sábado, 27 de julho de 2013

O ESTRANGEIRO

Nunca fui brasileiro de verdade.
Sou brasileiro torto.
Brasileiro à metade.
Brasileiro semimorto.
Não gosto muito de samba.
Não gosto nada de futebol.
Não danço, não dou risadas amplas.
Sou avesso ao sol.
Não assisto novela.
Não fofoco na janela.
Não comento a bunda alheia.
Não tenho cachaça na veia.
Tenho mais a taciturna sina
Dos meus antepassados lusos
Co´a silente melancolia
Dos seus olhos fundos,
Chorando eternamente nos portos
As caravelas idas
E os reinos remotos
Que já não têm mais vida.
Sou mais brasileiro gauche
Que toma café no Largo do Arouche
Como se estivesse na Champs-Élysées
Folheando em lágrimas Mallarmé.
Não bebo cerveja às sextas.
Não dou ouvido a boatos.
Não pulo carnaval.
Não acompanho campeonatos.
Não sou simples nem refinado.
Não vou a baladas no sábado.
Não fico ocioso aos domingos      
Nem concorro em bingos.
Não tolero o não levar a sério.
Tira-me do sério o deixar para depois
E se me achas um chato, um velho,

Pouco me importa. Qual é? Que foi?



DIAGNÓSTICO

O paciente se queixava
de mandar o dia-a-dia às favas,
de falta de ânimo na alma,
falta de dinheiro e de calma.
A tomografia computadorizada
apontou muitos ventríloquos no ventrículo esquerdo.
Havia crescido uma horta na aorta.
Havia muito figo no fígado.
Muito texto nos testículos
e um cisto na sístole
que estava diastólica.

O labirinto do ouvido interno
estava infestado de minotauros
e do rabo-de-cavalo
caíam lêndias de centauros.
As plaquetas não sinalizavam mais nada.
As meninas-dos-olhos estavam grávidas.
O pomo-de-adão era pecado
e as trompas de Eustáquio sopravam um fado.

O médico disse em sobressalto:
“Meu amigo, seu problema é outro,
não há tratamento e o preço será alto.

Você só pode ser poeta ou tonto!”.



quinta-feira, 25 de julho de 2013

CHOQUE DE REALIDADE

Então eis que acabou o recesso escolar:
Derradeiro dia da dulcíssima dança.
Enfrentemos dragões, moinhos, aluninhos!

A vida é Dom Quixote e também Sancho Pança!


domingo, 21 de julho de 2013

LIMERIQUE PARA TATIANA BELINKY

Avozinha das terras geladas
Onde se inventaram os contos de fadas,
Você veio ao Brasil trazendo sonhos e momentos,
Zéfiros nascidos do girar dos cataventos,

E agora partiu para outras etéreas estradas.


sábado, 20 de julho de 2013

O ÚLTIMO MAMUTE

O último mamute
caminha com a certeza
de que é o último de sua estirpe
em meio à correnteza.
Vai pesado e pesaroso
com as patas aveludadas
pisando solo pedregoso
devastando as madrugadas.
Quando dorme entre as geleiras
– mais antigas do que ele em suas brancas veias –
o seu sonho surreal
- muito antes de Dali -    
vê ali rudes fileiras
de sua família ancestral.
Vê o último e tímido
dos pequenos dinossauros,
vê cavernas, icebergs,
desenhos de minotauros.
Na sua fantasia
a intocável Medusa
é bailarina obtusa
que dança flamenco nua
como num filme de Carlos Saura.
O arcanjo Gabriel e a Morte
dançam enlaçados um tango argentino
enquanto sussurram a sua sorte
e Cronos lhe afaga a tromba gélida,
empurrando-lhe a face para mais ao norte.

