A Fauna (mudos coadjuvantes):
O
tatupeba,
A
onça parda,
O
gambá-de-orelha-branca,
O
cachorro-do-mato,
O
azulão,
A
asa-branca,
O
calango-de-cauda-verde,
A
arara-azul-de-lear,
A
cutia, o sagui,
O
soldadinho-do-araripe,
O
rapazinho-dos-velhos,
O
veado-catingueiro,
Mãos-peladas,
Sapos-cururus,
E
quiçá as últimas
Ararinhas-azuis.
Seus
passos lentos,
Seus
olhos negros,
Seus
pés que pisam
Mortos
gravetos
Já
viram tanto e nunca falaram,
Já
andaram nas trilhas
Que
os homens cavaram
Na
mata-branca
Que
engana e encanta
Quem
de lá não é.
Eles
conheceram o saci,
O
quibungo,
A
alemoa,
A
cabra-cabriola,
O
papa-figo.
Eles
já lamberam a mão da princesa
Do
reino encantado de Jericoacara,
Eles
tiveram a bênção do rei D. Sebastião
Antes
d’ele entrar no mar de cavalo e tudo.
Eles
deram o caminho da correnteza
Dos
rios que se secam no início
Às
sedentas almas do purgatório,
À
folha mais tenra, à flor mais rara.
Mas
isso foi no tempo que os bichos falavam,
Então
o bicho-homem vaqueiro apareceu
E
tinha uma outra e rude voz.
Só
quem seguiu dos animais o pior
Foi
a ossuda vaca, foi o resignado jumento
–
A mesma que cedeu seu estábulo no presépio,
O
mesmo que carregou triunfante a Nosso Senhor –
E
o homem logo os escravizou no seu intento
À
sua própria labuta de cemitério,
Ao
seu próprio cotidiano de dor.
Dizem
que se você chegar perto
Com
a devida ciência e paciência,
Eles
terão a lhe contar do deserto
De
estrelas-faíscas d’onde tiveram nascença.
A Flora (espinhos n’alma):
Não
se iluda com o redondo farto
Da
barriguda e da coroa-de-frade.
Não
se iluda com o sangue escarlate
Da
aroeira-vermelha e do caroá.
É
nos espinhos secos
Da
bromélia e do mandacaru
Que
o mais esperto bebe água
Qual
fosse umbu ou juá.
Aqui
tudo tem espinho
E
recolhe as folhas com um propósito,
Pois
o sol é inclemente, é mesquinho,
E
faz até do vento seu acólito.
Mas
não se iluda também que é só secura.
Nos
começos do ano, se a chuva cai,
É
verde, é florado, avivado e frescura
–
mas não, não é sempre que ela cai –
Aí
é uma tristeza,
Que
o rio não dura,
O
lago, a terra engole
E
o solo vira ranhura
–
Deus me console –
Aí
é só a pedra que continua altiva,
Os
píncaros rasgando o céu feito foice,
Os
bichos só saem de noite,
E
só as aves carniceiras ativas,
Já
que vivem de morte.
Aqui
a seiva é outra,
É
de lágrima seca,
É
semente revolta,
É
raiz de rabeca,
Acordeão
de chorar defunto,
Aboio
triste de melodia sem assunto,
Cabo
de enxada, caixão de pé junto.
E
tudo cai na terra de novo...
(...)
Corisco:
Eu
não nasci rico
Nem
nunca poderia me fazer doutor
O
que eu tenho a natureza me deixou:
Nasci
bonito.
Me
chamam Diabo Louro.
Escolho
rapariga e mulé dama.
E
se não posso escolher tomo à força
Como
a minha Dadá que levei pra cama.
Meu
nome de batismo é Cristino
Mas
o caminho de Cristo não é fácil seguir
Que
nesse mundo seco e assassino
Dar
a outra face é como desistir.
Com
17 anos eu matei
Um
protegido do coronel de Água Branca
Foi
assim que meu destino tracei:
Me
restou a vida impura ou a cova santa!
Procurei
Virgulino, o Lampião,
Que
de mundão injusto ele entende.
Ganhei
dele até meu próprio grupo
Pra
despistar poliça de volante que é tudo burro.
O
que ele não sabia é que já no fim,
Eu
e Dadá não queríamos mais.
Mas
quando eu ia lhe falar
Foi
o dia da emboscada dos animais...
Soube
que lhe traíram, furaram na bala,
Degolaram,
desfilaram co’as cabeça em praça pública.
Tomei
vingança dos coiteiros que delataram
Passei
no fio da navalha cada uma
Das
gargantas que demais falaram.
Uns
dias depois descobri meio triste
Que
matei toda uma família errada.
É
difícil saber da verdade numa terra de ilusão,
Como
quando prometeram a tal da anistia
Pra
quem deixasse o cangaço e o sertão.
Prometeram
mas me cercaram em Barra do Mendes,
Zé
Rufino e o Tenente, enviados do Cão,
Com
metralhadoras estraçalharam a perna de Dadá
E
puseram minhas tripas de fora da barriga,
Foi
assim que acabaram minhas memórias nesse chão.
Minha
cabeça também virou troféu.
Colocaram
numa escada de museu pr’as visita
Do
lado da de Lampião e de Maria Bonita!
Dadá:
Eu
tinha 13 anos,
Cosia,
cozinhava, plantava,
Que
sabia eu da vida?
Chegou
Corisco trazendo vingança
Sabia
lá eu do quê
–
E ainda não sei se meu pai sabia também –
Mas
alguém ouvia? Mas quê!
No
meu pai bateram, cortaram as orelhas,
A
mãe trancaram num quarto sem comida,
Dos
meus irmãos, cortaram os dedos feito folhas,
E
me jogaram no lombo dum jegue para a vida.
