quinta-feira, 14 de outubro de 2021
O MURO
segunda-feira, 20 de setembro de 2021
GETÚLIO VARGAS: CARISMA, RUPTURA E CONTINUIDADE
O vocábulo “demagogia” deriva do grego “demos” (“povo”) e “agogôs” (“liderar”). O conceito surgiu na antiga Atenas, em seu período clássico (séculos VI-IV a.C.), sendo levantado pela primeira vez por Platão de maneira pejorativa. Seu discípulo Aristóteles, na basilar obra “Política”, define-a como “o uso corrente da adulação e o mau uso da oratória para conquistar o público e para apoiar um dirigente político”. Ou seja, trata-se do inverso da própria lógica aristotélica – um sofisma ao invés de um silogismo; um conjunto de falácias, promessas falsas, bajulação, desvios de foco e palavras de efeito sem qualquer significado real, que seduz as grandes massas e recorre muito mais ao emotivo, passional e obscuro do que às propriedades racionais do ser humano.
A demagogia, portanto, está intimamente ligada aos interesses particulares de um pequeno grupo dentro de uma república, ou mesmo de uma monarquia constitucional, já que, não podendo fazer o mesmo uso da força que faria um tirano ou um rei absolutista, escora-se em grandes contingentes populacionais para coagir seus opositores.
Pode-se dizer que o termo está profundamente relacionado com o conceito de “populismo”. O professor Cas Mudde, da Universidade da Georgia (EUA), define populismo como “uma ideologia rasa que considera que a sociedade se divide em dois grupos antagônicos, o ‘povo’ e a ‘elite corrupta’”. Entretanto, boa parte dos historiadores prefere aplicar este último vocábulo exclusivamente ao contexto histórico vivido pelo Brasil entre 1930-1964, o que corresponde à Era Vargas e ao primeiro período de redemocratização do país. Outros países da América Latina também viveram contextos parecidos, o mesmo se podendo dizer do período posterior, a ditadura militar num contexto de Guerra Fria.
O período político brasileiro denominado “República Populista” foi totalmente impregnado pela figura onipresente de Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), gaúcho de São Borja, com formação militar e jurídica, impregnado de ideais positivistas[1] e castilhistas[2], que ascendeu no cenário político passando de deputado estadual para federal, governador do Rio Grande do Sul e Ministro da Fazenda do Presidente Washington Luís – o mesmo que iria depor através da Revolução de 1930, pondo fim à Velha República do “Café-com-Leite”.
Getúlio assume o poder através de um Governo Provisório (1930-1934), entra em conflito aberto com os paulistas (Revolução de 1932), aceita a promulgação de uma nova Constituição democrática em 1934, sendo eleito de maneira indireta como Chefe do Executivo nesta ocasião. Através de mais um golpe de Estado, assume definitivamente como ditador antes que novas eleições diretas fossem convocadas, outorgando a Constituição autoritária de 1937, e se mantendo no poder desta forma até 1945, período que ficou conhecido como Estado Novo.
Sua deposição, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, estava em consonância como o novo ideal das democracias liberais que venceram o conflito, em detrimento dos regimes autoritários e ufanistas.
Mesmo assim, é instigante observar que o presidente eleito para 1946 é seu Ex-Ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra, o qual convoca nova Assembleia Nacional Constituinte, que termina por promulgar nova Constituição democrática para o Brasil nesse mesmo ano. E mais instigante ainda: lançado candidato em 1950, Getúlio Vargas é eleito com maioria esmagadora de votos e retorna ao poder, desta vez por vias democráticas, ali permanecendo até seu emblemático suicídio com um tiro no peito no Palácio do Catete, em 24 de agosto de 1954, já totalmente premido pelos protestos populares oriundos do atentado a bala contra seu opositor Carlos Lacerda.
O fantasma de Getúlio, não obstante, continuaria a rondar a política nacional por muito mais tempo. Seu aliado em Minas Gerais, Juscelino Kubitschek de Oliveira, é eleito Presidente da República para o período de 1956 a 1961. Segue-se então o curto período de governo de Jânio Quadros, e o Vice que o sucede é um Ex-Ministro do Trabalho de Vargas, João Goulart, o Jango, que também incendeia o país com pautas sindicalistas.
