"Se as portas da percepção forem abertas, as coisas
irão surgir como realmente são: infinitas."
Jim Morrison, líder dos Doors
“Morra jovem, permaneça
belo.”
Kurt Cobain, líder do Nirvana
Christian Malcolm Ashtray nasceu numa
modesta cidade no centro-sul dos Estados Unidos da América (a do Norte, pois
existem mais duas outras embora alguns insistam em esquecer). A cidade era
Stillwater, estado de Oklahoma, onde fica o campus da universidade estadual.
Dizem que o nome do local fora dado
pelos cowboys vindos do Texas em suas comitivas ou pelos índios pawnees que ali residiam e ali sempre
encontravam águas calmas, eternamente calmas.
Calmas como nunca foram as
experiências de Chris: atravessou uma infância itinerante, morando até em casas
de madeira miserável e apodrecida, trailers, abrigos. Do pai nenhuma notícia se
tinha após o seu nascimento. A mãe, mais preocupada em arrumar um substituto
para o companheiro desaparecido, tudo negligenciava, inclusive a si mesma e à
própria honra.
Um dos padrastos, por azar o que mais se
manteve, chegara a esbofeteá-la por mais de uma vez, bêbado em quase todas as
madrugadas, gritando o nome inteiro do menino – nome feito da mistura de
cristão, de ave frágil e ordinária e de cinzas que ele sempre foi – antes que
as agressões lhe atingissem como rescaldo de uma fúria sem cabimento.
As lições de ética e civilidade na
sala do Diretor, constantes – segundo se dizia, exatamente pela falta delas no
caráter do menino – e as lições de casa, que se acumulavam como o trabalho nas
mesas dos adultos, só lhe representavam uma maneira espúria e criminosa de
retirá-lo das tardes entre os arbustos e o corvo, entre o azul do céu infinito
e o azul das águas calmas, calmas como as almas dos homens nunca aprenderiam a
ser, e por isso se levavam a inventar tantas atividades tolas para justificar
sua existência.
Os adjetivos depreciativos passaram a
fazer parte do vocabulário de todos que o conheciam, mas, por estranho que
pareça, coroavam-lhe com uma estranha dignidade, a dignidade dos eleitos que
compreendem e que, por isso, jamais serão aceitos ou amados.
Em um intervalo entre as aulas,
entretanto, quando já iniciava o ensino médio, Christian experimentou uma
reviravolta em sua vida cinzenta. Ouvira a voz de uma ninfa recém-desabrochada
das flores do etéreo e esta voz, fato inédito, sussurrava o seu nome.
O amor de Jully por algumas matérias
na escola ajudaram Christian a melhorar seu próprio desempenho. Por exemplo,
era a primeira vez que enxergava alguma coisa de belo nas leis da física, nas
partículas da química e nas razões que teriam levado George Washington, Abraham
Lincoln ou Henrique Tudor a fazer o que fizeram. É que às vezes lhe parecia que
os homens do passado não foram constituídos de carne e osso, mas de alguma
substância informe e desaparecida nas eras que nada mais tem a ensinar.
Eram também estas as coisas que
contava ao seu inseparável confidente, o corvo, agora já estufado de penas
negras e capaz de voos razoáveis. Os voos do corvo já o levavam para a casa de Christian
e ali se achegava para pousar em sua mão enquanto o olhava com olhos estranhos,
olhos de corvo de Edgar Allan Poe.
*
* *
Sua mãe, agora mais atenta à opinião
pública do que a si mesma e à sua triste história – não obstante jamais atenta
ao filho – decidiu levá-lo para o coral da Igreja. Igreja bem quista pela
comunidade, algumas pessoas problemáticas entraram lá caindo aos pedaços e
saíram cidadãos respeitáveis, deveria servir.
Na noite de Natal daquele ano, tudo
estava sendo preparado na igreja. Desde o Dia de Ação de Graças – quando Jully
resolveu dar as caras em sua casa – ensaiavam-se músicas e apresentações
teatrais, e Christian resolveu convidar seu amor para vê-lo.
Haveria uma apresentação do coral
entoando clássicos como Peace in the
valley, Oh come all ye faithful, Amazing Grace e Silent Night.
