Lá fora,
Na rua de ladrilhos de
delfim,
A vida prossegue de praxe e
de sina:
Éolo fazendo os garis de
Sísifo.
Eros fazendo de Psiquê as
meninas.
Apolo servindo de persona a Dionísio.
Hades, Hipnos, Fobos sorrindo
p’ra mim.
Midas está na corretora.
Penia pede esmolas à porta.
Cloacina encheu de merda a
adutora.
Ares pôs fogo ao circo e não
s’importa.
Hermes e Discórdia estão
fofocando.
Hebe é consultora no mercado
de cosméticos.
Gaia discursou à ONU que
quase está nos vomitando.
E Themis advoga à Medusa por
danos estéticos.
Aqui dentro a biblioteca luta
com fungos,
Com traças, aranhas e
neurônios cansados.
Ela fica atrás do quintal de
Flora, nos fundos,
E nem Cronos visita seus
nomes ultrapassados...
Fala Hamlet, o Príncipe da
Dinamarca:
- Quem é? E o que é o ser, se
de amargura
A tinta da alma se me
preenche ante a inútil vingança?
Quiçá a morte que a todos
verte a investidura
Traria à sede do sangue mau o
aplacar e a bastança!
Mas quê! De tantos mortos e
podres em Dinamarca,
Eu só herdei a barca que do
Estige leva ao Hades,
E ao lado de meu pai, hoje
mais um fantasma tem a marca
Dos que vagam no vazio, tanto
heróis quanto cobardes!
Fala o fidalgo D. Quixote de la Mancha :
- Mas quê, meu jovem? De que
vale um homem sem um sonho?
O que vale é o lutar e não só
o vencer.
De que importa serem moinhos
e não dragões medonhos?
De que importa a doce Dulcineia
no prostíbulo fenecer?
Mui mais louco fui que Sancho
Pança pés no chão,
Mas mui mais feliz, porque em
nuvens brancas
Se abatecia minh’alma da
quimera e não de pão,
Como vivem homenzinhos
correndo atrás de ancas!
Fala D. Juan, o sedutor de
Sevilha:
- Pera lá, oi pera lá!
Que o que vale à existência
são os sortilégios do Amor!
Grande risco! Alto lá!
Mas que risco não quer quem
nas veias tem rubor?
O mais belo é a flama de um
lábio, a maciez de uma tez,
As amoras dos seios, a
delicadeza dos pés,
A penugem de cisne de uma
vulva,
O muco receptivo da caverna
turva,
Que do homem é a origem e o
ímpeto,
A mim tão cara que me serve
de epíteto.
Essa é a glória do homem, a
conquista,
Melhor que a de exércitos ou
impérios.
É na alcova que se bebe o
vinho do golpista
E de lá se sai inebriado de
adultérios!
Fala Pantagruel, o glutão:
- O que importa é um belo
prato
Forrado de olivas,
alcaparras, manjericão,
Azeite mediterrâneo, queijo
bem curtido, macarrão.
O que importa é um copo farto
Do melhor vinho, tinto,
branco ou espumante,
P’ra ficar borracho,
melancólico ou esfuziante.
Não há coração vazio
Acima de estômago cheio.
Não há depressão com muito
molho e guarnição.
Que peito não se derrete
Com uma mousse ou tartelete,
E um cafezinho oloroso pra
fechar
Servido em finíssimo
salmovar?
Já dizia o bardo sagrado “oremos...
E comamos e bebamos
Que amanhã morreremos!”
Fala Dr. Fausto, o que vendeu
sua alma:
- Ambição! Tudo é vaidade e
ambição!
Já o sabiam os vates dos
hebreus, Davi e Salomão,
Mas ai do homem que não o conhece
por si mesmo:
Entranha-lhe feito uma
comichão e se não o satisfaz
Vive o pobre homem a esmo!
Vide comigo o que aconteceu:
As tardes tristes nos livros.
O espírito que se
entenebreceu.
O vinho com os camponeses
mais que vivos.
O leito de Margarida no
submundo.
Todo o conhecimento do mundo!
E qual a penhora na execução
do contrato?
Minh’alma ao diabo, roubada
até mesmo do porta-retrato!