Apavorados os setores mais conservadores da sociedade, o Legislativo tenta uma mudança do sistema presidencialista para o parlamentarista: nomeia-se um Primeiro-Ministro para dividir atribuições com Jango – Tancredo Neves, Ex-Ministro da Justiça de Vargas. A mudança de sistema político não é referendada pelo povo, Goulart recupera plenos poderes e o inevitável golpe militar chega em 1º de abril de 1964, capitaneado por muitos oficiais que participaram do mesmo movimento tenentista que ofereceu bases de apoio a Getúlio em 30, e que com ele partilhavam muitos dos ideais positivistas.
O mesmo movimento tenentista que também serviu de berço ideológico ao maior rival comunista de Vargas, Luís Carlos Prestes, e a um dos fundadores da União Democrática Nacional (UDN), o Brigadeiro Eduardo Gomes, que concorreu nas eleições presidenciais de 1945 contra o General Dutra[3].
Redemocratizando-se o país em 1985, é eleito de forma indireta o já citado Tancredo Neves, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), mas, falecendo antes da posse, o exercício do mandato caberia ao Vice José Sarney. Realizadas finalmente as eleições diretas para presidente em 1989, é eleito Fernando Collor de Mello, neto de Lindolfo Collor, o primeiro Ministro do Trabalho de Getúlio, entre 1930 e 1932.
Como se vê, não é fácil explicar a intrincada colcha de retalhos que compõe a máquina política nacional e sua história cheia de reviravoltas. Mas as características básicas do populismo – lançando suas raízes na Atenas de Péricles ou na Roma de Júlio César, passando pelas prédicas de Maquiavel na Florença do início do século XVI, por movimentos norte-americanos do século XIX que repudiavam a imigração de católicos irlandeses e alemães, pelos narodniks ou populistas russos que idealizavam uma vida bucólica e incitavam revoltas camponesas no mesmo século, até chegar ao estilo mais comum de propaganda política da América Latina no século XX – ainda permanecem bem vivas e atuantes.
É notável que os regimes mais autoritários do Brasil foram responsáveis pela criação da parcela mais expressiva de direitos humanos de segunda geração (direitos sociais, trabalhistas, previdenciários), enquanto massacravam os direitos de primeira geração (liberdades individuais). O Ministério do Trabalho, Comércio e Indústria, a Justiça do Trabalho, a Consolidação das Leis Trabalhistas – (Era Vargas), o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), o Programa de Integração Social (PIS) e o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/PASEP), o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), a unificação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS, transformado em 1990 em Instituto Nacional do Seguro Social – INSS) – (Ditadura Militar), são todos prova cabal deste fenômeno.
Afagar as massas populares com direitos que lhe chamem a atenção e a afeição, que as afastem dos movimentos mais à esquerda ou à direita e que garantam a perpetuação de uma relação infantilizada de paternalismo, culto à personalidade do líder e visão simplista e maniqueísta da realidade, ainda é ponto pacífico na cartilha de muitos personagens da política nacional.
Desde Getúlio como “o Pai dos Pobres”, Jânio Quadros como “a vassourinha que varreria a bandalheira”, até a campanha de Collor contra os “marajás” e a favor dos “descamisados”, ou as mudanças que “nunca se viram antes na história deste país” de um Lula, ou o “vamos resolver isso daí, tá ok?” de um Bolsonaro, os discursos simplistas, porém apaixonados, geralmente escolhendo algum indefinido bode expiatório e apelando a medos muito primais da psique humana, parecem longe de abandonar o inconsciente coletivo do brasileiro, principalmente em uma época em que a internet tornou tão mais fácil a disseminação de pseudo-argumentos e a mobilização de grupos catárticos em busca de algo maior que a mediocridade cotidiana.
Como já dizia o senador romano Cícero no primeiro século antes de Cristo: “O Tempora, o Mores!”.[4]
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2006.
BOURNE, Richard. Getúlio Vargas: A Esfinge dos Pampas. São Paulo: Geração Editorial, 2012.
RASOTO, Talita Jacy. Getúlio Vargas e o Populismo. Monografia apresentada ao Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Sociologia Política da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2009.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Getúlio a Castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
NOTAS
[1] Positivismo é uma corrente filosófica
fundada pelo francês Auguste Comte (1798-1857), que defende que a humanidade,
após atravessar um estágio teológico e um estágio metafísico, finalmente chegou
à maturidade em seu estágio positivo ou científico, ou seja, o conhecimento
científico é a única verdade válida. Uma de suas frases – “Amor como princípio e ordem como base; Progresso como
meta" – serviu de inspiração aos militares brasileiros que
seguiam suas ideias e proclamaram a República em 1889, inspirando o lema “Ordem e Progresso” da bandeira
brasileira.
