aprendeu a poupar.
E por causa dessa paixão em furor,
Fui a única mulher que podia um fuzil empunhar!

Fizemos sete filhos, só três sobreviveram.
Nosso bando de Lampião foi dizimado,
Mais tarde caiu Corisco, co’o intestino amarrotado
Por cima do colo, feito um travesseiro rosado.
A minha perna, que as balas fizeram caldo,
Foi arrancada em cirurgia, tudo muito arriscado.

Única sobrevivente, tendo cumprido minha pena,
Recomecei a vida, costureira, casada de novo,
Não mais Dadá, mas Sérgia Ribeiro da Silva,
Se não, me deixaria em paz o povo?

Dei entrevista, virei tese, filme e documentário.
O marido Alcides morreu, mais uma vez sobrevivi.
Vivi até os anos 90, deixei herdeiro e inventário.
Se me orgulho ou me envergonho, eu só sei do que eu vi.

Mas um dia, já bem velha,
Bateu na minha porta um oficial da reserva,
Cuspiu na porta, disse que tinha sequela
Pelo tiro que eu lhe dera naquela velha relva.

Então a custo me ergui da cadeira, brandi a bengala,
E bradei co’a força que os pulmões mal tinham a dar:
“Pois levante as mãos aos céus, seu canalha!
Eu lhe atirei foi é pra matar!”



Padre Cícero:

O povo me ama
Porque eu abençoo
Em terra de maldição.
Um açude do paraíso
No meio do sertão.

Prefeito, vereador, coronel,
Promete abrir poço
Mas só abre buraco a bala,
Só abre buraco n’alma
Que só cura com retaliação,
Mas cura não...

Eu sou herdeiro de Francisco,
Eu sou herdeiro de Antônio,
Eu sou herdeiro do Conselheiro,
Eu ergo o ostensório,
Eu proclamo o hoc est corpus meum
E a hóstia vira sangue.
Eu invoco o kyrie eleison
E a caatinga vira mangue.

Anda comigo São José
E Nossa Senhora de Nazaré.
São Miguel peleja à minha frente.
São Rafael me dá poder
De curar toda essa gente.

Não tenho mais medo
De excomunhão.
Tenho cá minhas ideias
De lenta revolução.

Se quer a minha bênção
Esse tal de Lampião
Pro seu matrimônio com Maria Bonita,
E esse tal de Corisco
Pra se unir a Dadá,
Pro seu bando, pro seu alazão,
Eu bendigo seu caminho
Eu não me oponho, não,
Que nessa terra sem justiça
Quem está do lado do forte é quem tem razão!
No Dia de Juízo é outra coisa
Que só lá o juiz é bom...


As volantes:

Nós é a verdade
E a vontade
E a lei!
Nós é a voz do Presidente,
do Governador,
como foi da Majestade
El-Rei!

Nós rapa tudo,
Passa por cima
E recolhe o dízimo do arraial.
O povo escolhe o lado de quem é coiteiro,
Em terra que não dá descanso a coveiro
Não existe Código Penal!

Nós cumprimo ordem
Do tenente João Bezerra
E até do seu Getúlio.
Pr’um país que quer ser muderno
Num cabe a subalterno
Deixar viver bagulho!

Chega de desordem,
Chega de terror,
Hoje em Angico
Quem se esfalfa é cangaceiro,
Quem se esbalda é só milico!

Tu tem orgulho?
Tu tava lá quando o coro comia?
Tu tá com pena?
Leva p’ra tua casa essa diabaria!



E Virgulino de novo:

Porque nunca me perguntaram.
Toda história tem duas versão
Cabe defesa de acusação.
Se quer ouvir, ouça então!

A vida é um olho d’água
Que pode dar em rio em várias direção.
A vida vai secando
Como a açucena pisada ao chão.

Quando eu caí, seu moço,
De dor e de traição,
Eu acho que estava cansado desse troço
De não ter mais pouso nem coração.

E cortaram minha cabeça
E esmagaram o nariz do cadáver,
Sem dó ou piedade,
Como um dia cortaram minha crença
e minha bem-querença.
Como um dia esmagaram minha lida
e meu resto de humanidade...

Quanto às cabeças, deixa eu falar mais um tanto:
Eles levaram pros doutor examinar.
Usaram frenologia, criminologia, direito penal.
Tentaram achar o que tinha de errado: crânios tortos,
Cérebros porosos, traços inquietantes, genética do mal?
Recorreram a Lombroso, Ferri, Beccaria, Nina Rodrigues...
E sabe o que encontraram? Nada de anormal!
Não cabiam esses métodos, distanciamentos, palpites.
E a conclusão mais terrível, científica, sobre estes mortos,
Era que se tratava de humanos, e o horror era normal!





SONETO DO ADVOGADO




Não cabe apelação do tempo atrás?
Um dia faz ontem intempestivo
E o agravo retido no coração
Não tem qualquer efeito suspensivo.


Mas se os embargos de declaração
Esclarecessem a arte de viver,
Que tal usar de mais protelação
E adiar executar remoer?


Cada comarca, foro distrital,
Não caberá clamar ao tribunal,
Propondo a devida vênia ao passado!


Juntado aos autos é oficial!
Certificou vício processual:
Vida passou, transitou em julgado!