O reverendo faria sua pregação com
base no segundo capítulo do Evangelho de Lucas e depois haveria uma montagem de
A Christmas
Carol de Dickens, encenada pelas crianças. Por fim, uma ceia comunitária no
salão social.
Jully aceitou o convite. Estava feliz.
*
*
*
A noite tranquila chegou. Jully não
foi. Enquanto aguardava sua vez de se apresentar, o menino saía até a rua para
tentar ver a tão esperada. E nada.
Que encanto ainda haveria para ele
naquela cidade? Agora era a revolta que lhe encravara no espírito
Se permanecesse naquele lugar, só lhe
restaria conseguir um emprego no Wallmart, na Universidade ou passar num
concurso público para preencher formulários ou tapar buracos da rodovia.
Mas era preciso ir embora. Que mais
faria ali?
E para onde iria? Go West, diziam os antigos. E não era pra lá que Jully ia tentar a
vida, ainda que com outro? Nunca se sabe...
Foi a Los Angeles. Ali se assustou:
parecia uma selva, caminhos infinitos de concreto percorridos pelos viadutos e
edifícios, gente estranha e de todo tipo, protótipo do caos urbano.
Apresentou-se numa espelunca, onde
ninguém notou muito a sua presença. Mas conseguiu um lugar para se hospedar, um
quarto imundo, sem energia elétrica e coabitado por baratas – e barulhento
também, já que se ouviam as buzinas dos carros no engarrafamento e os gritos
dos bêbados no balcão do bar que ficava logo abaixo.
Montou uma banda de heavy metal cheia
de colorido, laquê e lantejoulas – como era modinha na costa oeste daquela
época – a qual agradou muito, passando a fazer vários shows pelas proximidades.
Começaram a ganhar muito dinheiro. O
público adorava ver aquele baterista martelando os tambores com a selvageria de
um Neanderthal, o baixista com uma cadência milimétrica, os dois experientes e
virtuosos guitarristas, brutos e delicados ao mesmo tempo, ofertando a dose
exata de peso e lirismo.
Mas a atenção principal era o
vocalista, uma personagem em cima do palco, vestido eternamente de preto, com
um olhar misterioso e penetrante, longa cabeleira encaracolada, as mãos
crispadas ao microfone, a voz possante e aguda. Nascia uma estrela, nascia uma
lenda: Chris Ashtray, o Cavaleiro Negro.
Nessa toada, começaram a viajar pelo
país. Iam a Las Vegas apostar nos cassinos tudo o que ganhavam. Às vezes
ganhando, às vezes perdendo, mas mantendo o mais importante: a emoção do jogo.
Continuaram as apresentações,
desentenderam-se, misturaram-se a outros músicos ainda melhores: a junção de bandas
diferentes gerou uma nova e definitiva – os Black Angels.
Era tudo mais perfeito e harmonioso,
um trabalho sério, não mais apenas companheiros de farra. Sonhavam ser muito
mais famosos.
Uma madrugada, quando se apresentavam
no palco de uma média casa de espetáculos, surgiu-lhes a grande chance. Stephen
Murdock, um caçador de talentos, estava observando os rapazes.
Ali mesmo entraram em acordo e foi
fechado um contrato com uma grande gravadora.
Não fariam mais covers, teriam agora
que compor as próprias músicas – Chris já rascunhara algumas, que mostrou a
Stephen. Aliás isso não foi motivo de preocupação para Ashtray, que descobrira
um enorme prazer com a catarse da composição e no ato de escrever as letras,
apesar de não fazerem muito sentido – para ele faziam.
Stephen era o empresário, e, claro,
abusou das jogadas de marketing, ordenando aos garotos que revezassem entre o
sincero e o teatral, o simples e o exuberante, as escorregadelas e escândalos
contrabalanceados com campanhas de responsabilidade social.
As prostitutas, os traficantes e os
agenciadores disputavam espaço no camarim, esperando as migalhas do sucesso que
lhes cabia.
Todos se internaram espontaneamente em
clínicas de desintoxicação – cada um em uma cidade diferente, como consideraram
melhor.
