Despertei ao som do chamado
tão conhecido. A voz de minha mulher, porém, não soava tão terna e confiante
como das outras vezes. Era a voz de quem me confiava uma missão, valiosa para
ela, duvidosa para mim.
A gata, a gata malhada,
vira-lata, idosa, patética, que há muitos anos habitava a casa de sua mãe e que
– sabe-se lá por que cargas d’água ninguém tinha coragem de levar ao
veterinário – agora seria levada. E o condutor, o prestativo, cavalheiro,
patético condutor, seria eu. A mulher, mais afeiçoada ao felino, iria acalmá-lo
e explicar-lhe inutilmente nossas razões.
Encontramos o animal em sua
sacada de sempre, na mesma pose de aristocracia anacrônica e contemplativa. Porém,
ao nos aproximar, notamos como parecia ofegante, ressentido, senil. Olhou-nos
como se pressentisse algo ruim e inevitável. Após alguns gracejos infantis de
nossa parte, entrou na caixa transportadora sem alarde, miando poucas vezes
durante o trajeto. E desceu do carro taciturno.
Na sala de espera, a gata se
pôs a reconhecer o ambiente. Parecia pouco à vontade, e de quando em quando me
encarava, em tom de mudo desafio, desfilando no fundo das retinas uma história
de rivalidade e dependência, que por milênios unia sua espécie à minha. Vi
dentro daquela íris medonha e indecifrável seus antepassados egípcios –
divinizados, mumificados –, seus ascendentes persas – arrancados das ruas do
Irã por aventureiros italianos – seus tataravós azuis e gordos na Corte
Inglesa, esfregando o rabo impertinente na cara da Rainha Vitória e propondo
charadas a Alice, com um sorriso idiota, no País das Maravilhas. Devolvi-lhe
meu olhar de humano: reprovador, superior, racional, escorado em séculos e
séculos de civilização. Ela não se importou. Sua espécie estava acostumada a
explorar-nos como parasitas e dar-nos as costas pelo chamado da natureza, sem
nunca revelar-nos o que lhe havia na alma, se é que alma havia.
Sempre achei que a serpente
do Éden bem poderia ser um gato, tão mais apropriado do que um animal repulsivo
e rastejante que lambia a terra para sentir alguma coisa. Lembrei-me da Lygia
Fagundes Telles, na primeira vez que a vi, depois de muito esperar como
ardoroso fã, na porta da Academia Paulista de Letras. Lembrei-me de como ela
desceu daquele táxi com um gato pendurado ao pescoço, dedicando-lhe toda
afeição, e o chá dos imortais esperando... Por que, por que eu não conseguia?
Não partilhava da opinião da minha escritora favorita, da minha esposa, da
minha sogra, de que os gatos poderiam oferecer um amor tão terno e genuíno como
o desajeitado e kitsch amor dos cães.
“Não há que se confundir independência e elegância com crueldade e desprezo”,
talvez me dissessem.
Os gatos demarcavam seu
território com urina e rosnados; nós com muros, cercas e preconceitos: não
havia na realidade diferença substancial entre nós, a não ser que agora o poder
trocara de mãos.
A veterinária chamou-nos,
pelo nome da gata, a paciente. A ficha preenchida pela recepcionista adicionava
o sobrenome de solteira de minha esposa ao nome da gata, o que me pareceu uma
tentativa piegas de humanização e empatia.
O exame foi feito, injeções
aplicadas no pescoço, na pata dianteira, três pessoas para segurar o frágil mas
relutante corpo, o termômetro introduzido no ânus do animal com precisão e
frieza, enquanto este nos olhava de maneira assustadoramente desafiadora, como
se a interrogar “como vocês puderam?”.
Contas pagas, conversas
amigáveis para cumprir o protocolo, a veterinária nos explicava como o quadro
lhe parecia o de uma bronquite talvez associada à sinusite. Até a doença dela
era humana, céus, o que mais poderia nos roubar?
Despedimo-nos, sabendo que a
volta seria diferente da ida. Algo mudara nos dois lados. A gata, andando
pouco, em círculos, demonstrava uma soberba resignada, em sua estoica solidão
de felino, enquanto seus olhos me fitavam, da mesma forma que os meus fitavam
os dela.
Nunca foi segredo para
ninguém que eu não gostava muito dela, mas neste instante, nesta cumplicidade
do saber-se vivo para fazer tanta coisa de que não gostávamos, parecíamos nos compreender,
no mesmo silêncio, no mesmo andar em círculos.
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