sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A ESCADA


Para Henri Nouwen e Anselm Grün

I

A gente por dentro
É como asfalto muito pisado
Que alguns que ali passaram
Foram abrindo buracos,
Crateras cheias de ar
Que já falta no respirar
E deixa de encharcar a vida.

A gente por dentro
É uma busca inútil para cima,
Árvore castigada em castigado clima,
Névoa oblíqua e faminta cobrindo montes,
Abismo pleno de ecos e vazio de pontes.

A gente por dentro
É nau tragada por trombas d’água,
Escrava versada na tábua da mágoa,
Velha que sonha em cadeira enfadonha,
Menino que afunda em rios de nada.
















II

A peregrina dos ermos,
De pernas e braços enfermos,
Alçando voo além de seus termos,
Permanece caindo sob os mesmos pesos
Das correntes fincadas nos tornozelos.

A peregrina dos ermos
Que bebe lágrimas e permanece sedenta,
Cuja garganta resseca e rebenta,
Que ri com o ópio de cada dia,
Mendigando aos pássaros grãos de alegria,
Caminha feito um sofisma
Pela corda sutil da boca do abismo.

A peregrina dos ermos
Dá as mãos ao espectro que ela namora.
A peregrina dos ermos
É o Vazio que se espraia por dentro e por fora.















III

Como correria a seiva
Por seus galhos retorcidos?
Como correria o sangue
Por seus alvéolos exauridos?
Ó inverno de extremos,
Ó peregrina dos ermos?

Dignai-vos a subir a escada,
Erguei os olhos à escalada
E ao mesmo tempo, atirai-vos à enseada,
Nas mãos invisíveis da história recontada.
A muda de pele da serpente.
O estilhaçamento do aquário.
O espelho da alma vivente.
A luz que descobre o sudário.
A escada dos doze degraus.
A descida ao inferno.
As asas refeitas do animal.
Os anjos em degredo.
Estais pronta para o segredo,
As entrelinhas do pergaminho,
O rio sem fim que corre vizinho?

Os prados são plenos e imarcessíveis.
O primeiro passo e a primeira queda são irreversíveis.
Ó inverno de extremos,
Ó peregrina dos ermos!
















IV

Que esses movimentos de maré de enfado,
Que essa reabilitação de cão aninhado
Vos presenteiem novos olhos, nova sarça,
Que novos céus, novas terras vos faça,
Conduzindo a outra linha não interrompida,
Não injustificada, não sem saída,
Não moldada pelo desespero do beco
Nem pela retórica de um amor seco.
Sabendo-se lama, galho, pedra,
Sabendo que todos em todas as eras
Também o foram em retórica de terra,
Personas do palco da saga que erra.
Peregrinos aqui sem descanso e sem termo,
Peregrina dos ermos,
Que só descansaram – filho mais velho ou filho pródigo –
Nos braços do pai de todos os propósitos.