quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Orfeu encontra os homens dos livros:

Lá fora,
Na rua de ladrilhos de delfim,
A vida prossegue de praxe e de sina:
Éolo fazendo os garis de Sísifo.
Eros fazendo de Psiquê as meninas.
Apolo servindo de persona a Dionísio.
Hades, Hipnos, Fobos sorrindo p’ra mim.

Midas está na corretora.
Penia pede esmolas à porta.
Cloacina encheu de merda a adutora.
Ares pôs fogo ao circo e não s’importa.

Hermes e Discórdia estão fofocando.
Hebe é consultora no mercado de cosméticos.
Gaia discursou à ONU que quase está nos vomitando.
E Themis advoga à Medusa por danos estéticos.

Aqui dentro a biblioteca luta com fungos,
Com traças, aranhas e neurônios cansados.
Ela fica atrás do quintal de Flora, nos fundos,
E nem Cronos visita seus nomes ultrapassados...


Fala Hamlet, o Príncipe da Dinamarca:

- Quem é? E o que é o ser, se de amargura
A tinta da alma se me preenche ante a inútil vingança?
Quiçá a morte que a todos verte a investidura
Traria à sede do sangue mau o aplacar e a bastança!

Mas quê! De tantos mortos e podres em Dinamarca,
Eu só herdei a barca que do Estige leva ao Hades,
E ao lado de meu pai, hoje mais um fantasma tem a marca
Dos que vagam no vazio, tanto heróis quanto cobardes!


Fala o fidalgo D. Quixote de la Mancha:

- Mas quê, meu jovem? De que vale um homem sem um sonho?
O que vale é o lutar e não só o vencer.
De que importa serem moinhos e não dragões medonhos?
De que importa a doce Dulcineia no prostíbulo fenecer?

Mui mais louco fui que Sancho Pança pés no chão,
Mas mui mais feliz, porque em nuvens brancas
Se abatecia minh’alma da quimera e não de pão,
Como vivem homenzinhos correndo atrás de ancas!


Fala D. Juan, o sedutor de Sevilha:

- Pera lá, oi pera lá!
Que o que vale à existência são os sortilégios do Amor!
Grande risco! Alto lá!
Mas que risco não quer quem nas veias tem rubor?

O mais belo é a flama de um lábio, a maciez de uma tez,
As amoras dos seios, a delicadeza dos pés,
A penugem de cisne de uma vulva,
O muco receptivo da caverna turva,
Que do homem é a origem e o ímpeto,
A mim tão cara que me serve de epíteto.

Essa é a glória do homem, a conquista,
Melhor que a de exércitos ou impérios.
É na alcova que se bebe o vinho do golpista
E de lá se sai inebriado de adultérios!


Fala Pantagruel, o glutão:

- O que importa é um belo prato
Forrado de olivas, alcaparras, manjericão,
Azeite mediterrâneo, queijo bem curtido, macarrão.

O que importa é um copo farto
Do melhor vinho, tinto, branco ou espumante,
P’ra ficar borracho, melancólico ou esfuziante.

Não há coração vazio
Acima de estômago cheio.
Não há depressão com muito molho e guarnição.

Que peito não se derrete
Com uma mousse ou tartelete,
E um cafezinho oloroso pra fechar
Servido em finíssimo salmovar?

Já dizia o bardo sagrado “oremos...
E comamos e bebamos
Que amanhã morreremos!”


Fala Dr. Fausto, o que vendeu sua alma:

- Ambição! Tudo é vaidade e ambição!
Já o sabiam os vates dos hebreus, Davi e Salomão,
Mas ai do homem que não o conhece por si mesmo:
Entranha-lhe feito uma comichão e se não o satisfaz
Vive o pobre homem a esmo!

Vide comigo o que aconteceu:
As tardes tristes nos livros.
O espírito que se entenebreceu.
O vinho com os camponeses mais que vivos.
O leito de Margarida no submundo.
Todo o conhecimento do mundo!