Onde estava minha cabeça ao
contrair tal permuta?
Ó, Mefistófeles filho da
puta!
Fala Lemuel Gulliver, Capitão
do navio Antelope:
- Eu creio, senhores, nesta
assembleia sincera,
Que cabe também meu
pronunciamento.
A vida é aventura, descoberta
e miséria,
E quem quer que se lance a
tal mar em tormento,
Dará com as velas no vento
sem destino
E cairá em costas estranhas,
como quer Posídon.
Veja meu exemplo, cansado da
terra e seus caprichos,
Acabei entre pequenos e
gigantes, indescritíveis bichos,
Intelectuais amalucados e
improdutivos,
Imortais amaldiçoados, mortos
vivos,
E por fim cavalos que eram
melhores que humanos!
Por isso prefiro um estábulo
a centros urbanos...
Fala Acab, Capitão do
baleeiro Pequod:
- Tu és marujo bunda mole!
Não tem fibra na lida!
Eu saí ao mar ao encalço da
terrível Moby Dick!
A baleia desgraçada que
desgraçou a minha vida
E nunca descansei enquanto
não estivéssemos quites!
Fala Robinson Crusoé, o
náufrago:
- E o que ganhaste, homem
imprudente de rudeza?
Tu bem mereces o nome do rei
ímpio da Bíblia,
Pois um homem lançar-se a
embate co’a Natureza
É o mesmo que perseguir o
arco-íris à revelia!
Devias ter a humildade qu’eu
tive,
Sozinho naquela ilha
inóspita,
Agradecendo a Deus por cada
dia que vive
E procurando achar em cada
serviço um propósito.
Eu vi o selvagem Sexta-Feira
como um amigo,
Como mais tarde Tom Hanks viu
a bola de vôlei Wilson,
Tudo isso é providência
divina contra o Inimigo,
Mesmo que no papel do
náufrago preferisse Mel Gibson!
Fala o finado Brás Cubas, o embrulhão:
- Ouço-lhes, caros colegas de
papel e celulose,
Tinta e emoção, como os
vermes que me consomem,
Sem memória ou consideração,
numa cirrose
Implacável de putrefação –
que é o fim do homem.
Verão, decerto, doutro lado
do mistério,
Que o que nos espera à
sepultura é o tédio,
Mesmo diante do desfile da
marcha dos séculos,
Por saber que nem meu
emplasto serve de remédio
Ao tempo – frenético comedor
de sonhos e vigores,
Devorador lento de
lembranças, belezas e pudores!
Fala Emília, a boneca de
pano:
- Homens tolos, tristonhos,
falta a vocês uma chama de vela!
Vale na vida o brincar e
ganhar o dom da vida!
Que o diga eu que o diga Pinocchio
que o diga a Fera da Bela!
Mal-agradecidos, narizes
empinados, historinhas mal vividas!
Se vocês tivessem o cheiro do
sítio depois da chuva,
Se tivessem o coração da Dona
Benta, da Tia Nastácia, do Tio Barnabé,
A sabedoria do Visconde, do
Conselheiro, do Doutor Caramujo
(que me fez falar) e não
essas ideias da Cuca, que nunca dão pé...
A alegria da vida é essa, é
como a terra,
É ser simples e boa e útil e
presente,
Dela tudo vem, nela tudo se
encerra,
Que mais se pode querer pra
gente?
Fala Quasimodo, o corcunda da
Notre-Dame de Paris:
- Menina, você é por demais
falante,
E isso aqui é lugar pra gente
grande.
Não é com esses sapatinhos de
miss,
Com essa fala tão São
Francisco de Assis,
Com esse vestidinho de
palhaça,
Que você pode me ensinar a
achar graça.
Você nem de carne e osso é,
não sente as pedras,
Não sabe o que é ser feio, torto,
mal amado,
Escondido nas alturas feito
gárgula pelas eras,
E só na festa dos tolos e das
bruxas festejado.
Não sabe o que é amar
Esmeralda em segredo
E temer o seu desdém, e temer
o Inquisidor,
E temer a solidão eterna e
temer o degredo,
E ver seu coração
arrebentar-se de amor.
Inda um poeta da sua terra,
que foi ser gauche na vida
(Também tinha que se chamar
Carlos...)