[2] Castilhismo foi
a corrente política instituída por Júlio
de Castilhos no Rio Grande do Sul, com a vigência da
Constituição do Rio Grande do Sul de 1891, e com grande influência em
toda a Era
Vargas.
Tem como características a centralização dos poderes no Executivo, a
instituição de mecanismos de participação direta, como plebiscitos e referendos
populares; a instauração de um Estado modernizador, intervencionista e
regulador da economia, além da atuação intermediadora e moralizadora da
sociedade.
[3] Fato interessante dessas eleições é que o comitê eleitoral das senhoras que faziam propaganda para Eduardo Gomes produzia docinhos à base de leite condensado e chocolate e os distribuía de porta em porta. O doce acabou levando o nome da patente do candidato: brigadeiro.
POLÍTICA CULTURAL E DITADURA MILITAR (1964-1985)
A
Ditadura Militar se implantou no Brasil através do golpe perpetrado pelas
Forças Armadas na madrugada do dia 31 de março para 1º de abril de 1964,
depondo o então presidente João Goulart e substituindo-o por um governo
provisório da Junta Militar, que, por fim, empossou o Marechal Humberto de
Alencar Castello Branco na Presidência da República, em 15 de abril do mesmo
ano.
Castello
faleceu em março de 1967, em um acidente aéreo nunca totalmente esclarecido,
pouco depois de ver assumir em seu lugar um representante da “linha dura” do
Exército, o Marechal Artur da Costa e Silva. A este, seguiu-se mais um
presidente da ala mais radical e violenta, o General Emílio Garrastazu Médici –
que, embora tenha protagonizado um período de extrema repressão em que a
prática de tortura já se institucionalizara, também foi o responsável por
governar o país no chamado “milagre econômico”.
Por
fim, a ala mais moderada – também chamada “castelista” ou “grupo da Sorbonne”,
em decorrência de sua formação na Escola Superior de Guerra e estágios na
França e EUA – voltou ao poder com o General Ernesto Geisel, sucedido pelo
último presidente do regime militar, o General João Baptista de Oliveira
Figueiredo. Nestes dois últimos mandatos, operou-se a chamada “abertura lenta, gradual
e segura”, visando o retorno a um regime democrático sem grandes convulsões
sociais.
Durante
todo o período, foram inúmeras as alterações legais autocráticas, como os 17
Atos Institucionais decretados, sendo o AI-5 o mais temido (conferiu ao
Presidente o poder de cassar mandatos, intervir em Estados e Municípios,
suspender direitos políticos, decretar o recesso do Congresso Nacional e
suspender o habeas corpus para crimes
políticos). Também foi outorgada uma nova Constituição, em 24 de janeiro de
1967, concentrando ainda mais os poderes no Executivo, bem como uma nova Lei de
Segurança Nacional e uma nova Lei de Imprensa, limitando a liberdade de
expressão e levando centenas de jornalistas, artistas, políticos e intelectuais
ao exílio.
A
situação sombria do período só passaria a se desanuviar com a Lei da Anistia
(Lei 6.683/79), a qual perdoava os crimes políticos ou conexos com estes
cometidos por ambos os lados (Forças Armadas e movimentos de guerrilha de
esquerda), permitindo o retorno de várias personalidades do exílio, embora
levantando inúmeras polêmicas até hoje sobre torturadores e homicidas que
permaneceram impunes.
Por
fim, após a redemocratização do país, a Constituição “Cidadã”, promulgada em 5
de outubro de 1988 e vigente até hoje, garantiu plenamente a liberdade de
expressão (“livre manifestação do pensamento”) no inciso IV de seu extenso
artigo 5º, o qual elenca direitos e garantias fundamentais de todo cidadão
brasileiro e dos estrangeiros residentes no país.
Mas
o que se pode dizer da relação do regime militar brasileiro com a cultura
nacional? A resposta não é tão simples como muito já se apregoou. Por um lado,
a cultura pode ser estimulada como multiplicador de ufanismo, de coesão social
e mesmo como a velha política do “pão e circo” a ser dada ao povo. Neste
diapasão, assim como Getúlio Vargas ergueu o samba e o carnaval da
marginalidade para o centro da mídia e do orgulho nacional, e se beneficiou de
Carmen Miranda e do personagem Zé Carioca criado por Walt Disney para estrelar
animações ao lado do Pato Donald, numa nítida política de “boa vizinhança com o
Brasil” do presidente Roosevelt, a Ditadura Militar também viu no futebol
(agora tricampeão da Copa do Mundo em 1970), em movimentos juvenis mais
“pacíficos” (como a Jovem Guarda e a posterior carreira solo de Roberto Carlos,
abandonando o rock e embalando
namoros e sonhos de milhões de brasileiros com suas canções românticas
açucaradas) e nos programas televisivos (de humor, de auditório, telenovelas)
um excelente meio de entreter e afastar a população da discussão política.
