A
Ditadura Militar se implantou no Brasil através do golpe perpetrado pelas
Forças Armadas na madrugada do dia 31 de março para 1º de abril de 1964,
depondo o então presidente João Goulart e substituindo-o por um governo
provisório da Junta Militar, que, por fim, empossou o Marechal Humberto de
Alencar Castello Branco na Presidência da República, em 15 de abril do mesmo
ano.
Castello
faleceu em março de 1967, em um acidente aéreo nunca totalmente esclarecido,
pouco depois de ver assumir em seu lugar um representante da “linha dura” do
Exército, o Marechal Artur da Costa e Silva. A este, seguiu-se mais um
presidente da ala mais radical e violenta, o General Emílio Garrastazu Médici –
que, embora tenha protagonizado um período de extrema repressão em que a
prática de tortura já se institucionalizara, também foi o responsável por
governar o país no chamado “milagre econômico”.
Por
fim, a ala mais moderada – também chamada “castelista” ou “grupo da Sorbonne”,
em decorrência de sua formação na Escola Superior de Guerra e estágios na
França e EUA – voltou ao poder com o General Ernesto Geisel, sucedido pelo
último presidente do regime militar, o General João Baptista de Oliveira
Figueiredo. Nestes dois últimos mandatos, operou-se a chamada “abertura lenta, gradual
e segura”, visando o retorno a um regime democrático sem grandes convulsões
sociais.
Durante
todo o período, foram inúmeras as alterações legais autocráticas, como os 17
Atos Institucionais decretados, sendo o AI-5 o mais temido (conferiu ao
Presidente o poder de cassar mandatos, intervir em Estados e Municípios,
suspender direitos políticos, decretar o recesso do Congresso Nacional e
suspender o habeas corpus para crimes
políticos). Também foi outorgada uma nova Constituição, em 24 de janeiro de
1967, concentrando ainda mais os poderes no Executivo, bem como uma nova Lei de
Segurança Nacional e uma nova Lei de Imprensa, limitando a liberdade de
expressão e levando centenas de jornalistas, artistas, políticos e intelectuais
ao exílio.
A
situação sombria do período só passaria a se desanuviar com a Lei da Anistia
(Lei 6.683/79), a qual perdoava os crimes políticos ou conexos com estes
cometidos por ambos os lados (Forças Armadas e movimentos de guerrilha de
esquerda), permitindo o retorno de várias personalidades do exílio, embora
levantando inúmeras polêmicas até hoje sobre torturadores e homicidas que
permaneceram impunes.
Por
fim, após a redemocratização do país, a Constituição “Cidadã”, promulgada em 5
de outubro de 1988 e vigente até hoje, garantiu plenamente a liberdade de
expressão (“livre manifestação do pensamento”) no inciso IV de seu extenso
artigo 5º, o qual elenca direitos e garantias fundamentais de todo cidadão
brasileiro e dos estrangeiros residentes no país.
Mas
o que se pode dizer da relação do regime militar brasileiro com a cultura
nacional? A resposta não é tão simples como muito já se apregoou. Por um lado,
a cultura pode ser estimulada como multiplicador de ufanismo, de coesão social
e mesmo como a velha política do “pão e circo” a ser dada ao povo. Neste
diapasão, assim como Getúlio Vargas ergueu o samba e o carnaval da
marginalidade para o centro da mídia e do orgulho nacional, e se beneficiou de
Carmen Miranda e do personagem Zé Carioca criado por Walt Disney para estrelar
animações ao lado do Pato Donald, numa nítida política de “boa vizinhança com o
Brasil” do presidente Roosevelt, a Ditadura Militar também viu no futebol
(agora tricampeão da Copa do Mundo em 1970), em movimentos juvenis mais
“pacíficos” (como a Jovem Guarda e a posterior carreira solo de Roberto Carlos,
abandonando o rock e embalando
namoros e sonhos de milhões de brasileiros com suas canções românticas
açucaradas) e nos programas televisivos (de humor, de auditório, telenovelas)
um excelente meio de entreter e afastar a população da discussão política.
Mas
a relativa indiferença do novo regime em seus primeiros anos com os protestos e
manifestações culturais parece ter um ponto de virada no emblemático ano de
1968.
Esse
foi o ano das passeatas de maio em Paris, com estudantes e operários irmanados
contra o presidente Charles de Gaulle. Foi o ano do auge do movimento hippie de San Francisco, Califórnia
(EUA), dos protestos contra a Guerra do Vietnã, o ano do assassinato de Martin
Luther King e de Robert Kennedy, da “Primavera de Praga” em que a
Tchecoslováquia buscava um “socialismo de face humana” sem a mão de ferro da
União Soviética.
