segunda-feira, 20 de setembro de 2021

POLÍTICA CULTURAL E DITADURA MILITAR (1964-1985)

A Ditadura Militar se implantou no Brasil através do golpe perpetrado pelas Forças Armadas na madrugada do dia 31 de março para 1º de abril de 1964, depondo o então presidente João Goulart e substituindo-o por um governo provisório da Junta Militar, que, por fim, empossou o Marechal Humberto de Alencar Castello Branco na Presidência da República, em 15 de abril do mesmo ano.

Castello faleceu em março de 1967, em um acidente aéreo nunca totalmente esclarecido, pouco depois de ver assumir em seu lugar um representante da “linha dura” do Exército, o Marechal Artur da Costa e Silva. A este, seguiu-se mais um presidente da ala mais radical e violenta, o General Emílio Garrastazu Médici – que, embora tenha protagonizado um período de extrema repressão em que a prática de tortura já se institucionalizara, também foi o responsável por governar o país no chamado “milagre econômico”.

Por fim, a ala mais moderada – também chamada “castelista” ou “grupo da Sorbonne”, em decorrência de sua formação na Escola Superior de Guerra e estágios na França e EUA – voltou ao poder com o General Ernesto Geisel, sucedido pelo último presidente do regime militar, o General João Baptista de Oliveira Figueiredo. Nestes dois últimos mandatos, operou-se a chamada “abertura lenta, gradual e segura”, visando o retorno a um regime democrático sem grandes convulsões sociais.

Durante todo o período, foram inúmeras as alterações legais autocráticas, como os 17 Atos Institucionais decretados, sendo o AI-5 o mais temido (conferiu ao Presidente o poder de cassar mandatos, intervir em Estados e Municípios, suspender direitos políticos, decretar o recesso do Congresso Nacional e suspender o habeas corpus para crimes políticos). Também foi outorgada uma nova Constituição, em 24 de janeiro de 1967, concentrando ainda mais os poderes no Executivo, bem como uma nova Lei de Segurança Nacional e uma nova Lei de Imprensa, limitando a liberdade de expressão e levando centenas de jornalistas, artistas, políticos e intelectuais ao exílio.

A situação sombria do período só passaria a se desanuviar com a Lei da Anistia (Lei 6.683/79), a qual perdoava os crimes políticos ou conexos com estes cometidos por ambos os lados (Forças Armadas e movimentos de guerrilha de esquerda), permitindo o retorno de várias personalidades do exílio, embora levantando inúmeras polêmicas até hoje sobre torturadores e homicidas que permaneceram impunes.

Por fim, após a redemocratização do país, a Constituição “Cidadã”, promulgada em 5 de outubro de 1988 e vigente até hoje, garantiu plenamente a liberdade de expressão (“livre manifestação do pensamento”) no inciso IV de seu extenso artigo 5º, o qual elenca direitos e garantias fundamentais de todo cidadão brasileiro e dos estrangeiros residentes no país.

Mas o que se pode dizer da relação do regime militar brasileiro com a cultura nacional? A resposta não é tão simples como muito já se apregoou. Por um lado, a cultura pode ser estimulada como multiplicador de ufanismo, de coesão social e mesmo como a velha política do “pão e circo” a ser dada ao povo. Neste diapasão, assim como Getúlio Vargas ergueu o samba e o carnaval da marginalidade para o centro da mídia e do orgulho nacional, e se beneficiou de Carmen Miranda e do personagem Zé Carioca criado por Walt Disney para estrelar animações ao lado do Pato Donald, numa nítida política de “boa vizinhança com o Brasil” do presidente Roosevelt, a Ditadura Militar também viu no futebol (agora tricampeão da Copa do Mundo em 1970), em movimentos juvenis mais “pacíficos” (como a Jovem Guarda e a posterior carreira solo de Roberto Carlos, abandonando o rock e embalando namoros e sonhos de milhões de brasileiros com suas canções românticas açucaradas) e nos programas televisivos (de humor, de auditório, telenovelas) um excelente meio de entreter e afastar a população da discussão política.

Mas a relativa indiferença do novo regime em seus primeiros anos com os protestos e manifestações culturais parece ter um ponto de virada no emblemático ano de 1968.

Esse foi o ano das passeatas de maio em Paris, com estudantes e operários irmanados contra o presidente Charles de Gaulle. Foi o ano do auge do movimento hippie de San Francisco, Califórnia (EUA), dos protestos contra a Guerra do Vietnã, o ano do assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, da “Primavera de Praga” em que a Tchecoslováquia buscava um “socialismo de face humana” sem a mão de ferro da União Soviética.