Depois de muito sofrimento, solidão,
crises de depressão e de abstinência, tentativas de suicídio e de fuga,
conseguiram amainar suas tempestades internas. Só Adrian tinha mais dificuldade
em se livrar daquilo – e olha que ele sempre foi o cara que dizia que tudo era
uma questão de saber usar e que ele tinha pleno controle dos seus baratos e
viagens alucinógenas – mas por enquanto dava para levar assim, ele aceitou diminuir
e não usar antes dos shows e das gravações.
O segundo álbum, totalmente manipulado
pela gravadora e pelo empresário, apresentava um peso mais moderado e letras mais
politicamente corretas, um som mais comercial incluindo três baladas
românticas, parecia mais vendável.
Sete músicas caíram como uma bomba nas
paradas de sucesso. Algo como um Led
Zeppelin IV, um Dark Side Of The Moon
do Pink Floyd, um White Album dos Beatles
ou um Black Album do Metallica. A
porrada sonora de Metal Heart fazia
contraste com as românticas Pearls Of My
Soul e The Bridges Of New York. Angels
Without Heaven,
carro-chefe que dava nome ao álbum, chegou ao segundo lugar da parada da
Billboard em três semanas e de lá só saiu depois de três meses.
Os videoclipes, abusando do erotismo e
da computação gráfica, estouraram na MTV. Poder-se-ia dizer que tocavam em cada
rádio do planeta: um fã escreveu de um bar numa montanha do Nepal...
Aos poucos pagaram tudo o que deviam,
e melhor, enriqueceram.
As arquibancadas ficavam lotadas – o
que acontecia nos quatro cantos do mundo. As garotas (e as velhas também)
gritavam, num espetáculo de histeria e ninfomania coletiva.
Os ingressos se esgotavam instantaneamente,
pagariam qualquer coisa para ver aquele cantor novo, agora de cabelos repicados
e cheios de laquê, tatuagens nos dois braços, brincos de ouro, crucifixos
pendurados no pescoço, erguendo o punho para o ar, como se amaldiçoasse o
destino, e de quando em quando um misterioso e enigmático corvo negro vinha lhe
pousar sobre os nós dos dedos.
O público o concebia como algo
mitológico e transcendental, e ele acreditava nisto. Uma legítima lenda como
aquelas saídas do CBGB ou do Cavern Club. Críticas favoráveis no New
York Times, outras críticas um tanto piores. Desde Jelly Roll Morton tocando
piano nos bordeis de Storyville e praticamente inventando o jazz, ou Robert
Johnson fazendo um pacto com Satã numa encruzilhada à beira do rio Mississipi,
em troca de um sucesso fugaz e amaldiçoado que lançaria o blues no mundo
inteiro, nunca houve e nunca haverá nada melhor. Nada melhor do que os Black
Angels.
Nenhum obstáculo ao caminho das
estrelas: “Rolling stones gather no moss!”.
Mas como se ocultava seu antigo
sentimento de insignificância! A imagem da sua mãe, da sua cidade Natal, do
Rev. Hall, de Jully...
Todavia não era isso o que as pessoas
viam nele. A imagem onírica do artista! As pessoas o agarravam na rua como se
quisessem pedaços seus, e levavam cartazes, e pediam autógrafos, e tiravam
fotos e queriam entrevistas exclusivas! A imprensa o acusara de estar envolvido
com magia negra, ter casos com todas as top models da Califórnia, e
excentricidades do gênero. Tinha que agradar tanto ao público quanto à crítica,
o que era quase impossível, já que os dois sempre discordavam.
Se queria ir jantar fora no quarteirão
seguinte, insistiam em levá-lo de limusine.
Lembrava de Jenny e invejava as
pessoas pobres e comuns, que construíam famílias relativamente estáveis e
maldiziam a vida pelo enfadonho cotidiano. Cansavam-lhe as orgias
intermináveis, as noites vazias, as mulheres de almas mortas e pernas abertas.
E aqueles advogados, diretores e
empresários, que o tratavam como criança e ficavam loucos como sanguessugas
atrás de seu dinheiro?
A última peripécia fora a de falar
umas merdas na imprensa sobre gente importante, e agora respondia a três
processos judiciais milionários.