Ano
de lançamento do “White Album” dos Beatles, de “Beggars Banquet” dos Rolling
Stones, de “Waiting for the Sun” dos Doors, do álbum duplo “Electric Ladyland”
de Jimi Hendrix, de “Panem et Circensis” que inaugura a Tropicália, de
“Raulzito e os Panteras” que apresenta o futuro ícone do rock brasileiro Raul Seixas. Ano em que nasceram as bandas Led
Zeppelin, Black Sabbath e Deep Purple, que popularizariam o termo heavy metal, e também bandas como Yes e
Rush (e o Pink Floyd, criado em 65, substituía seu vocalista Syd Barrett,
acometido por graves problemas mentais agravados pelo LSD, por Roger Waters
como seu principal letrista e líder temático). É o ano de lançamento dos álbuns
de estréia do Genesis e do Jethro Tull: assim nascia o rock progressivo. Ano de filmes como “2001: Uma Odisseia no Espaço”
(Stanley Kubrick), “O Bebê de Rosemary” (Roman Polanski), “Romeu e Julieta”
(Franco Zeffirelli), “Yellow Submarine” (animação de George Dunning sobre
músicas dos Beatles).
No Brasil, a passeata
dos 100 mil, no Rio de Janeiro, após a morte do estudante Edson Luís, de 18
anos, pela Polícia Militar, e o discurso irônico do deputado federal Márcio
Moreira Alves contra as Forças Armadas, contribuíram para acelerar o processo
de endurecimento do regime, originando o Ato Institucional n. 5 em 13 de
dezembro do mesmo ano.
Agora, ao lado do
interesse de aumentar a infraestrutura e integração nacional com as
telecomunicações, de realizar a concessão das redes de televisão a aliados do
regime – como Roberto Marinho (Globo), Silvio Santos (SBT/ e também
proprietário de metade das ações da TV Record entre os anos 70 e 90) e Adolfo
Bloch (Manchete) – e de fomentar a música erudita, as artes plásticas e o
folclore através da FUNARTE (Fundação Nacional de Artes), fundada em 1975,
também residia a preocupação com manifestações culturais populares que fugiam
ao escopo e controle do governo.
Os grandes festivais
de música realizados pela TV Record e pela TV Globo, de 1965 a 1972 – onde de
quando em quando surgia algum Chico Buarque, algum Caetano Veloso, algum
Geraldo Vandré, que de forma velada ou direta criticavam o autoritarismo nas
letras sofisticadas de suas canções – bem como diretores teatrais como José
Celso Martinez Corrêa e Gerald Thomas, ou o Cinema Novo de Glauber Rocha,
Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues, consistiam
todos em uma grande “ameaça e afronta” à “moral e aos bons costumes” e à
“doutrina da segurança nacional contra os inimigos internos da Revolução de
64”.
Uma Portaria de 1970
oficializou a censura prévia contra todas as obras que fossem consideradas
“subversivas” ou “obscenas”. Peças teatrais e shows deveriam passar por um ensaio geral assistido pelos censores
antes de serem liberados ao público geral. Comissões de leitores atentos
analisavam obras literárias antes de seu lançamento pelas editoras.
Entretanto, o tempo
mostrou ao regime militar que seus esforços pareciam levar justamente ao efeito
oposto do planejado. Até hoje, críticos de arte se lembram com saudosismo da
qualidade das obras produzidas no período. O refinamento e sutileza que as
letras de música e os livros precisaram adquirir para escapar aos censores, o
esmero em se produzir uma crítica social e política convincente mesmo não
contando com recursos oficiais, levaram a cultura brasileira a outros
patamares, inaugurando um tipo de música agora apelidado de Música Popular
Brasileira – MPB, levando o cinema nacional ao reconhecimento internacional, e
nossa literatura nunca foi tão traduzida para outros idiomas.
Outrossim, o declínio
rápido observado em decorrência da ausência de financiamento público foi uma
das causas do aumento da cultura de massa de qualidade inferior, patente nas
“pornochanchadas”, na enxurrada de histórias em quadrinhos produzidas nos EUA,
França e Itália que substituíram os livros nas mãos de muitas crianças, na
música pop norte-americana das rádios
FM (que subjugaram as músicas de raiz brasileiras e a música erudita às
pequenas rádios AM) e na “realidade” pasteurizada da televisão.
Os impactos da
Ditadura Militar para o Brasil são tremendos, mas talvez seja na área da
Educação e Cultura que isto se torne mais patente. A preocupação obsessiva em
limitar o pensamento crítico e treinar novas gerações para a obediência
terminou por reproduzir o velho modelo de “educação bancária” descrito por
Paulo Freire (aliás mais um perseguido pelo regime), onde os alunos são meros
instrumentos passivos do depósito de conhecimentos das gerações anteriores, sem
quaisquer perspectivas de mudança, muito menos da capacidade de criar e
empreender.
Hoje, em pleno século
XXI, em que tais características são praticamente obrigatórias no perfil profissional
das mais diversas áreas, tal tipo de mentalidade mostra seus resultados
perversos e anacrônicos.
REFERÊNCIAS
FERNANDES, Natalia
Ap. Morato. A política cultural à época
da ditadura militar. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São
Carlos, v. 3, n. 1, jan-jun 2013, pp. 173-192.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 48. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa . São Paulo: Paz e Terra, 2011.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Getúlio a Castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Castelo a Tancredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
VENTURA, Zuenir. 1968: O Ano Que Não Terminou. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
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