E qual a penhora na execução do contrato?
Minh’alma ao diabo, roubada até mesmo do porta-retrato!
Onde estava minha cabeça ao contrair tal permuta?
Ó, Mefistófeles filho da puta!


Fala Lemuel Gulliver, Capitão do navio Antelope:

- Eu creio, senhores, nesta assembleia sincera,
Que cabe também meu pronunciamento.
A vida é aventura, descoberta e miséria,
E quem quer que se lance a tal mar em tormento,
Dará com as velas no vento sem destino
E cairá em costas estranhas, como quer Posídon.

Veja meu exemplo, cansado da terra e seus caprichos,
Acabei entre pequenos e gigantes, indescritíveis bichos,
Intelectuais amalucados e improdutivos,
Imortais amaldiçoados, mortos vivos,
E por fim cavalos que eram melhores que humanos!
Por isso prefiro um estábulo a centros urbanos...


Fala Acab, Capitão do baleeiro Pequod:

- Tu és marujo bunda mole! Não tem fibra na lida!
Eu saí ao mar ao encalço da terrível Moby Dick!
A baleia desgraçada que desgraçou a minha vida
E nunca descansei enquanto não estivéssemos quites!


Fala Robinson Crusoé, o náufrago:

- E o que ganhaste, homem imprudente de rudeza?
Tu bem mereces o nome do rei ímpio da Bíblia,
Pois um homem lançar-se a embate co’a Natureza
É o mesmo que perseguir o arco-íris à revelia!

Devias ter a humildade qu’eu tive,
Sozinho naquela ilha inóspita,
Agradecendo a Deus por cada dia que vive
E procurando achar em cada serviço um propósito.

Eu vi o selvagem Sexta-Feira como um amigo,
Como mais tarde Tom Hanks viu a bola de vôlei Wilson,
Tudo isso é providência divina contra o Inimigo,
Mesmo que no papel do náufrago preferisse Mel Gibson!


Fala o finado Brás Cubas, o embrulhão:

- Ouço-lhes, caros colegas de papel e celulose,
Tinta e emoção, como os vermes que me consomem,
Sem memória ou consideração, numa cirrose
Implacável de putrefação – que é o fim do homem.

Verão, decerto, doutro lado do mistério,
Que o que nos espera à sepultura é o tédio,
Mesmo diante do desfile da marcha dos séculos,
Por saber que nem meu emplasto serve de remédio
Ao tempo – frenético comedor de sonhos e vigores,
Devorador lento de lembranças, belezas e pudores!


Fala Emília, a boneca de pano:

- Homens tolos, tristonhos, falta a vocês uma chama de vela!
Vale na vida o brincar e ganhar o dom da vida!
Que o diga eu que o diga Pinocchio que o diga a Fera da Bela!
Mal-agradecidos, narizes empinados, historinhas mal vividas!

Se vocês tivessem o cheiro do sítio depois da chuva,
Se tivessem o coração da Dona Benta, da Tia Nastácia, do Tio Barnabé,
A sabedoria do Visconde, do Conselheiro, do Doutor Caramujo
(que me fez falar) e não essas ideias da Cuca, que nunca dão pé...

A alegria da vida é essa, é como a terra,
É ser simples e boa e útil e presente,
Dela tudo vem, nela tudo se encerra,
Que mais se pode querer pra gente?


Fala Quasimodo, o corcunda da Notre-Dame de Paris:

- Menina, você é por demais falante,
E isso aqui é lugar pra gente grande.
Não é com esses sapatinhos de miss,
Com essa fala tão São Francisco de Assis,
Com esse vestidinho de palhaça,
Que você pode me ensinar a achar graça.

Você nem de carne e osso é, não sente as pedras,
Não sabe o que é ser feio, torto, mal amado,
Escondido nas alturas feito gárgula pelas eras,
E só na festa dos tolos e das bruxas festejado.

Não sabe o que é amar Esmeralda em segredo
E temer o seu desdém, e temer o Inquisidor,
E temer a solidão eterna e temer o degredo,
E ver seu coração arrebentar-se de amor.