Foi numa noite particularmente
especial em que recebera uma homenagem de uma sociedade de músicos que
adormeceu ternamente e exausto, e os deuses trágicos wagnerianos sussurraram ao
seu delírio uma incrível e verídica história:
Primeiro viu um rio caudaloso que
vinha do Atlântico e abria um leito enorme nas costas da América do Norte,
empurrando jangadas com negros acorrentados e tristes. O rio atravessava New
Orleans, Atlanta, Chicago, Nova Iorque, cortava a oeste rapidamente até atingir
San Francisco e Los Angeles e terminava seu curso em Still Water, sua
cidadezinha, onde deveria acalmar e morrer.
Então viu no espelho dessas águas a sucessão do jazz, do blues, do rhythm n’ blues, do gospel, do country, do soul. Depois veio a junção disso tudo, com certa dose de fúria e de paixão, originando o ritmo mágico que o DJ Alan Freed decidiu chamar de rock n’ roll.
Os anos 60 começaram aparentemente
calmos, mas trazendo bandas mais rebeldes que vinham da Inglaterra e invadiam a
América: Beatles, Rolling Stones, Animals, The Who e Kinks.
No final da década, a contracultura
hippie virou o mundo de cabeça para baixo. Folk e psicodelismo habitavam suas
cabeças de cabelos longos e ácido lisérgico: Bob Dylan, Joan Baez, Richie
Havens, Carlos Santana, Jefferson Airplane, Grateful Dead, The Mamas and The
Papas, The Byrds, The Hollies, Joni Mitchell, The Doors, Jimi Hendrix e Janis
Joplin.
Inspirados nos solos ferozes de
Hendrix e no blues eletrificado do Cream de Eric Clapton, nasciam os ferozes
anos 70, e, com eles, o heavy metal: Led Zeppelin, Black Sabbath, Deep Purple,
Kiss, Aerosmith, Alice Cooper, Nazareth, Motörhead, Judas Priest, AC/DC. Outros
mais idiossincráticos também conseguiram seu espaço: Neil Young, David Bowie,
Eagles, Frank Zappa, Elton John... e o Queen aparecia cantando ópera no rock de
arena.
No fim destes anos conturbados, a Inglaterra promoveu nova invasão, desta vez de delinquentes chamados punks, movidos a cerveja, pancadaria e anarquismo. Apadrinhados em Londres por Malcom McLaren e depois em NY por Andy Warhol, apresentaram um barulho básico e ensurdecedor de três acordes e cabelos moicanos, tachinhas de metal e couro preto. Sex Pistols, The Clash, UK Subs (No Reino Unido agora não tão unido nem tão pacífico) e Iggy Pop, Ramones, Patti Smith (a poetisa do punk), New York Dolls e Dead Kennedys – nos EUA.
Dois movimentos metaleiros renovadores
revertem o fluxo das águas que tinham quase caído no mar de bosta da discoteca:
New Wave Of British Heavy Metal (Iron Maiden, Saxxon, Def Leppard), e West
Coast Explosion, nos EUA (Whitesnake – sim, o inglês David Coverdale se cercou
de amiguinhos californianos), Poison, Mötley Crue, Quiet Riot, Winger, Guns N’
Roses, Skid Row, Faith No More, Van Halen que já vinha do final dos anos 70).
New Jersey forneceu o metal romântico do Bon Jovi e a Alemanha dividida
forneceu os Scorpions.
Surge a MTV, grande empreendimento
comercial que banaliza o rock.
Tudo sempre ameaçado pelos rios
transversais do rap (música de protesto surgida nos guetos de Nova Iorque no
início da década de 80), reggae (miscelânea do calipso caribenho com o rhythm
n’ blues, joia lapidada dos jamaicanos Bob Marley, Peter Tosh e Jimmy Cliff),
disco e dance music (estas últimas sobrepondo-se no processo histórico,
dominadas por um bate-estaca roubado do funk de George Clinton e James Brown,
agora novos hinos da alienação de clubbers e playboyzinhos regados a ecstasy e
vodka, dançando no afã de negociar uma noite num motel barato, sábado após
sábado...).
No fim, tudo foi aterrado pelo lodo
uniforme de conjuntinhos, cantorezinhos e cantorazinhas infantilizados,
imbecilizados, mercantilizados e sem talento, tão profundos quanto um comercial
de chicletes...