O último mamute acorda e pensa
de quem herdara essa deserção da vida
e percebe que a sua existência
foi uma agenda não cumprida:
Domingo ir ao último penhasco da Eurásia
ver o nascer do sol que se abre.
Segunda ir dizer umas poucas e boas
para o tigre-dente-de-sabre.
Terça quarta quinta sexta
buscar por raros novos pastos.
Sábado finalmente ver a aurora boreal
e dezenas de novos tipos de pássaros...
Não, nada,
sempre essa expectativa naufragada:
acabara o que não foi.

O último mamute
caminha e hesita
debaixo dos pelos
que a neve atrita
e sente o peso
das eras infinitas.

Entre os brancos de marfim
com uma língua ressecada
ele liberta o derradeiro urro
de toda uma manada.

Quando lhe encontraram a carcaça

                                      Osso-pedra

                                                        Couro putrefato

                                                                                    Inútil caça,


Não lhe imaginaram os milhões de passos dados

Nem fizeram caso dos olhos vidrados.



O INVENTÁRIO


Para Manoel de Barros

De menino
eu tinha um lugar pra tomar sol
por isso o chamei solário
mistura de concreto e campo de futebol
embora não durasse sempre o sol.
mas como só de noite o sol virava luar
eu também não podia chamar de luário
por isso chamei de arário
porque estava sempre cheio de ar.
era um quintal solitário
mas grande pra fazer de mar
por isso chamei de Inventário
porque eu remava vassouras no inventar.
inventário não é coisa de morto
nem uma lista de coisas achadas.
inventário se faz de risadas perdidas
e de invencionices não numeradas
lá por exemplo eu fiquei devagar
com caramujices e lesmices
e comecei a caminhar
solto no ar com passarinhices.
lá eu inventei a minha própria letra
que não era coisa de abecedário:
abecedário é chiqueiro onde te esfregam a cabeça
na cartilha chata da tabuada e do planetário.
eu vivia mesmo era no inventário
e olha que nessa época
eu sequer distinguia um ornitorrinco datiloscopista
de um otorrinolaringologista.
lá se grafava árvore com os braços abertos
e água com o corpo fluindo pelo chão.
não havia longes, não havia pertos,
só havia estrelas dormindo na concha das mãos.
então eu brincava tecendo buracos
na parede mole do tempo no fundo do armário
foi aí que eu caí aqui
adulto que perdeu pra sempre o seu inventário.


sexta-feira, 19 de julho de 2013

CONSPIRATION THEORY

É verdade?
É verdade?
Que eram os deuses astronautas?
Que figurava Atlântida nas cartas náuticas?
Que os maçons construíram o Templo de Salomão
E, sendo templários, escaparam à perseguição?

É verdade
Que o diabo em forma de gato preto
Fornicava com as bruxas de madrugada,
E os filhos nascidos, sem batismo e sem respeito,
Viravam lobisomem ou alma penada?

É verdade
Que na Transilvânia da Romênia,
Onde viveu Vlad, o Empalador,
Os tuberculosos cheios de hemoptises
Eram vampiros espalhando terror?

É verdade
Que os alquimistas, no convento ou na taberna,
Transformavam vis metais em ouro
E descobriram o elixir da vida eterna?

É verdade
Que Leonardo da Vinci produziu o Santo Sudário?
Que existiu uma Papisa Joana?
Que jazia o Santo Graal num sacrário?
Que a Arca da Aliança foi parar na costa africana?

É verdade
Que o mundo quase acabou nas mãos
Dos judeus dos Protocolos dos Sábios de Sião?
Que tudo que chamamos de belo e virtuoso
É obra de loucos perdedores errantes
E ópio ministrado às massas pelas classes dominantes?

É verdade que o Papai Noel
Era só um contrabandista sueco gordo
Voando num monomotor frágil como papel
Que enroscou na sua hélice um bando de tordos
(que olhando de baixo parecia um carrilhão de renas)
E as pobres aves iam perdendo as cabeças, as penas,
Enquanto o velho ia jogando de cima as muambinhas
Que iam caindo nos telhados das criancinhas
E assim despistava os policiais turrões
Até o avião se espatifar entre os lapões?

