segunda-feira, 20 de setembro de 2021

GETÚLIO VARGAS: CARISMA, RUPTURA E CONTINUIDADE

O vocábulo “demagogia” deriva do grego “demos” (“povo”) e “agogôs” (“liderar”). O conceito surgiu na antiga Atenas, em seu período clássico (séculos VI-IV a.C.), sendo levantado pela primeira vez por Platão de maneira pejorativa. Seu discípulo Aristóteles, na basilar obra “Política”, define-a como “o uso corrente da adulação e o mau uso da oratória para conquistar o público e para apoiar um dirigente político”. Ou seja, trata-se do inverso da própria lógica aristotélica – um sofisma ao invés de um silogismo; um conjunto de falácias, promessas falsas, bajulação, desvios de foco e palavras de efeito sem qualquer significado real, que seduz as grandes massas e recorre muito mais ao emotivo, passional e obscuro do que às propriedades racionais do ser humano.


A demagogia, portanto, está intimamente ligada aos interesses particulares de um pequeno grupo dentro de uma república, ou mesmo de uma monarquia constitucional, já que, não podendo fazer o mesmo uso da força que faria um tirano ou um rei absolutista, escora-se em grandes contingentes populacionais para coagir seus opositores.


Pode-se dizer que o termo está profundamente relacionado com o conceito de “populismo”. O professor Cas Mudde, da Universidade da Georgia (EUA), define populismo como uma ideologia rasa que considera que a sociedade se divide em dois grupos antagônicos, o ‘povo’ e a ‘elite corrupta’”. Entretanto, boa parte dos historiadores prefere aplicar este último vocábulo exclusivamente ao contexto histórico vivido pelo Brasil entre 1930-1964, o que corresponde à Era Vargas e ao primeiro período de redemocratização do país. Outros países da América Latina também viveram contextos parecidos, o mesmo se podendo dizer do período posterior, a ditadura militar num contexto de Guerra Fria.


O período político brasileiro denominado “República Populista” foi totalmente impregnado pela figura onipresente de Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), gaúcho de São Borja, com formação militar e jurídica, impregnado de ideais positivistas[1] e castilhistas[2], que ascendeu no cenário político passando de deputado estadual para federal, governador do Rio Grande do Sul e Ministro da Fazenda do Presidente Washington Luís – o mesmo que iria depor através da Revolução de 1930, pondo fim à Velha República do “Café-com-Leite”.


Getúlio assume o poder através de um Governo Provisório (1930-1934), entra em conflito aberto com os paulistas (Revolução de 1932), aceita a promulgação de uma nova Constituição democrática em 1934, sendo eleito de maneira indireta como Chefe do Executivo nesta ocasião. Através de mais um golpe de Estado, assume definitivamente como ditador antes que novas eleições diretas fossem convocadas, outorgando a Constituição autoritária de 1937, e se mantendo no poder desta forma até 1945, período que ficou conhecido como Estado Novo.


Sua deposição, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, estava em consonância como o novo ideal das democracias liberais que venceram o conflito, em detrimento dos regimes autoritários e ufanistas.


Mesmo assim, é instigante observar que o presidente eleito para 1946 é seu Ex-Ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra, o qual convoca nova Assembleia Nacional Constituinte, que termina por promulgar nova Constituição democrática para o Brasil nesse mesmo ano. E mais instigante ainda: lançado candidato em 1950, Getúlio Vargas é eleito com maioria esmagadora de votos e retorna ao poder, desta vez por vias democráticas, ali permanecendo até seu emblemático suicídio com um tiro no peito no Palácio do Catete, em 24 de agosto de 1954, já totalmente premido pelos protestos populares oriundos do atentado a bala contra seu opositor Carlos Lacerda.


O fantasma de Getúlio, não obstante, continuaria a rondar a política nacional por muito mais tempo. Seu aliado em Minas Gerais, Juscelino Kubitschek de Oliveira, é eleito Presidente da República para o período de 1956 a 1961. Segue-se então o curto período de governo de Jânio Quadros, e o Vice que o sucede é um Ex-Ministro do Trabalho de Vargas, João Goulart, o Jango, que também incendeia o país com pautas sindicalistas.


Apavorados os setores mais conservadores da sociedade, o Legislativo tenta uma mudança do sistema presidencialista para o parlamentarista: nomeia-se um Primeiro-Ministro para dividir atribuições com Jango – Tancredo Neves, Ex-Ministro da Justiça de Vargas. A mudança de sistema político não é referendada pelo povo, Goulart recupera plenos poderes e o inevitável golpe militar chega em 1º de abril de 1964, capitaneado por muitos oficiais que participaram do mesmo movimento tenentista que ofereceu bases de apoio a Getúlio em 30, e que com ele partilhavam muitos dos ideais positivistas.