E tudo isto Chris viu em seu sonho,
até que a lama, a água e a História foram sugados por um imenso sol negro, com
um núcleo cor de sangue, do qual tentava desesperadamente fugir, mas sem êxito.
Então acordou, banhado em suor e em
lágrimas.
Passou o dia com a angústia de saber
que era agora o limiar da história da música – e o miserável humano perto do
fim de tudo que um dia chegou ao auge: o Nada.
* * *
Seus amigos levaram-no a todos os
especialistas que conheciam e sempre aquela conversa de médico: exames, testes,
laudos, vamos aliar a medicação pesada à psicoterapia, vamos tentar uma técnica
nova indiana...
Mas jamais houve qualquer melhora.
Sabe, se a vida fez isso com ele, se isso já vivia encalacrado lá dentro como
uma bomba relógio e agora explodiu, se ele fritou tudo com as drogas, nós nunca
saberemos – disse Adrian um dia, à porta do quarto de hospital, às três horas
da madrugada, quando Kim quase arrancara as veias para fora do braço com uma
lâmina de barbear.
Acharam melhor interná-lo, ao menos
por um ano, e o fizeram, contra a vontade do doente.
Foi triste, triste mesmo, e ninguém
nunca mais teve coragem de visitá-lo. Tiveram de substituí-lo por outro
baixista, Roger Perry, e lançaram mais dois álbuns, sem obter o mesmo êxito – a
magia e o ânimo não eram mais os mesmos.
E o pior ainda estava por acontecer:
num belo e maldito dia, quando Mark encontrou o corpo inerte, numa de suas
mansões. Era Adrian – resultado da necropsia: overdose de heroína.
Agora era hora de parar. Em nome do
respeito e da admiração que mantinham pelos dois amigos idos, um morto e o
outro morto em vida, a banda terminou, anunciando o fim numa entrevista
coletiva.
Chris Ashtray estava acabado. Os
tranquilizantes se tornavam um consolo cada vez mais constante.
Passou férias reconfortantes em Paris,
bebeu vinho e café à beira do Sena, percorreu a mesma noite boêmia que fora
percorrida por Verlaine, Rimbaud, Modigliani, Hemingway. Visitou o hotel onde
Jim Morrison morreu numa banheira olhando para a luz do sol que entrava por uma
janela e depois visitou seus restos mortais no Cemitério Père-Lachaise, onde
repousa ao lado de Chopin.
Ali teve a ideia de se tornar um
cantor de canções standard, canções
padrão no que se refere à velha estética americana. Não estavam fazendo isso na
Europa com novas roupagens para boleros, árias de ópera e canzone de Nápoles? Ele o faria ao bom estilo Frank Sinatra, Tony
Bennett, Bing Crosby, Nat “King” Cole, Johnny Mathis, seus ídolos de infância.
Chris voltava às paradas, enquanto
seus ex-colegas Adrian, Mark e Roger, um pouco cheios de inveja, iniciavam uma
turnê com banda nova, tocando músicas próprias e músicas dos tempos de Black
Angels, sem pagar royalties a Christian.
Ele preferiu ignorar. Manteve-se em
sua nova máscara adulta, responsável e quase estoica.
Manteve a mesma máscara estoica quando
deu em todos os jornais que um acidente de avião matara Adrian, Mark e Roger –
“os Anjos morreram para sempre”, anunciara-se num tabloide.
Embora parecesse insensível aos olhos
de todos, tratava-se apenas de uma peculiar maneira de lidar com a dor, a dor
de ver seu mundo inteiro, com todos os seus referenciais e porta-retratos,
memórias e esperanças, desmoronar.
Christian Ashtray, o cantor
circunspecto de baladas românticas, compareceu ao enterro. Foi mirado por
todos, fotografado ao extremo, comentado com maldade. Havia até quem
suspeitasse de uma mãozinha sua na tragédia. Preferiu nada comentar, mesmo
porque todo mundo já se incumbe de comentar demais.
A tempestade interna irrompeu dois
meses depois, numa crise de depressão. Cancelou todos os compromissos e decidiu
pelo anonimato.
Arranjou inúmeros disfarces, e saía
pela rua às altas horas da noite, chutando latas, arremessando pedras ao
destino invisível e sem formas, resmungando apressado de cabeça baixa.
