Não, não é desabafo, não é
vitimização, não é só um dia pra curtir uma fossa. Não é um manifesto, não é
uma jogada de marketing pessoal, não é um planejamento estratégico, não é nada
disso.
É que de repente eu me pus a
pensar (e não disse Sócrates que a vida não refletida não vale a pena ser
vivida?) e vi um flashback nos miolos
acerca do que me propus a fazer neste mundo.
Quando ainda muito menino,
gostava de vagar sozinho, ouvir Beethoven, Chopin, heavy metal, rock progressivo e Frank Sinatra. Lia o Hamlet, lia o
Werther, uns versos melancólicos do Romantismo, uns outros de troça e de
crítica social do Modernismo e pensava que o mundo pós-moderno (eu ainda não
sabia que ele se chamava assim) já tinha perdido o bom gosto há muito tempo e
caminhava a passos largos para a autodestruição.
Quando percebi que quem
caminhava a passos largos para a autodestruição era eu, resolvi tomar jeito.
Vamos tentar fazer amigos, fazer terapia, abandonar amores platônicos,
empreender uma busca espiritual, não é?
Passei pela filosofia
oriental, pelo evolucionismo de Bergson e de Kardec, pelo mundo
afro-brasileiro, pelas matrizes católicas, pelos existencialistas, pelos
niilistas, pelos desesperados. Encontrei-me (ou melhor, encontrei-me com Deus)
no cristianismo protestante, mais precisamente em sua teologia de matiz
calvinista, presbiteriana.
E como cristão, aprendi
desde logo a não ter ilusões sobre o homem: criatura caída, rebelde contra
Deus, manchada e distorcida pelo pecado. E, claro, se isso se aplicava aos
outros, também se aplicava a mim.
Aprendi que, justamente por
isso, os esforços do homem em direção ao seu Criador são inúteis, dependendo
sua redenção de ato gracioso e unilateral de Deus – sola gratia (Só a Graça), já dizia Lutero – humilhante para a
arrogância humana, verdade profunda para quem já chegou ao fundo do poço, fundo
este que, se você ainda não conheceu, um dia conhecerá, e agradeça por
conhecê-lo, pois creio que o homem não aprende o que significa o homem se não
conhece o poço, a “noite escura da alma” de São João da Cruz, o “abismo por
dentro do exato tamanho de Deus” de Santo Agostinho.
Aprendi também que isso tudo
não é desculpa para viver irresponsavelmente – justamente do que nos acusam
aqueles que creem na salvação do homem por seus próprios méritos – mas para
viver de acordo com sua nova vida, a vida que ama porque se sabe amada,
incondicionalmente amada.
Mas é aí que surge em cena o
grande problema, porque a sombra que contamina, o impulso do que destrói tudo
que é belo, sempre estará ali, às vezes mais forte, às vezes mais fraco,
dependendo do cão interior que você resolver alimentar mais, como já disse
algum monge medieval
E quanto aos momentos de
dúvida, de espanto, de aguerridas lutas, de dor e de injustiça? Sim, porque nem
tudo será um canto alegre de certeza, mas será preciso aceitar que muito não se
sabe – às vezes nunca se saberá – e do lado de cá do mistério cabe trabalhar
com as mãos que nos foram dadas e o resto colocar nas mãos de Deus, orar,
porque oração é entrega: ora et labora
(ora e trabalha!) já disse São Bento à sua ordem de monges no século VI.
Foi então com essa armadura,
já jovem adulto, que eu saí para enfrentar o mundo. E que mundo!
Apaixonado pelas letras,
passei raspando pela Literatura e caí nos bancos do colateral Direito: parecia
uma boa ideia, juntar uma ciência que se ergue sobre o poder da palavra e ainda
guarda como ideal-mor a Justiça, não é mesmo?
Pois bem. Agora só precisávamos
constatar como de fato se construía a justiça do homem.
Em primeiro lugar, há que se
perguntar que raios é a Justiça, já que, em se tratando de valores morais presentes
em dada sociedade e levando-se em conta que o homem contemporâneo (pós-moderno,
que é mais chique) não mais aceita absolutos, não se pode tratá-la senão de
modo relativo.
Recorramos então aos sábios,
os “amantes do saber”, filósofos, como Pitágoras os chamou. Ora, Sócrates
percebeu sua ignorância fundamental e a necessidade de buscar a sabedoria e a
virtude, num processo sem fim. Seu discípulo Platão ficou horrorizado ao ver
seu mestre ser condenado à morte por causa da verdade (ah, isso nós cristãos
conhecemos bem!) e descrendo totalmente deste mundo, empurra para um “mundo das
ideias”, fora e além daqui, todos os valores, onde estarão dentre outros o Bem
e a Justiça! OK, OK, mas o que fazer aqui, vivendo em nossos corpos (a “prisão
da alma”, como ele disse), se inclusive não aceito sua aristocrática e
determinista República de filósofos?