Inda um poeta da sua terra, que foi ser gauche na vida
(Também tinha que se chamar Carlos...)
Assim viveu em Itabira nesse sentimento do mundo
Entendendo o claro enigma de tudo...


Fala Werther, jovem romântico:

- Ora, eu sei de que falas!
Não vês a bala que me atravessa de têmpora a têmpora?
Ó dor dos infernos, nau dos suicidas, emudecidas valas!
Tirei a minha vida por muito menos!

Mas o que é a vida sem Charlotte e sem confessar o pecado a Albert?
Que culpa tenho de meu coração inquieto se saí da mesma pena que Fausto?
Nunca me apresentaram as mulherezinhas de Louisa May Alcott,
Nem as irmãs Brönte, nem Emily Dickinson em seu claustro!
Oh, céus, será que eu poderia amar de novo?!
Eu só beijei a Indesejada das gentes em seu restolho...


Fala Madame Bovary, a fútil:

- Meu nome é Emma, esposa do Doutor,
Que gastei minha vida provinciana sonhando com Paris,
Que procurei em leitos estranhos o nunca encontrado amor,
Que terminei meus dias em espasmos vis.

Quem sabe o que é o veneno da sociedade,
Quem sabe o que é o veneno da castidade,
Quem sabe o que é o veneno da licenciosidade,
Já desistiu de procurar sentido na vaidade.

Foi assim que minha esperança se foi
Esquecida numa bolsa, sem alarde,
No banco do último cabriolé da tarde...


Fala Ebenezer Scrooge, magnata britânico:

- Quantas iguais a ti eu conheci!
Todas atrás de meu suado dinheiro!
Quantas vezes as mãos e o peito fechei e escondi
Por culpa de sanguessugas e baderneiros!

Por quantos anos trabalhei por tudo isto,
Quanto guardei e quanto renunciei a amar,
Mas p’ra minha surpresa a poupança foi desperdício,
Quando vi meu fim sem saudade ou pesar.

Os três espíritos que me visitaram,
Em experiência inefável e transcendente,
Com suas coroas de azevinho e tochas que iluminavam
Meu caminho desgraçado e sempre descendente,
Me deixaram na alma esse espinho contundente
Que unia minhas mãos à roda de todos que choravam.

Foi por isso que renasci em novo solo e novo arado,
Assentado à mesa desta Ceia com a família de Cratchit.
Um homem não precisa do que é do seu agrado
– vide Dante, vide Milton, vide Eliot –
Ele precisa é do impacto violento com o sagrado!


Arremata Orfeu:

- Senhores, Senhores, com todo o respeito,
Já os ouvi e anotei seus preceitos.
Não sei se seus conselhos são puro despeito
Ou mesmo a sabedoria de milênios de conceitos.

Mas o que sabeis vós, fruto da mente doente dos gênios,
Aprisionados às páginas que cheiram a mofo e esquecimento,
Se hoje até querem aboli-los, ou ao menos,
Transformá-los em meios virtuais de entretenimento?

Quanto da minha vida eu dediquei a vós
E a não viver?
Quanto me enveredei pelos seus nós,
Mas não pequei?

Como posso aprender a viver o hoje e o real
Se os seus clássicos são a vida fumegante de gente morta,
Os amores que ninguém mais quer alimentar,
Os ideais por quem ninguém mais quer morrer,
As ilíadas e as odisseias que ninguém mais quer recontar,
Os romances de mil páginas que ninguém quer ler?

Por ora eu tenho de deixar-vos.
Sei que a vida conosco foi ingrata,
E de nós fez todos escudeiros, clowns e parvos,
Então é bom que ela parta!

A vida, com todos seus redemoinhos,
Tempestades, primaveras, outonos assassinos,
Potestades, quimeras, escárnios fesceninos,
Cobrou seu preço do velho, do homem e do menino.

Vós, bem ou mal, sobrevivereis.
Eu, se parto, volto ao pó e ao rocio.
A alma, ao lado de mendigos e de reis,
Assistirá ao julgamento sem um pio.

O silêncio é a fala mais sensata.
A única prece sensata a Deus.
Adeus. 



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