quarta-feira, 1 de maio de 2013

DIA DE GATO



Despertei ao som do chamado tão conhecido. A voz de minha mulher, porém, não soava tão terna e confiante como das outras vezes. Era a voz de quem me confiava uma missão, valiosa para ela, duvidosa para mim.

A gata, a gata malhada, vira-lata, idosa, patética, que há muitos anos habitava a casa de sua mãe e que – sabe-se lá por que cargas d’água ninguém tinha coragem de levar ao veterinário – agora seria levada. E o condutor, o prestativo, cavalheiro, patético condutor, seria eu. A mulher, mais afeiçoada ao felino, iria acalmá-lo e explicar-lhe inutilmente nossas razões.

Encontramos o animal em sua sacada de sempre, na mesma pose de aristocracia anacrônica e contemplativa. Porém, ao nos aproximar, notamos como parecia ofegante, ressentido, senil. Olhou-nos como se pressentisse algo ruim e inevitável. Após alguns gracejos infantis de nossa parte, entrou na caixa transportadora sem alarde, miando poucas vezes durante o trajeto. E desceu do carro taciturno.

Na sala de espera, a gata se pôs a reconhecer o ambiente. Parecia pouco à vontade, e de quando em quando me encarava, em tom de mudo desafio, desfilando no fundo das retinas uma história de rivalidade e dependência, que por milênios unia sua espécie à minha. Vi dentro daquela íris medonha e indecifrável seus antepassados egípcios – divinizados, mumificados –, seus ascendentes persas – arrancados das ruas do Irã por aventureiros italianos – seus tataravós azuis e gordos na Corte Inglesa, esfregando o rabo impertinente na cara da Rainha Vitória e propondo charadas a Alice, com um sorriso idiota, no País das Maravilhas. Devolvi-lhe meu olhar de humano: reprovador, superior, racional, escorado em séculos e séculos de civilização. Ela não se importou. Sua espécie estava acostumada a explorar-nos como parasitas e dar-nos as costas pelo chamado da natureza, sem nunca revelar-nos o que lhe havia na alma, se é que alma havia.

Sempre achei que a serpente do Éden bem poderia ser um gato, tão mais apropriado do que um animal repulsivo e rastejante que lambia a terra para sentir alguma coisa. Lembrei-me da Lygia Fagundes Telles, na primeira vez que a vi, depois de muito esperar como ardoroso fã, na porta da Academia Paulista de Letras. Lembrei-me de como ela desceu daquele táxi com um gato pendurado ao pescoço, dedicando-lhe toda afeição, e o chá dos imortais esperando... Por que, por que eu não conseguia? Não partilhava da opinião da minha escritora favorita, da minha esposa, da minha sogra, de que os gatos poderiam oferecer um amor tão terno e genuíno como o desajeitado e kitsch amor dos cães. “Não há que se confundir independência e elegância com crueldade e desprezo”, talvez me dissessem.

Os gatos demarcavam seu território com urina e rosnados; nós com muros, cercas e preconceitos: não havia na realidade diferença substancial entre nós, a não ser que agora o poder trocara de mãos.

A veterinária chamou-nos, pelo nome da gata, a paciente. A ficha preenchida pela recepcionista adicionava o sobrenome de solteira de minha esposa ao nome da gata, o que me pareceu uma tentativa piegas de humanização e empatia.

O exame foi feito, injeções aplicadas no pescoço, na pata dianteira, três pessoas para segurar o frágil mas relutante corpo, o termômetro introduzido no ânus do animal com precisão e frieza, enquanto este nos olhava de maneira assustadoramente desafiadora, como se a interrogar “como vocês puderam?”.

Contas pagas, conversas amigáveis para cumprir o protocolo, a veterinária nos explicava como o quadro lhe parecia o de uma bronquite talvez associada à sinusite. Até a doença dela era humana, céus, o que mais poderia nos roubar?

Despedimo-nos, sabendo que a volta seria diferente da ida. Algo mudara nos dois lados. A gata, andando pouco, em círculos, demonstrava uma soberba resignada, em sua estoica solidão de felino, enquanto seus olhos me fitavam, da mesma forma que os meus fitavam os dela.

Nunca foi segredo para ninguém que eu não gostava muito dela, mas neste instante, nesta cumplicidade do saber-se vivo para fazer tanta coisa de que não gostávamos, parecíamos nos compreender, no mesmo silêncio, no mesmo andar em círculos.



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