Sigamos então por
Aristóteles, que cansado dos sonhos de seu mestre Platão, resolve fincar bem
seus dois pés no chão e pensar mais sobre ciências naturais do que sobre
conceitos metafísicos. Agora a ética é um exercício e a virtude é um
meio-termo. Pois bem. Sensato, seco, direto e árduo – como quase tudo em
Aristóteles – mas de um realismo irretocável.
Mas aí é de se perguntar
quem de nós é capaz, já que (estava me esquecendo de dizer) o homem pós-moderno
também é preguiçoso e imediatista, um banana, um fast food existencial!
Pulando toda a Idade Média –
já falei de religião aqui – aportamos na Revolução Científica, que nasce nos
átrios das universidades fundadas pela Igreja e, antes de cuspir no prato em
que comeu, tenta separar o que é campo do homem do que é campo de Deus (uma
inconsistência lógica, se se crê na onipresença e onipotência de Deus, mas
sigamos, como mero exercício racional...). Agora se começam a abandonar as quimeras
de cidades perfeitas para o bicho-homem viver (a Utopia de Morus, a Cidade do
Sol de Campanella) e a sátira desfigura o sublime: Dom Quixote, Gargântua e
Pantagruel, os reis sanguinários de Shakespeare...
Maquiavel fratura o mundo
entre virtudes pessoais e razões de Estado – as últimas justificando tudo e se
configurando totalmente incompatíveis com as primeiras.
Hobbes exagera na “depravação
total” do calvinismo, e, enxergando lobos em homens, defende o “escreveu não
leu, o pau comeu”. Bodin, Bossuet e outros não ficarão atrás e darão todo poder
ao rei, esse que é escolhido pelo próprio Deus com a missão de botar ordem na
Terra!
Mas que reis! Tão podres
quanto a maioria de seus súditos, começam a erigir seus impérios de terror,
impérios que atravessam mares e trucidam povos dantes desconhecidos.
Não seria estranho,
sabendo-se do caráter esquizofrênico do ser humano, que este seria levado, em
seu eterno movimento de pêndulo, a trocar a segurança pela liberdade, o
universal pelo individual, a fé pela razão.
Iluminados! Sim, é o que se
achavam! E todo o resto, automaticamente, era trevas...
Críticas a tudo, uma fé,
mais cega do que a medieval, na ciência e na reforma política dos homens,
revoluções burguesas, liberdades clássicas!
Não que não haja aí também
muito de bom, mas, de novo, os pobres (bucha de canhão da Revolução) foram
empurrados às margens!
Às margens não: às cidades
imundas e às fábricas insalubres. O que ditava as normas do mundo agora era um
utilitarismo ético sem precedentes, mascarado de liberdade, que engordava com o
lucro, e o número de mortos podia se contar muito acima dos extermínios dos
antigos reis.
Quem sabe se porque agora,
num Estado laico, republicano, de Direito e burocratizado, o mal não esteja
pulverizado em milhares de funcionários anônimos que apenas cumprem ordens que
saíram pela primeira vez sabe-se lá de quem? Não foi isso que percebeu Hannah Arendt
sobre os carrascos nazistas julgados em Jerusalém?
Reações não tardaram.
Socialismos – não só aquele, mas vários! – brotavam dos proletários da Europa.
Contra ou a favor destes, o século XX veria nascerem as guerras, sempre em nome
do melhor, sempre resultando no pior!
Talvez, porque, de fato, não
se poderia confiar nos homens. Nesse ponto até o anjo caído concorda, pois
embora seja “o pai da mentira”, nisto não há como esconder.
Quem sabe então jogar a
toalha? Achar que estamos sós diante do abismo, diante do nada? Tão Nietzsche,
tão Sartre, criar nosso próprio caminho, sem se importar se alguém está nos
seguindo ou se está precisando de nós?
Ou quem sabe, nesta moda de
sustentabilidade, temendo a crise hídrica e o aquecimento global, não devamos
nos tornar “humanos”, numa enorme ética comunitária de irmãos que abraçam a
grande Mãe Gaia?
Pois bem, se o caro leitor
me acompanhou até aqui, deve ter entendido um pouco sobre o que à época (e
ainda hoje) me atormentava.
Estudando, estagiando, ganhando
pouco, gastando ternos e sapatos, formei-me advogado.
