sábado, 9 de janeiro de 2016

A MENINA ESTOICA E O MENINO EPICUREU




Vi nestes dias, num dia de chuva de verão, dois pequenos irmãos a andar pela rua.
Rua de bairro, com poucos carros, destas que convidam os desavisados a desprezar as calçadas.

Tratava-se de um menino e de uma menina, a menina mais velha e condutora, o menino caçula e muito mais à vontade.

De repente, o moleque larga de vez a mão da irmã e sai – instinto universal de Gene Kelly, que poucos têm coragem de realizar – a sapatear sobre poças deixadas pela tempestade recém terminada.

A irmã entra em pânico, gelada, branca, com o peso da espada de Dâmocles sobre a cabeça, a provar que o poder só é um peso a carregar pelos outros e que se compensa, às vezes, com o sadismo secreto de vingar-se neles com gosto.

De certo que a mãe lhe incumbira de zelar pelo mais frágil – ó bela missão que corrói a qualquer um... – e ai dela se chegasse em casa com o irmãozinho neste estado. E se pegasse um resfriado então?

Começaram daí os gritos: – Para com isso! A mamãe não disse que você ia apanhar se fizesse isso de novo? Olha a sua roupinha nova! Nunca mais ajudo a te comprar nada!!!

A roupinha nova, os tênis e seus cadarços, as unhas limpas, as máscaras e os embustes! Ah, tudo que tolhe, tudo que esconde, tudo que impede... O menino mandava tudo às favas!

E a menina, fiel zelador ordenado por imposição de mãos e rito escocês da maçonaria pela própria mãe, guardiã da ordem e dos bons costumes, presa entre o ódio, a decepção e a impotência...

Não me pareceu nada de diferente de outras histórias. De mim e de minha irmã mais velha no passado. Da minha esposa e de seu irmão mais novo muitos anos atrás. E de tantos milhões que assim devem ter sido pelo mundo.

Mas eu me pus a pensar se eles continuariam a crescer assim e em que rumo tomariam em suas vidas. Seria a menina uma estoica convicta, tudo suportando e elegendo os outros como prioridade, enquanto sua couraça a acastelaria num mundo de virtudes e mofo?
E o menino? Um epicureu desnaturado, guiado pelo cio insaciável dos prazeres e – injustiça das injustiças, e por isso mesmo tão comum – o único dos dois a se dar bem na vida, passando a imagem de leveza e sociabilidade que todos queriam ver e recusando qualquer peso, como o atleta que corre só para o alvo que lhe interessa, mandando ao inferno tudo que acontece ao seu lado?

Talvez. Ou talvez não sejam mais do que pessoas medíocres e comuns, como a maioria de nós, a ter os dois dentro de si, brigando como trevas e luz, e sempre se sentindo culpados por qualquer dos dois que ganhe a luta (temporariamente, frise-se bem...).
E foi então que a mãe chegou. Ralhou com os dois, distribuiu puxões de orelha, a um por incompetência, a outro por insubordinação.

Depois de averiguar a história, exercendo o contraditório e a ampla defesa, houve por bem comprar um doce, um doce só, só para a menina. O recurso de apelação do menino, com direito a choro, blasfêmias, orações imprecatórias e uma baita falta de compostura, não renderam o esperado resultado de reforma da decisão, mas atraiu olhares curiosos e estampou um sorriso disfarçado de contentamento satânico na menina.


Quando chegaram em casa (ao menos é o que imagino), a mãe contou pormenorizadamente ao pai todo o ocorrido, o pai ouviu atentamente, fez coro de tragédia grega ao recital da mãe, deu um parabéns frio e solene à menina (mas sorriu apenas para o menino, quando ninguém estava olhando...).








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