E nada tem a ver o São Nicolau com tais confusões?

É verdade que o amor foi inventado
Pelo cinema e pela televisão
Pr’o comércio vender saldão?
É verdade que todos vivemos
Presos na ilusão
Da caverna de Platão?
É verdade que a CIA matou o John Lennon
E o John Fitzgerald Kennedy?
E a Marilyn Monroe
E o Jimi Hendrix?
E que o Elvis ainda pode ser visto
Num balcão de bar em Phoenix?
Que o Bush estava mancomunado com o Osama
E que o Martin Luther King
Era a encarnação passada do Obama?

É verdade que a CIA e o FBI
Esconderam o disco voador e o E.T. de Roswell
No Triângulo das Bermudas?
Assim como o Pinochet
Mandou matar o Pablo Neruda?

É verdade
Que suicidaram com o Getúlio?
E que o homem pisar na Lua é uma lenda?
Assim como o Holocausto foi exagerado
E que Jesus era casado
Com a Maria Madalena?

E que o Nikola Tesla,
No Projeto Philadelphia,
Teletransportou um navio
E um marinheiro se fundiu
No meio da fuselagem?
E que a descoberta do Brasil
já fora planejada (onde já se viu!)  
Pra fazer aos espanhóis uma grande sacanagem?

É melhor eu trancar as portas
Antes que alguém me mate.
Eu não sei por que a minha vida não dá certo

Mas deve ser culpa dos Illuminati...


Mais Trechos da "Epopeia Árida"

Virgulino:

Menino,
O tiro que matou teus pais
veio da Lei...
veio da Lei...
Menino,
O silêncio no coser das mulheres
veio da Morte...
veio da Morte...

Na estrada
o corpo da menina
que os homens usaram à força.
Na estrada
o pai de sete filhos
que coronel mandou à forca.
No labirinto de papeis e interesses,
embrenha-se o culpado:
Confiai na justiça dos homens!
Justiça Divina há,
mas tarda e não faz sentido aos homens:
Confiai na justiça de Deus!

Dizem que em combate de noite
Para ajudar seu amigo a achar o cigarro no chão,
Seu rifle não deixou de ter clarão
Por isso lhe chamaram Lampião.

Herói de cordel, assassino, ladrão,
Um novo Cabeleira, Lucas da Feira ou Antonio Silvino,
Antonio Conselheiro às avessas, vaqueiro beduíno,
Robin Hood do sertão,
Ave carniceira de arribação.

Não ficou claro na História
Se querias comer o doce prato da vingança
Com facas de destrinchar postos e potestades,
Hamlet do sertão!
Ou se achavas que compensava perder,
Que algumas pessoas não merecem viver,
Ó Raskolnikov do sertão!

Perfuravas trilhas na caatinga
Mais como um fantasma ou como um personagem
Do que propriamente como homem-bicho
Que tanto existia naquela região.

E trazias uma estrela de sangue na fronte
E um coração de artrópode no peito
E um alforje de lágrimas secas no cinto
E galopavas um cadáver de alazão do Dia do Julgamento!


Maria Bonita:

Ôxi, quero mais essa vida não!
Vida besta, vida de forno, vida de tanque,
Mansidão!
Quero mais não Zé de Neném,
Que ralha, que grita, que bate
E que filho não pode fazer.
Não quero homem que maltrate
E que nada de importante tenha que dizer.

Quero voar, quero cavalgar, quero lutar,
Amar encarniçadamente,
Morrer sanguinolentamente,
Viver atemorizadamente,
Famigeradamente.

Vim da Bahia, de Paulo Afonso,
Aos quinze anos me entregaram
Pro sapateiro, homem brabo e também sonso,
Qu’isso é coisa que me arrumaram.

Maria Gomes de Oliveira
– Agora Maria Bonita –
Me cai melhor como uma luva
De mulé dama e também sofrida
Que cresceu no mato arando sem chuva.

