Ruas apinhadas, homens com chapéus
incômodos, mulheres e seus cestos de roupas a lavar no velho Mississipi. Barcos
a vapor. Velhos mutilados da Guerra Civil. Vida que pulsa na mesmice que
prefere não pensar em morte.
Mas morte é o que vive em mim. Morte
da menina esmagada pela locomotiva. Vapor. Barco. Locomotiva. Vapor é o que
alavanca o movimento, a vida que se dissolve, embora tu creias nunca.
Os negros marcham com seus trombones,
tubas, saxofones, tambores, comemoram – o quê?! Lembram-me dos blues e dos spirituals que os meeiros entoavam na safra do algodão na fazenda
do pai. Parece que tiram dignidade do expirar a sua música, incólumes, dói menos...
Meu violão e harmônica não doem menos.
Eles choram para ninguém quando toco no bar. E o cretino do Maurice me paga uns
trocados por isso. Ou, invés dos trocados, uma cumbuca de chitterlings[1],
uns nacos de cornbread[2],
uma dose de uísque dos alambiques clandestinos de fundo de quintal. Filho da
puta do Maurice, não entende nada de vida nem de música, se entendesse não
explorava músicos nem alcoólatras. Eu sou os dois.
A menina me estendeu a mão debaixo da
locomotiva. A menina era minha filha. E eu estava bêbado demais para
alcançá-la.
Mas que te importa? Pássaro cego e preso
canta melhor. Senta nesta banqueta que eu sou capaz de te fazer chorar com duas
estrofes.
Sabe, eu já apaguei o que fui. Tudo aquilo
é passado. Ninguém me conhece deste lado da divisa, nem a Polícia tem
jurisdição aqui.
Meu nome agora é Peter. Não é Peter o
apóstolo que nega o Mestre e aquilo mesmo que é? Ou seria melhor Paul, o
apóstolo que cai do cavalo, que muda de vida, mas que chega atrasado, precisa
ficar cego para poder enxergar, é isso a odisseia da vida então?
Que seja, o nome da pia batismal, de
cartório, esse foi pela latrina junto aos documentos. Em breve nem eu mesmo me
lembrarei dele. Não era assim quando se entrava num monastério? Seu nome, seus
cabelos, seu sexo, seu orgulho, ficavam do lado de cá da clausura. Ali dentro
nascia outro homem, arrependimento de Agostinho, inocência de Francisco,
desespero de Lutero.
Tenho refletido muito sobre isso. Só
que o meu sacerdócio é o do bardo nômade. Um homem que canta suas raízes tira
sua seiva da estrada, sua alma vem da terra, ele respira bruma, canta os
murmúrios da chuva, se alimenta do rocio da madrugada.
Só por isso eu tive coragem de fazer
aquele pacto na encruzilhada.
O houngan[3]
das Antilhas, o espírito ao seu lado, desenhado em trevas contra o fundo de luz
esfumaçada que só eu vi: “Tudo te darei e nada terás” – eu ouvi ou eu supus?
Sabe, doutor, eu fui bem sucedido
nesse negócio de música, me apresentei do Texas ao Maine, tive ideias para 235
canções, registrei todas. O último vagabundo que tentou me passar a perna agora
é comido por bagres no fundo de um leito.
E olha o que sou hoje. Na verdade eu
só queria um remédio para esquecer. Eu não gosto lá muito de psiquiatras, o
último que conheci tentou me prender com os loucos – por que todo mundo acha
que pode me meter grilhões? – depois desistiu quando disse que lhe arrancava as
tripas com as mãos se tentasse, aí então me deu umas pílulas que eu tomei e vi
a vida como ela era do avesso e foi horrível, horrível, sabe como é doutor?
Eu queria esquecer tudo isso, mas o
espírito trevoso não deixa. Ele estava de pé lá no quarto do hotel, hoje mesmo
de manhã. Ele disse “a sua menina me chegou como metade do pagamento, mas eu
nunca vou embora sem a última prestação”.
Doutor, eu vim aqui como último
recurso, disseram que tem uma cigana em Baton Rouge que aprisiona almas em sua
coleção de cristais, e que tem um pastor pentecostal em Saint Louis que expulsa
demônios, existe isso de se livrar da própria sombra? Existe isso de encontrar
a paz? De salvação?
Doutor, se preciso, me tranque aqui,
eu não aguento mais...
O doutor ouvia, em total atenção,
tomando anotações, mas sentia-se mal, sem saber o real motivo, até que se
estratificou em horror quando viu o homem gritar, gritar que não queria ir e se
transformar aos poucos de carne em neblina, até não sobrar mais nada diante de
seus olhos.
[2] N. do
A.: pão de
milho que comumente acompanha as refeições na culinária sulista dos EUA.
[3] N. do
A.: sumo sacerdote no vodu haitiano.
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