terça-feira, 17 de outubro de 2017

ELEGIA DO HOMEM PÓS-MODERNO

“Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada”.

T.S. Eliot – “Os Homens Ocos”


Hoje eu fui ao shopping pagar indenização a mim mesmo.
Fui arrastado por esteiras rolantes,
Desejos de prazeres efêmeros,
Filmes de aventuras tonitruantes,
Bandejas de exageros,
Sacolas balouçantes
E estacionamentos careiros.

Vitrines não são espelhos,
E os aromas são propositais.
Os pisos, amuradas e banheiros
Ocultam tormentosas impressões digitais.

Ontem eu também saí pra passear.
Levei minha boneca inflável,
Meu cachorro de pelúcia,
Minhas plantas de plástico retornável
E minhas pantufas de camurça.

Pegamos a estrada infindável e reta
Que leva sempre a desertos maiores
E a infernos novos.
Uma escada para o céu era a meta.
Campos de morango para sempre, senhores,
Cidade paraíso para todos os povos.
Estrela da autoestrada, prossegui.
No acostamento, as ex-amantes eu antevi:
Lady Jane, Ruby Tuesday, Pretty Woman,
Sweet Child of Mine, Lucy in the sky with diamonds,
Lovely Rita, Michelle, American Woman,
I dream of Jeannie, Alice in Wonderlands.
E de repente tudo explodia num domingo sangrento domingo,
Num atentado terrorista na Casa do Sol Nascente.
Foi assim que pelo labirinto eu fui seguindo
Sempre numa ladeira decrescente.

Depois eu parei para novas compras.
Escolhi meus deuses no supermercado
E meus amores verdadeiros no atacado,
E encomendei num site metáforas prontas.

Mas o ser humano,
Boneco de pano,
Galo de briga,
Bispo de intriga,
Peão sem tutano,
Cavalo de guerra,
Rei sem terra,
Mulher de malandro,
Alma de escafandro,
Não sabe o que quer.

Sabe, acho que ainda sou homem do século XX,
Apesar de ter nascido em seus estertores.
Minha vida tem trilha sonora
Do Henry Mancini, do Ennio Morricone, do John Williams,
Do Cole Porter, de Lennon e McCartney, de Jagger e Richards.
Minha vida tem os traumas das guerras quentes e guerras frias,
Tem uma estranheza de Kafka,
Uma tortuosidade de Picasso,
Uns devaneios de Dali e Buñuel,
Tem uns suspenses alegóricos de Hitchcock,
E a inocência forçada de Walt Disney,
E o humor ultrapassado de Chaplin, Cantinflas, Bolaños,
E uns valores que tentam ser absolutos,
Como nos épicos do Charlton Heston.

Eu ainda sonho com efeitos especiais precários,
E ainda preciso das matinês do Roberto Marinho
Ou das páginas impressas do Julio de Mesquita,
Do Victor Civita, dos irmãos Bloch.

Mas sabe,
Eu ensino História
Mas não pude aprender com meus erros.
Eu ensino Filosofia
Mas não pude encontrar para mim o sentido da vida.
Eu ensino Teologia
Mas às vezes me falta fé.
Eu ensino Marketing
Mas não sou capaz de vender nem a mim mesmo.
Eu ensino Logística
Mas na minha vida chega tudo fora de hora.

Eu ainda não me adaptei aos gigabytes do Sr. Gates, do Sr. Jobs,
Do Sr. Zuckerberg.
No meu tempo ser nerd era um martírio heroico
E não uma ostentação bilionária.

Eu ainda não consegui viver essa vida líquida
Do Professor Bauman.
Sou dado a apegos antibudistas
E a paixões anticristãs
Que me mantêm preso ao samsara dos pecados dos homens comuns,
Comuns demais, meu Deus!

Meu avô levava seu relógio no bolso.
Meu pai precisava do relógio na parede
Ou num timer de um toca-discos de última geração.
(os discos tinham lado A e lado B, meu Deus).
Eu ainda não me acostumei a levar as horas nesta tela negra
Que guarda todo meu networking, meus greatest hits,
Meus porta-retratos e a linha telefônica.
Tanta gente pra se falar e ninguém pra dizer nada,
Meu Deus!

Como nasceu esse mundo sem eu perceber?
Estava nos vapores de Watt, nos motores de Benz,
Na linha de produção de Ford, no homem-boi de Taylor,
Na linha de produção enxuta da Toyota,
Na minha imensa cara de idiota,
No sanduíche do Ray Kroc, nos itens à venda de Jeff Bezos,
Nos monumentos opulentos de Niemeyer,
No gás pra matar judeus da Bayer,
Na sagração da primavera de Stravinsky,
Nos quadrados multicores de Kandinsky,
No coração empedernido da burocracia,
No coração promíscuo da democracia,
Nos arcanos guardados a porrada da ditadura,
Nas pílulas, nos transistores, nos transgênicos da agricultura,
Nos microchips, nos capacitores, nos transgêneros da nova cultura,
No coitadismo ressentido dos socialistas,
No mundo de aparência dos capitalistas,
Na bata dos hippies,
No paletó dos yuppies,
Nos óculos dos indies,
Na flanela dos grunges,
Na jaqueta dos punks,
Na seringa dos junkies,
Nos cabelos dos headbangers,
Na geração perdida dos swingers e dos bebopers,
No êxtase dos clubbers,
Nas postagens dos haters,
Nos bares de bamba,
Nas rodas de chorões,
No jazz com samba
Da bossa do Leblon?
Nos artigos, parágrafos e incisos
Da Constituição?
Nos meandros, sacanagens e amigos
Da corrupção?
Na legal, impessoal, moral, pública e eficiente
Administração Pública,
Na ilegal, social, imoral, escandalosa e deficiente
Geração lúdica?

Mas, sabe, origens não curam sintomas,
Nem meus remédios de wi-fi,
Nem anfetamina com hi-fi,
Nem meus espirituais linfomas,
Nem meus nirvanas de neon,
Nem meus lamentos a bandoneón.

Eu me uno ao ultrapassado Bandeira
Pra dançar um tango de Gardel
Na porta de um suburbano bordel,
À beira do mangue, do mocambo e da mangueira,
Ao lado de afluentes poluídos
Do que restou de sonhos destruídos.

E então quem sabe, superados os apocalipses,
As pestes negras, as hecatombes atômicas,
Os satis, os réquiens, as Shoás, os kadishes,
Não possamos todos nos dar as mãos
No pulo ao abismo dos epicureus descontentes,
Com uma felicidade pastosa de gordo
E um humor exemplar de corvo,
Irmanados aos cínicos, aos loucos e aos doentes?  







Um comentário:

  1. Gostei das citações musicais! Na minha trilha eu acrescentaria Tonico e Tinoco.

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