Eu fugi e encontrei o cabra
Que antes de lenda era homem.
Eu fiz me aceitarem no grupo.
Eu fiz me deixarem atirar.
Eu fiz me darem o gosto de matar.

No meio daquela guerra
Eu gerei dois filhos,
Que meu ventre não era seco
– só secara o meu coração –
Apertado em cada beco.
Expedita e o menino que seu nome se perdeu
E ninguém sabe direito pr’onde foi.
Eu deixei c’um coiteiro o moleque
– Um homem honrado que criava boi –
Mas bem no dia que eu fui visitar a Expedita
– sim, foi no dia da visita –
Que as volantes chegaram com seus açougueiros
E nem de respeitarem a dor d´uma mãe,
Mas se nem respeitaram a Maria Santíssima,
Que dirá de mulher de cangaço, duríssima?

E foi esse o meu fim
Foi assim.




O Menino:

“Pai,
Deixa-me ir
Que há aqui?

Pai,
Eu quero combater
Os poderosos tiranos
Que mandam no mundo:
Aníbal.

Pai,
Eu quero me ajuntar
Aos cavaleiros da triste figura
Das funduras do grotão
Que botam medo a todo mundo:
Percival.

Pai,
Eu quero ser bandido.
Eu quero expressar a minha dor
Maltratando a minha própria gente
Desafortunando o indigente:
Canibal.

Pai,
Deixa eu ir encontrar o meu destino
Que a vida aqui é um dar voltas em alqueires
Pra encontrar a morte no mesmo lugar de sempre”.

  
O Pai:

“Fica quieto, moleque,
Que aquilo é uma guerra.
A tua mãe te deixou aqui
Porque lá se morre de graça
E não se ganha terra
E não te fica nem a carcaça.

Um dia tu vai saber
Quem foram teus pais
E aí tu cantará
Num misto de vergonha e de orgulho
Como vive de carcaça o carcará”.

terça-feira, 16 de julho de 2013

RECEITA

Renovar-te a cada manhã
Fazer de cada vez a primeira:
a primeira criança diante da primeira presença
diante do mar.
Renovar o esplêndido
Remanufaturar o cândido
Reciclar os belos clichês
Remontar a esperança
com os requintes do simples
e as novidades cotidianas.
Revelar a vida
de sob o véu dos teus próprios olhos.
Despir-se da antiga anatomia
Despregar-se da sombra que habitava o pensamento
Pouco a pouco em boa teimosia
reconverter os passos de como estás vivendo.



sexta-feira, 12 de julho de 2013

O TRIGAL

No trigal
no fundo do meu quintal
entre as pétalas secas
e as goiabas mortas
há uma árvore definhando
por falta de jardineiro,
há uma comida queimando
por falta de atenção,
há um espantalho torto
que não espanta os gatos rotos,
há um anão
que carrega todos os dias
entulho para fora
e há uma maldita fiandeira
cortando todos os fios
sem dó e sem demora.



 

O AVESSO

Queria viver
Uma história de amor arquetípica
Uma religião catártica
Uma política revolucionária
Uma arte bombástica
que ao fim me matasse
como aos poetas heroicos.

Queria morrer
De morte mitológica
Na guerra com Byron
No palco: Caruso
Naufragando odisseias
no oceano difuso.

Queria interrogar
esse homem do espelho
Queria aconselhar
esse menino do retrato
Queria arrancar
esse talho da alma
Queria aplaudir
ao final do epílogo
um dia

– será?

AOS POETAS PERSEGUIDOS

Os meninos bobos
brincavam afoitos
em uniformes verde-oliva.
Os meninos bobos
brincavam atônitos
com fuzis e granadas.
Os meninos bobos
ruflavam tambores
e viravam estátuas
em cima de andores.
Os meninos bobos
estão convencendo
a gente adulta.
Os meninos bobos
foderam com tudo
qual casa de puta.
Os meninos bobos
me enviaram a carta
ordenando na pauta
que eu tomasse cicuta.