Mas
a relativa indiferença do novo regime em seus primeiros anos com os protestos e
manifestações culturais parece ter um ponto de virada no emblemático ano de
1968.
Esse
foi o ano das passeatas de maio em Paris, com estudantes e operários irmanados
contra o presidente Charles de Gaulle. Foi o ano do auge do movimento hippie de San Francisco, Califórnia
(EUA), dos protestos contra a Guerra do Vietnã, o ano do assassinato de Martin
Luther King e de Robert Kennedy, da “Primavera de Praga” em que a
Tchecoslováquia buscava um “socialismo de face humana” sem a mão de ferro da
União Soviética.
Ano
de lançamento do “White Album” dos Beatles, de “Beggars Banquet” dos Rolling
Stones, de “Waiting for the Sun” dos Doors, do álbum duplo “Electric Ladyland”
de Jimi Hendrix, de “Panem et Circensis” que inaugura a Tropicália, de
“Raulzito e os Panteras” que apresenta o futuro ícone do rock brasileiro Raul Seixas. Ano em que nasceram as bandas Led
Zeppelin, Black Sabbath e Deep Purple, que popularizariam o termo heavy metal, e também bandas como Yes e
Rush (e o Pink Floyd, criado em 65, substituía seu vocalista Syd Barrett,
acometido por graves problemas mentais agravados pelo LSD, por Roger Waters
como seu principal letrista e líder temático). É o ano de lançamento dos álbuns
de estréia do Genesis e do Jethro Tull: assim nascia o rock progressivo. Ano de filmes como “2001: Uma Odisseia no Espaço”
(Stanley Kubrick), “O Bebê de Rosemary” (Roman Polanski), “Romeu e Julieta”
(Franco Zeffirelli), “Yellow Submarine” (animação de George Dunning sobre
músicas dos Beatles).
No Brasil, a passeata
dos 100 mil, no Rio de Janeiro, após a morte do estudante Edson Luís, de 18
anos, pela Polícia Militar, e o discurso irônico do deputado federal Márcio
Moreira Alves contra as Forças Armadas, contribuíram para acelerar o processo
de endurecimento do regime, originando o Ato Institucional n. 5 em 13 de
dezembro do mesmo ano.
Agora, ao lado do
interesse de aumentar a infraestrutura e integração nacional com as
telecomunicações, de realizar a concessão das redes de televisão a aliados do
regime – como Roberto Marinho (Globo), Silvio Santos (SBT/ e também
proprietário de metade das ações da TV Record entre os anos 70 e 90) e Adolfo
Bloch (Manchete) – e de fomentar a música erudita, as artes plásticas e o
folclore através da FUNARTE (Fundação Nacional de Artes), fundada em 1975,
também residia a preocupação com manifestações culturais populares que fugiam
ao escopo e controle do governo.
Os grandes festivais
de música realizados pela TV Record e pela TV Globo, de 1965 a 1972 – onde de
quando em quando surgia algum Chico Buarque, algum Caetano Veloso, algum
Geraldo Vandré, que de forma velada ou direta criticavam o autoritarismo nas
letras sofisticadas de suas canções – bem como diretores teatrais como José
Celso Martinez Corrêa e Gerald Thomas, ou o Cinema Novo de Glauber Rocha,
Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues, consistiam
todos em uma grande “ameaça e afronta” à “moral e aos bons costumes” e à
“doutrina da segurança nacional contra os inimigos internos da Revolução de
64”.
Uma Portaria de 1970
oficializou a censura prévia contra todas as obras que fossem consideradas
“subversivas” ou “obscenas”. Peças teatrais e shows deveriam passar por um ensaio geral assistido pelos censores
antes de serem liberados ao público geral. Comissões de leitores atentos
analisavam obras literárias antes de seu lançamento pelas editoras.