Ano de lançamento do “White Album” dos Beatles, de “Beggars Banquet” dos Rolling Stones, de “Waiting for the Sun” dos Doors, do álbum duplo “Electric Ladyland” de Jimi Hendrix, de “Panem et Circensis” que inaugura a Tropicália, de “Raulzito e os Panteras” que apresenta o futuro ícone do rock brasileiro Raul Seixas. Ano em que nasceram as bandas Led Zeppelin, Black Sabbath e Deep Purple, que popularizariam o termo heavy metal, e também bandas como Yes e Rush (e o Pink Floyd, criado em 65, substituía seu vocalista Syd Barrett, acometido por graves problemas mentais agravados pelo LSD, por Roger Waters como seu principal letrista e líder temático). É o ano de lançamento dos álbuns de estréia do Genesis e do Jethro Tull: assim nascia o rock progressivo. Ano de filmes como “2001: Uma Odisseia no Espaço” (Stanley Kubrick), “O Bebê de Rosemary” (Roman Polanski), “Romeu e Julieta” (Franco Zeffirelli), “Yellow Submarine” (animação de George Dunning sobre músicas dos Beatles). 

No Brasil, a passeata dos 100 mil, no Rio de Janeiro, após a morte do estudante Edson Luís, de 18 anos, pela Polícia Militar, e o discurso irônico do deputado federal Márcio Moreira Alves contra as Forças Armadas, contribuíram para acelerar o processo de endurecimento do regime, originando o Ato Institucional n. 5 em 13 de dezembro do mesmo ano.

Agora, ao lado do interesse de aumentar a infraestrutura e integração nacional com as telecomunicações, de realizar a concessão das redes de televisão a aliados do regime – como Roberto Marinho (Globo), Silvio Santos (SBT/ e também proprietário de metade das ações da TV Record entre os anos 70 e 90) e Adolfo Bloch (Manchete) – e de fomentar a música erudita, as artes plásticas e o folclore através da FUNARTE (Fundação Nacional de Artes), fundada em 1975, também residia a preocupação com manifestações culturais populares que fugiam ao escopo e controle do governo.

Os grandes festivais de música realizados pela TV Record e pela TV Globo, de 1965 a 1972 – onde de quando em quando surgia algum Chico Buarque, algum Caetano Veloso, algum Geraldo Vandré, que de forma velada ou direta criticavam o autoritarismo nas letras sofisticadas de suas canções – bem como diretores teatrais como José Celso Martinez Corrêa e Gerald Thomas, ou o Cinema Novo de Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues, consistiam todos em uma grande “ameaça e afronta” à “moral e aos bons costumes” e à “doutrina da segurança nacional contra os inimigos internos da Revolução de 64”.

Uma Portaria de 1970 oficializou a censura prévia contra todas as obras que fossem consideradas “subversivas” ou “obscenas”. Peças teatrais e shows deveriam passar por um ensaio geral assistido pelos censores antes de serem liberados ao público geral. Comissões de leitores atentos analisavam obras literárias antes de seu lançamento pelas editoras.

Entretanto, o tempo mostrou ao regime militar que seus esforços pareciam levar justamente ao efeito oposto do planejado. Até hoje, críticos de arte se lembram com saudosismo da qualidade das obras produzidas no período. O refinamento e sutileza que as letras de música e os livros precisaram adquirir para escapar aos censores, o esmero em se produzir uma crítica social e política convincente mesmo não contando com recursos oficiais, levaram a cultura brasileira a outros patamares, inaugurando um tipo de música agora apelidado de Música Popular Brasileira – MPB, levando o cinema nacional ao reconhecimento internacional, e nossa literatura nunca foi tão traduzida para outros idiomas.

Outrossim, o declínio rápido observado em decorrência da ausência de financiamento público foi uma das causas do aumento da cultura de massa de qualidade inferior, patente nas “pornochanchadas”, na enxurrada de histórias em quadrinhos produzidas nos EUA, França e Itália que substituíram os livros nas mãos de muitas crianças, na música pop norte-americana das rádios FM (que subjugaram as músicas de raiz brasileiras e a música erudita às pequenas rádios AM) e na “realidade” pasteurizada da televisão.

Os impactos da Ditadura Militar para o Brasil são tremendos, mas talvez seja na área da Educação e Cultura que isto se torne mais patente. A preocupação obsessiva em limitar o pensamento crítico e treinar novas gerações para a obediência terminou por reproduzir o velho modelo de “educação bancária” descrito por Paulo Freire (aliás mais um perseguido pelo regime), onde os alunos são meros instrumentos passivos do depósito de conhecimentos das gerações anteriores, sem quaisquer perspectivas de mudança, muito menos da capacidade de criar e empreender.

Hoje, em pleno século XXI, em que tais características são praticamente obrigatórias no perfil profissional das mais diversas áreas, tal tipo de mentalidade mostra seus resultados perversos e anacrônicos.  


REFERÊNCIAS

 

FERNANDES, Natalia Ap. Morato. A política cultural à época da ditadura militar. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, v. 3, n. 1, jan-jun 2013, pp. 173-192.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 48. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa . São Paulo: Paz e Terra, 2011.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Getúlio a Castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Castelo a Tancredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

VENTURA, Zuenir. 1968: O Ano Que Não Terminou. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.





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