Assim viveu em Itabira nesse
sentimento do mundo
Entendendo o claro enigma de
tudo...
Fala Werther, jovem
romântico:
- Ora, eu sei de que falas!
Não vês a bala que me
atravessa de têmpora a têmpora?
Ó dor dos infernos, nau dos
suicidas, emudecidas valas!
Tirei a minha vida por muito
menos!
Mas o que é a vida sem
Charlotte e sem confessar o pecado a Albert?
Que culpa tenho de meu
coração inquieto se saí da mesma pena que Fausto?
Nunca me apresentaram as
mulherezinhas de Louisa May Alcott,
Nem as irmãs Brönte, nem
Emily Dickinson em seu claustro!
Oh, céus, será que eu poderia
amar de novo?!
Eu só beijei a Indesejada das
gentes em seu restolho...
Fala Madame Bovary, a fútil:
- Meu nome é Emma, esposa do
Doutor,
Que gastei minha vida
provinciana sonhando com Paris,
Que procurei em leitos
estranhos o nunca encontrado amor,
Que terminei meus dias em
espasmos vis.
Quem sabe o que é o veneno da
sociedade,
Quem sabe o que é o veneno da
castidade,
Quem sabe o que é o veneno da
licenciosidade,
Já desistiu de procurar sentido
na vaidade.
Foi assim que minha esperança
se foi
Esquecida numa bolsa, sem
alarde,
No banco do último cabriolé
da tarde...
Fala Ebenezer Scrooge,
magnata britânico:
- Quantas iguais a ti eu
conheci!
Todas atrás de meu suado
dinheiro!
Quantas vezes as mãos e o
peito fechei e escondi
Por culpa de sanguessugas e
baderneiros!
Por quantos anos trabalhei
por tudo isto,
Quanto guardei e quanto renunciei
a amar,
Mas p’ra minha surpresa a
poupança foi desperdício,
Quando vi meu fim sem saudade
ou pesar.
Os três espíritos que me
visitaram,
Em experiência inefável e
transcendente,
Com suas coroas de azevinho e
tochas que iluminavam
Meu caminho desgraçado e
sempre descendente,
Me deixaram na alma esse
espinho contundente
Que unia minhas mãos à roda
de todos que choravam.
Foi por isso que renasci em
novo solo e novo arado,
Assentado à mesa desta Ceia com
a família de Cratchit.
Um homem não precisa do que é
do seu agrado
– vide Dante, vide Milton,
vide Eliot –
Ele precisa é do impacto
violento com o sagrado!
Arremata Orfeu:
- Senhores, Senhores, com
todo o respeito,
Já os ouvi e anotei seus
preceitos.
Não sei se seus conselhos são
puro despeito
Ou mesmo a sabedoria de
milênios de conceitos.
Mas o que sabeis vós, fruto
da mente doente dos gênios,
Aprisionados às páginas que cheiram
a mofo e esquecimento,
Se hoje até querem aboli-los,
ou ao menos,
Transformá-los em meios virtuais
de entretenimento?
Quanto da minha vida eu
dediquei a vós
E a não viver?
Quanto me enveredei pelos
seus nós,
Mas não pequei?
Como posso aprender a viver o
hoje e o real
Se os seus clássicos são a
vida fumegante de gente morta,
Os amores que ninguém mais
quer alimentar,
Os ideais por quem ninguém
mais quer morrer,
As ilíadas e as odisseias que
ninguém mais quer recontar,
Os romances de mil páginas
que ninguém quer ler?
Por ora eu tenho de deixar-vos.
Sei que a vida conosco foi
ingrata,
E de nós fez todos escudeiros,
clowns e parvos,
Então é bom que ela parta!
A vida, com todos seus
redemoinhos,
Tempestades, primaveras,
outonos assassinos,
Potestades, quimeras, escárnios
fesceninos,
Cobrou seu preço do velho, do
homem e do menino.
Vós, bem ou mal,
sobrevivereis.
Eu, se parto, volto ao pó e
ao rocio.
A alma, ao lado de mendigos e
de reis,
Assistirá ao julgamento sem
um pio.
O silêncio é a fala mais
sensata.
A única prece sensata a Deus.
Adeus.
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