Entretanto, o tempo
mostrou ao regime militar que seus esforços pareciam levar justamente ao efeito
oposto do planejado. Até hoje, críticos de arte se lembram com saudosismo da
qualidade das obras produzidas no período. O refinamento e sutileza que as
letras de música e os livros precisaram adquirir para escapar aos censores, o
esmero em se produzir uma crítica social e política convincente mesmo não
contando com recursos oficiais, levaram a cultura brasileira a outros
patamares, inaugurando um tipo de música agora apelidado de Música Popular
Brasileira – MPB, levando o cinema nacional ao reconhecimento internacional, e
nossa literatura nunca foi tão traduzida para outros idiomas.
Outrossim, o declínio
rápido observado em decorrência da ausência de financiamento público foi uma
das causas do aumento da cultura de massa de qualidade inferior, patente nas
“pornochanchadas”, na enxurrada de histórias em quadrinhos produzidas nos EUA,
França e Itália que substituíram os livros nas mãos de muitas crianças, na
música pop norte-americana das rádios
FM (que subjugaram as músicas de raiz brasileiras e a música erudita às
pequenas rádios AM) e na “realidade” pasteurizada da televisão.
Os impactos da
Ditadura Militar para o Brasil são tremendos, mas talvez seja na área da
Educação e Cultura que isto se torne mais patente. A preocupação obsessiva em
limitar o pensamento crítico e treinar novas gerações para a obediência
terminou por reproduzir o velho modelo de “educação bancária” descrito por
Paulo Freire (aliás mais um perseguido pelo regime), onde os alunos são meros
instrumentos passivos do depósito de conhecimentos das gerações anteriores, sem
quaisquer perspectivas de mudança, muito menos da capacidade de criar e
empreender.
Hoje, em pleno século
XXI, em que tais características são praticamente obrigatórias no perfil profissional
das mais diversas áreas, tal tipo de mentalidade mostra seus resultados
perversos e anacrônicos.
REFERÊNCIAS
FERNANDES, Natalia
Ap. Morato. A política cultural à época
da ditadura militar. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São
Carlos, v. 3, n. 1, jan-jun 2013, pp. 173-192.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 48. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa . São Paulo: Paz e Terra, 2011.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Getúlio a Castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Castelo a Tancredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
VENTURA, Zuenir. 1968: O Ano Que Não Terminou. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
sábado, 17 de abril de 2021
SONETO ROCK N' ROLL
(COM 6 ESTROFES PRA FICAR MAIS REBELDE...)
quinta-feira, 8 de abril de 2021
SONETO DE FRIDA KAHLO
Sofrida, coluna partida, um ferro embutido,
A viga do bonde perfura a vagina, as entranhas:
O acidente em Coyoacán, um veado ferido,
Pernas de poliomielite não sustêm a sanha.
Macacos, beija-flores, cocos, colares de espinho,
Corações expostos, cactos, três abortos sangrentos,
Na cama, de molho, convalesce, pinta aquarelas,
Na cama, ama, loucamente, homens e mulheres:
Diego Rivera, que só lhe faz sofrer quimeras;
Maria Félix, a atriz de dramas de malmequeres;
Até Trótsky, asilado em seu moreno ninho.
Sombra de sobrancelhas, "Sou frida mas não me kahlo",
Li certa vez em um grafite dum beco cinzento,
Símbolo ou mulher? Deusa asteca que ganhou seu halo?
SONETO DE MOZART
A estrela viva diante do menino,
Corre descalço, pardais na peruca,
Persegue o arco-íris, som dos sinos,
Quer o mundo, quer dormir, quer astúcia.
Menino-prodígio, que quer não sê-lo,
Que compõe sinfonia aos oito anos,
Transcreve uma ópera inteira sereno,
E a infância finda em assuntos mundanos.
Menino eterno, uma flauta mágica,
Dom Giovanni, Fígaro, Papageno,
Mente a Rainha da Noite sarcástica...
Pequeno divertimento noturno,
Rondó, quarteto, Réquiem e pleno,
Sinfonia Júpiter, grande ele mesmo!
quarta-feira, 24 de março de 2021
GEORG FRIEDRICH HÄNDEL
“The Kingdom of this World is become
The Kingdom of Our Lord and of His Christ,
And He shall reign forever and ever!
King of Kings and Lord of Lords!
King of Kings and Lord of Lords!
Forever and ever, Hallelujah, Hallelujah,
Hallelujah!”
(Do oratório “Messiah” - 1741)
Natural de Halle na Alemanha,
Superstar em Roma,
Nápoles e Veneza,
Instalado definitivamente na Corte
Inglesa
De George II, George I e Ana.