Quando
me defloraram eu sangrei feito nascente
E
tive febre por semanas a fio.
E
quando já era corpo e alma dormente,
Meu
nome já era de bandida até em jornal do Rio.
Entre
as agruras que se vive no cangaço,
O
ódio e o amor se misturavam,
E
virei a companheira de Corisco,
O
carrasco que chorava ao meu regaço.
Pai,
professor, amante, protetor.
Ele
que me ensinou a ler, a contar, a atirar.
Ele
me ouvia pra diminuir a crueldade e o horror,
E
as meninas o bando aprendeu a poupar.
E
por causa dessa paixão em furor,
Fui
a única mulher que podia um fuzil empunhar!
Fizemos
sete filhos, só três sobreviveram.
Nosso
bando de Lampião foi dizimado,
Mais
tarde caiu Corisco, co’o intestino amarrotado
Por
cima do colo, feito um travesseiro rosado.
A
minha perna, que as balas fizeram caldo,
Foi
arrancada em cirurgia, tudo muito arriscado.
Única
sobrevivente, tendo cumprido minha pena,
Recomecei
a vida, costureira, casada de novo,
Não
mais Dadá, mas Sérgia Ribeiro da Silva,
Se
não, me deixaria em paz o povo?
Dei
entrevista, virei tese, filme e documentário.
O
marido Alcides morreu, mais uma vez sobrevivi.
Vivi
até os anos 90, deixei herdeiro e inventário.
Se
me orgulho ou me envergonho, eu só sei do que eu vi.
Mas
um dia, já bem velha,
Bateu
na minha porta um oficial da reserva,
Cuspiu
na porta, disse que tinha sequela
Pelo
tiro que eu lhe dera naquela velha relva.
Então
a custo me ergui da cadeira, brandi a bengala,
E
bradei co’a força que os pulmões mal tinham a dar:
“Pois levante as mãos aos céus, seu
canalha!
Eu lhe atirei foi é pra matar!”
Padre Cícero:
O
povo me ama
Porque
eu abençoo
Em
terra de maldição.
Um
açude do paraíso
No
meio do sertão.
Prefeito,
vereador, coronel,
Promete
abrir poço
Mas
só abre buraco a bala,
Só
abre buraco n’alma
Que
só cura com retaliação,
Mas
cura não...
Eu
sou herdeiro de Francisco,
Eu
sou herdeiro de Antônio,
Eu
sou herdeiro do Conselheiro,
Eu
ergo o ostensório,
Eu
proclamo o hoc est corpus meum
E
a hóstia vira sangue.
Eu
invoco o kyrie eleison
E
a caatinga vira mangue.
Anda
comigo São José
E
Nossa Senhora de Nazaré.
São
Miguel peleja à minha frente.
São
Rafael me dá poder
De
curar toda essa gente.
Não
tenho mais medo
De
excomunhão.
Tenho
cá minhas ideias
De
lenta revolução.
Se
quer a minha bênção
Esse
tal de Lampião
Pro
seu matrimônio com Maria Bonita,
E
esse tal de Corisco
Pra
se unir a Dadá,
Pro
seu bando, pro seu alazão,
Eu
bendigo seu caminho
Eu
não me oponho, não,
Que
nessa terra sem justiça
Quem
está do lado do forte é quem tem razão!
No
Dia de Juízo é outra coisa
Que
só lá o juiz é bom...
As volantes:
Nós
é a verdade
E
a vontade
E
a lei!
Nós
é a voz do Presidente,
do
Governador,
como
foi da Majestade
El-Rei!
Nós
rapa tudo,
Passa
por cima
E
recolhe o dízimo do arraial.
O
povo escolhe o lado de quem é coiteiro,
Em
terra que não dá descanso a coveiro
Não
existe Código Penal!
Nós
cumprimo ordem
Do
tenente João Bezerra
E
até do seu Getúlio.
Pr’um
país que quer ser muderno
Num
cabe a subalterno
Deixar
viver bagulho!
Chega
de desordem,
Chega
de terror,
Hoje
em Angico
Quem
se esfalfa é cangaceiro,
Quem
se esbalda é só milico!
Tu
tem orgulho?
Tu
tava lá quando o coro comia?
Tu
tá com pena?
Leva
p’ra tua casa essa diabaria!
E Virgulino de novo:
Porque
nunca me perguntaram.
Toda
história tem duas versão
Cabe
defesa de acusação.
Se
quer ouvir, ouça então!
A
vida é um olho d’água
Que
pode dar em rio em várias direção.
A
vida vai secando
Como
a açucena pisada ao chão.
Quando
eu caí, seu moço,
De
dor e de traição,
Eu
acho que estava cansado desse troço
De
não ter mais pouso nem coração.
E
cortaram minha cabeça
E
esmagaram o nariz do cadáver,
Sem
dó ou piedade,
Como
um dia cortaram minha crença
e
minha bem-querença.
Como
um dia esmagaram minha lida
e
meu resto de humanidade...
Quanto
às cabeças, deixa eu falar mais um tanto:
Eles
levaram pros doutor examinar.
Usaram
frenologia, criminologia, direito penal.
Tentaram
achar o que tinha de errado: crânios tortos,
Cérebros
porosos, traços inquietantes, genética do mal?
Recorreram
a Lombroso, Ferri, Beccaria, Nina Rodrigues...
E
sabe o que encontraram? Nada de anormal!
Não
cabiam esses métodos, distanciamentos, palpites.
E
a conclusão mais terrível, científica, sobre estes mortos,
Era
que se tratava de humanos, e o horror era normal!