O mesmo movimento tenentista que também serviu de berço ideológico ao maior rival comunista de Vargas, Luís Carlos Prestes, e a um dos fundadores da União Democrática Nacional (UDN), o Brigadeiro Eduardo Gomes, que concorreu nas eleições presidenciais de 1945 contra o General Dutra[3].


Redemocratizando-se o país em 1985, é eleito de forma indireta o já citado Tancredo Neves, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), mas, falecendo antes da posse, o exercício do mandato caberia ao Vice José Sarney. Realizadas finalmente as eleições diretas para presidente em 1989, é eleito Fernando Collor de Mello, neto de Lindolfo Collor, o primeiro Ministro do Trabalho de Getúlio, entre 1930 e 1932.


Como se vê, não é fácil explicar a intrincada colcha de retalhos que compõe a máquina política nacional e sua história cheia de reviravoltas. Mas as características básicas do populismo – lançando suas raízes na Atenas de Péricles ou na Roma de Júlio César, passando pelas prédicas de Maquiavel na Florença do início do século XVI, por movimentos norte-americanos do século XIX que repudiavam a imigração de católicos irlandeses e alemães, pelos narodniks ou populistas russos que idealizavam uma vida bucólica e incitavam revoltas camponesas no mesmo século, até chegar ao estilo mais comum de propaganda política da América Latina no século XX – ainda permanecem bem vivas e atuantes.


É notável que os regimes mais autoritários do Brasil foram responsáveis pela criação da parcela mais expressiva de direitos humanos de segunda geração (direitos sociais, trabalhistas, previdenciários), enquanto massacravam os direitos de primeira geração (liberdades individuais). O Ministério do Trabalho, Comércio e Indústria, a Justiça do Trabalho, a Consolidação das Leis Trabalhistas – (Era Vargas), o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), o Programa de Integração Social (PIS) e o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/PASEP), o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), a unificação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS, transformado em 1990 em Instituto Nacional do Seguro Social – INSS) – (Ditadura Militar), são todos prova cabal deste fenômeno.


Afagar as massas populares com direitos que lhe chamem a atenção e a afeição, que as afastem dos movimentos mais à esquerda ou à direita e que garantam a perpetuação de uma relação infantilizada de paternalismo, culto à personalidade do líder e visão simplista e maniqueísta da realidade, ainda é ponto pacífico na cartilha de muitos personagens da política nacional.


Desde Getúlio como “o Pai dos Pobres”, Jânio Quadros como “a vassourinha que varreria a bandalheira”, até a campanha de Collor contra os “marajás” e a favor dos “descamisados”, ou as mudanças que “nunca se viram antes na história deste país” de um Lula, ou o “vamos resolver isso daí, tá ok?” de um Bolsonaro, os discursos simplistas, porém apaixonados, geralmente escolhendo algum indefinido bode expiatório e apelando a medos muito primais da psique humana, parecem longe de abandonar o inconsciente coletivo do brasileiro, principalmente em uma época em que a internet tornou tão mais fácil a disseminação de pseudo-argumentos e a mobilização de grupos catárticos em busca de algo maior que a mediocridade cotidiana.


Como já dizia o senador romano Cícero no primeiro século antes de Cristo: “O Tempora, o Mores!”.[4]

 

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2006.

BOURNE, Richard. Getúlio Vargas: A Esfinge dos Pampas. São Paulo: Geração Editorial, 2012.

RASOTO, Talita Jacy. Getúlio Vargas e o Populismo. Monografia apresentada ao Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Sociologia Política da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2009.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Getúlio a Castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


NOTAS

[1] Positivismo é uma corrente filosófica fundada pelo francês Auguste Comte (1798-1857), que defende que a humanidade, após atravessar um estágio teológico e um estágio metafísico, finalmente chegou à maturidade em seu estágio positivo ou científico, ou seja, o conhecimento científico é a única verdade válida. Uma de suas frases – “Amor como princípio e ordem como base; Progresso como meta" – serviu de inspiração aos militares brasileiros que seguiam suas ideias e proclamaram a República em 1889, inspirando o lema “Ordem e Progresso” da bandeira brasileira.

[2] Castilhismo foi a corrente política instituída por Júlio de Castilhos no Rio Grande do Sul, com a vigência da Constituição do Rio Grande do Sul de 1891, e com grande influência em toda a Era Vargas. Tem como características a centralização dos poderes no Executivo, a instituição de mecanismos de participação direta, como plebiscitos e referendos populares; a instauração de um Estado modernizador, intervencionista e regulador da economia, além da atuação intermediadora e moralizadora da sociedade.

[3] Fato interessante dessas eleições é que o comitê eleitoral das senhoras que faziam propaganda para Eduardo Gomes produzia docinhos à base de leite condensado e chocolate e os distribuía de porta em porta. O doce acabou levando o nome da patente do candidato: brigadeiro.

[4] “Que tempos os nossos! E que costumes!”.






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