Diretor em Londres da Real Academia de
Música;
Compositor de óperas: “Almira”, “Rinaldo”,
“Xerxes”, “Ácis e Galateia”.
Sua “Música Aquática” desfilava sobre o
Tâmisa,
Mas o público, mais e mais, cansava de
suas melopéias...
Cheio de dívidas, obeso e glutão,
Celibatário, para alguns
maníaco-depressivo,
Para outros, um grande humorista
bonachão,
Levava a sério seus dotes com tom
incisivo.
E pensar que seu pai, barbeiro-cirurgião,
E seu avô, pastor luterano,
Nunca viram com bons olhos sua vocação:
Só a mãe, às escondidas, incentivando,
Dava-lhe instrumentos escondidos no
sótão,
Que foram a única alegria depois de
órfão.
Mesmo com o pai morto, sua sombra
permanecia:
Georg cursa Direito, última vontade do
falecido.
Mas por óbvio que seu pendor não emudecia
E em Hamburgo, imberbe, toma do violino.
Em Lübeck, disputa um cargo de organista
Com Johann Mattheson, outro compositor,
Surgem rusgas de suas excentricidades de
artista
E acabam num duelo de espadas, de
etílico torpor.
Não fosse o botão do casaco roto
A desviar o golpe certeiro, ao peito, da
lâmina,
E não teríamos hoje o mestre barroco
Dos anglo-saxões e sua flâmula,
Que mesmo endividado e desprezado,
Compunha oratórios como um condenado
Que quer diminuir sua pena, escravizado
Ao mundo secreto de sua espiritual
campânula.
Quando rascunhava “O Messias”, sua
obra-prima,
Ao surgir-lhe a idéia do magnífico “Aleluia”,
Perguntou se estava fora do corpo ou
acima
Enquanto tão altiva melodia compunha.
Ao ouvi-la, à prima vez, o Rei Jorge
Levanta-se em sinal de respeito
E até hoje a tradição tem suporte:
Só se ouve o “Aleluia” desse jeito.
Handel também morreu cego como Bach,
Não deixou cônjuge nem herdeiros,
Mas deixou um mundo sonoro a se admirar
Carregado da realeza de um trompete
alvissareiro.
terça-feira, 23 de março de 2021
JOHANN SEBASTIAN BACH
Órfão aos 10 anos, criado pelo irmão,
Debruçado
ao órgão, ao cravo, ao violino,
Na
igrejinha luterana, os joelhos em oração,
Ou
– sua maior e tresloucada devoção –
Dos
dedos-raízes às teclas,
Das
cordas-carícias aos hinos,
Dos
ouvidos atentos aos anjos sibilinos.
Casado
co’a prima Maria Bárbara: sete filhos;
Viúvo
aos 35, casado com Anna Magdalena,
Com
metade da sua idade: treze filhos;
Em
meio aos choros e cueiros, o tinteiro e a pena,
A
despensa é efêmera, mas o talento é perene:
Haja
paciência, haja dinheiro, haja pênis!
O
duque Wilhelm não lhe dá valor,
O
príncipe Leopold sim, mas paga menos,
O
conde Hermann sofria de insônia:
Só
sua música lhe devolvia nervos amenos.
Ninguém
sabia ainda que o prodígio da Saxônia
Traria
ao mundo a Tocata e Fuga em Ré Menor,
A Paixão Segundo São
Mateus,
a Ária na corda Sol,
Jesus Alegria dos
Homens,
o Cravo Bem-Temperado,
Os
Concertos de Brandenburgo, o Minueto em Si Bemol.
Morreu
cego, mereceu uma nota de rodapé num jornal.
Ficou
esquecido até Mendelssohn trazer-lhe à luz do dia,
Mais
de um século depois, num festival.
Se
não, conheceríamos sua harmonia
Que
fundou os princípios tonais da música ocidental?
Quantos
aprenderam, canhestros, o piano
No
Pequeno Livro de Anna Magdalena Bach?
E
não disse o filósofo amargo e poeta ateu
Emil
Ciorán, que odiava a todos e a Deus,
Que
a única coisa que amava no Cristianismo
Era
a música de Johann Sebastian Bach?
Se
queres uma prece sincera em forma de música,
Se
queres conhecer o êxtase em empírea acústica,
Tenta
ouvir calado o humano trinado do Mestre de Eisenbach!