Vi nestes dias, num dia de
chuva de verão, dois pequenos irmãos a andar pela rua.
Rua de bairro, com poucos
carros, destas que convidam os desavisados a desprezar as calçadas.
Tratava-se de um menino e de
uma menina, a menina mais velha e condutora, o menino caçula e muito mais à
vontade.
De repente, o moleque larga
de vez a mão da irmã e sai – instinto universal de Gene Kelly, que poucos têm
coragem de realizar – a sapatear sobre poças deixadas pela tempestade recém terminada.
A irmã entra em pânico,
gelada, branca, com o peso da espada de Dâmocles sobre a cabeça, a provar que o
poder só é um peso a carregar pelos outros e que se compensa, às vezes, com o
sadismo secreto de vingar-se neles com gosto.
De certo que a mãe lhe
incumbira de zelar pelo mais frágil – ó bela missão que corrói a qualquer um...
– e ai dela se chegasse em casa com o irmãozinho neste estado. E se pegasse um
resfriado então?
Começaram daí os gritos: – Para
com isso! A mamãe não disse que você ia apanhar se fizesse isso de novo? Olha a
sua roupinha nova! Nunca mais ajudo a te comprar nada!!!
A roupinha nova, os tênis e
seus cadarços, as unhas limpas, as máscaras e os embustes! Ah, tudo que tolhe,
tudo que esconde, tudo que impede... O menino mandava tudo às favas!
E a menina, fiel zelador
ordenado por imposição de mãos e rito escocês da maçonaria pela própria mãe,
guardiã da ordem e dos bons costumes, presa entre o ódio, a decepção e a
impotência...
Não me pareceu nada de
diferente de outras histórias. De mim e de minha irmã mais velha no passado. Da
minha esposa e de seu irmão mais novo muitos anos atrás. E de tantos milhões
que assim devem ter sido pelo mundo.
Mas eu me pus a pensar se
eles continuariam a crescer assim e em que rumo tomariam em suas vidas. Seria a
menina uma estoica convicta, tudo suportando e elegendo os outros como
prioridade, enquanto sua couraça a acastelaria num mundo de virtudes e mofo?
E o menino? Um epicureu
desnaturado, guiado pelo cio insaciável dos prazeres e – injustiça das
injustiças, e por isso mesmo tão comum – o único dos dois a se dar bem na vida,
passando a imagem de leveza e sociabilidade que todos queriam ver e recusando
qualquer peso, como o atleta que corre só para o alvo que lhe interessa,
mandando ao inferno tudo que acontece ao seu lado?
Talvez. Ou talvez não sejam mais do que
pessoas medíocres e comuns, como a maioria de nós, a ter os dois dentro de si,
brigando como trevas e luz, e sempre se sentindo culpados por qualquer dos dois
que ganhe a luta (temporariamente, frise-se bem...).
E foi então que a mãe
chegou. Ralhou com os dois, distribuiu puxões de orelha, a um por
incompetência, a outro por insubordinação.
Depois de averiguar a
história, exercendo o contraditório e a ampla defesa, houve por bem comprar um
doce, um doce só, só para a menina. O recurso de apelação do menino, com
direito a choro, blasfêmias, orações imprecatórias e uma baita falta de
compostura, não renderam o esperado resultado de reforma da decisão, mas atraiu
olhares curiosos e estampou um sorriso disfarçado de contentamento satânico na
menina.
Quando chegaram em casa (ao
menos é o que imagino), a mãe contou pormenorizadamente ao pai todo o ocorrido,
o pai ouviu atentamente, fez coro de tragédia grega ao recital da mãe, deu um
parabéns frio e solene à menina (mas sorriu apenas para o menino, quando
ninguém estava olhando...).
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