Aos poucos ia perdendo os apartamentos
luxuosos, os Porsches, as Ferraris, os privilégios, as colunas sociais, e mesmo
a autoestima, último apanágio da dignidade de um homem, já se fora.
Escondera durante anos a criaturazinha
frágil que havia dentro dele, como o filhote de corvo que conheceu ao sair do
ovo.
Quem sabe se não seria justamente este
reconhecimento de fraqueza que poderia redimi-lo? A impotência diante do
efêmero e dos próprios erros, a lhe irmanar com todas as coisas e todos os
homens? Seria isto que os antigos chamavam “sabedoria”?
Foi em um destes momentos que
aconteceu.
Vagava pelas calçadas de Hollywood,
quando de repente se deparou com aquela mulher, caída ao chão, esfaqueada e
ensanguentada, depois de ter sido arremessada de um carro. Logo percebeu que se
tratava de uma prostituta, daquelas que trabalhavam pelas redondezas, e se
apiedou como há muito tempo não o fazia, pois já havia se destreinado de sentir
pena de qualquer um.
Quando olhou profundamente em seus
olhos de lágrimas e maquiagem borrada, percebeu que ela era Jully, a mesma
Jully que tanto amara na adolescência, agora travestida desta forma decadente.
Gritou por socorro e conseguiram
auxílio para chegar ao hospital mais próximo, onde todas as providências foram
tomadas.
* * *
Quando ela recebeu alta, eles foram
morar num dos apartamentos de Christian, bem situado em Manhattan. Frequentavam
os espetáculos da Broadway e até se intrometeram no mundo do teatro e da
literatura infantil, produzindo alguns escritos de certa sensibilidade e
imaginação, embora considerados imaturos pela crítica especializada.
Este foi um paliativo perfeito para a
interação de dois espíritos misantropos, acostumados à solidão forçada e ao
exílio das idiossincrasias, pela primeira vez na vida dispostos a dividir a
vida com alguém. Ingrata tarefa!
Também não mantinham qualquer espécie
de contato com seus pais ou o restante da família, o que evitava as datas
terríficas que perderam o sentido ao longo da história e que reuniam
artificialmente as pessoas em torno de uma mesa de fartura e de bocejos, tais
como o 4 de julho, o Dia de Ação de Graças, Natal, Réveillon...
Tudo até normal, normal até demais,
cafés ao invés de drinks, leito
nupcial ao invés de madrugadas aventurosas, problemas íntimos ao invés de
escândalos.
Jenny engravidou na mesma primavera em
que Chris recebeu o direito de afundar suas mãos no cimento fresco da Calçada
da Fama, e agora parecia que a maldição do rockstar havia se acabado.
Christian passou três meses em
desespero, voltou a beber ensandecidamente, a arrebentar pessoas e coisas que
encontrasse em seu caminho.
Trancou-se num dos quartos, que
pertencera a um arquiduque amaldiçoado que se enforcara por amor a uma donzela
leprosa. Cães do inferno sombreavam sua alma atormentada. Sabia que a mente
humana era a máquina mais perversa do universo, e ele mesmo foi capaz de tudo,
beirou as fronteiras da existência, da razão, do absurdo.
Colocou um LP com músicas de Grieg
para tocar no gramofone restaurado que adquirira em Paris, apanhou o revólver
de pequeno calibre que guardara na gaveta, encostou-o ao palato, e disparou. O
sangue escorreu pelo antigo assoalho. Era como se um misterioso Angus Young
tocasse a Canção de Solveig no
Valhalla, para que as bestas do Ragnarök pudessem se lamentar antes de dar
início ao fim do mundo....
* * *
O corvo negro alçou voo pela última
vez. Seu protegido partira para sempre e sua missão falha de guardá-lo se
esgotara. Sentiu uma dor intensa, como se lhe prensassem as vísceras. Seus
órgãos internos pareciam querer sair para o mundo externo, estava zonzo e
atordoado. Suas asas bateram-se desesperadamente contra os rochedos, até que
despencou ao mar como uma estrela em todo o seu esplendor antes de chocar-se
contra as trevas do Universo, e desapareceu nas águas da incompreensão e do
anonimato.
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