Entendi o básico dos milhões
de leis de uma nação hipernormatizada, que ainda acredita resolver seus
problemas criando leis novas numa estrutura que sequer consegue cumprir as
antigas, e fui jogado no recheio do sanduíche entre tal sistema que tenta
manter alguma aparência de justiça e um povo que não guarda qualquer simpatia
por regras ou obediência a quem quer que seja.
Mantive-me longe do Direito
Penal (quem sabe assim nunca defenderia criminosos...), longe do Direito do
Trabalho (quem sabe assim nunca impediria um trabalhador de receber seus
lídimos direitos ajudando empresas ávidas por lucros...) e longe do Direito Tributário
(quem sabe assim não me enojaria com o apetite descomunal do Fisco por dinheiro
dos pobres cidadãos que eram obrigados a sustentar esta máquina opressora e
corrupta, atravancando o crescimento econômico...), e desta forma escolhi o
Direito Civil (esse arcabouço gigante, diretamente derivado dos romanos, que tudo
abarca e influencia: da família ao inventário, dos contratos às empresas, da
propriedade às indenizações).
Estava moralmente neutro,
certo? Errado! Cedo aprendi que nunca estamos moralmente neutros, mesmo quando
escolhemos a omissão (que me perdoem os cínicos e ceticistas, mas é verdade).
E cansado de ver ambientes
de guerra (escritórios ninhos de cobra), chefes neuróticos que só sabem
erguer-se diminuindo os demais (gestão do porrete, coaching assédio moral) e de reproduzir recursos processuais que em
nada acrescentariam (resolver ou procrastinar?), decidi que era novamente uma
hora para mudar de vida, e virei a mesa.
No passado fugi das Letras
para não virar professor, mas meu fim foi esse mesmo: virei professor!
Professor de algumas disciplinas de Direito, de Administração de Empresas, e,
principalmente, da minha matéria favorita: Ética.
Seu nome oficial no ensino
técnico era Ética e Cidadania Organizacional. E caberia a mim refletir com os
alunos sobre isso.
Primeiro, vi que era preciso
desmistificar a ética. A ética virou um mito ruim, uma palavra oca e mil vezes
repetida (geralmente com os propósitos errados) como “amor” nos lábios da
meretriz ou “honestidade” nos lábios do político.
Depois, vi que era preciso
achar algo de perene em meio ao que é relativo, e traduzir tal importância a
uma audiência de homens e mulheres pós-modernos, por mais démodé que isso pareça.
E, por fim, deveria fazê-lo
num país chamado Brasil, fundado sob a monarquia patrimonialista portuguesa,
tornado republicano em coronelismos regionais, treinado rapidamente e à força
para o desenvolvimento do capitalismo mais selvagem, mergulhado num mar de
desigualdades e ausências de infraestruturas, acalentado numa cultura ociosa e
protelatória, jogado contra os rochedos por uma esquerda ignorante, fanática e
belicosa que não enxerga um palmo à frente do nariz e por uma direita saudosa
de um passado que nunca existiu e que não enxerga ninguém além do próprio
umbigo.
Já ouvi que a matéria era
inútil, que é um belíssimo meio de encher linguiça, que é um componente
anacrônico da grade curricular, que é interessante, mas impossível na prática,
e até mesmo que não tem função técnica real, ou não traz dividendos para a
organização empresarial.
E também já vi gente
interessante, viva, entusiasmada, cheia de sonhos, mas que voltava desamparada,
depois de levar por aí tanto tapa na cara de um mundo de lobos e serpentes, um
mundo que privilegia o pior e lhe chama melhor, e está sempre pronto a nos
rotular de atrasados, sonhadores, fundamentalistas, contraproducentes,
ressentidos...
Muitas vezes pensei se não
era hora de pendurar as chuteiras, se a luta não era inútil (veja bem que a
ética pode significar luta contra outros, mas é principalmente luta
interna...). Mas havia algo que me impulsionava, mesmo que em modo standard de preservação de energia
mínima. É uma convicção, já sofrida, já surrada, de alguém pertencente a uma
geração que já não sonha com revoluções utópicas que vão mudar o mundo, mas com
o trabalho pequeno e possível, um passo por dia, um dia de cada vez, em direção
ao que já é, ao menos, melhor do que ontem. São passos que não ignoram os
obstáculos, nem a existência de tropeços, mas sabe que seu dever é andar para
frente. Sim, dever, essa é a
palavra, mesmo com Kant estando fora de moda, há imperativos categóricos neste
mundo, e o principal deles é: viver com ética e com amor, não importa o preço!
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