terça-feira, 23 de março de 2021

JOHN MILTON

 “Coros, que o trono me cercais! vós, anjos,

Cuja missão se malogrou no Mundo!

Não vos magoeis nem perturbeis co’os casos

Que, ocorridos na Terra, não podiam

Obstados ser por quanto zelo houvesse.

Profetizei-os em detalhe exato

Quando esse tentador, a vez primeira,

Vindo do Inferno, atravessou o Caos:

Disse-vos que ele em seu atroz projeto

Prosperaria, alcançaria a palma;

Que, lisonjeado e acreditando enganos,

O homem contra seu Deus seria iluso:

Sucedeu tudo assim. Por meu decreto

Não se fez necessária a queda sua,

Nem seu livre querer foi compelido

De modo algum: senhor de arbítrio próprio,

Pôde muito a seu gosto encaminhar-se.

Pecou: agora que fazer me cumpre

Senão impor-lhe à transgressão a pena

Que é destinada por sentença, a morte

Para o dia da culpa? Ele imagina

Fantasma vão a morte que não sente,

Como temia, por um pronto estrago:

Minha paciência, do perdão diversa,

Findará breve, finda antes da noite:

Minha bondade desprezada sofre,

Minha justiça desprezada pune.

Mas a quem mandarei para julgá-los?...

A quem, senão a ti, Filho dileto,

Que reinas junto a mim? Juiz te declaro

No Céu, na Terra, no Orco. Está bem visto

Que eu, do homem te incumbindo o julgamento

(Tu mediador, amigo, amparo do homem,

Que seu resgate e Redentor ser queres,

Que a ser Homem como ele te destinas),

Quero, em obséquio a ti, por ter dó dele,

À justiça juntar misericórdia”.

 

 Paraíso Perdido – Livro X

 

 

Eras puritano e mestre das artes,

Fora secretário de assuntos externos de Cromwell,

Consentira com a decapitação do Rei,

E produzias escritos salutares.

 

Em pleno século XVII defendias o divórcio

E não crias que os mortos dormem

Ou que já aguardam no Céu ou no Inferno

Co’um corpo ressurreto seu final consórcio,

Mas sim que os finados sonham, o real lhes some,

E os ímpios só têm pesadelos como troféu.

 

Não crias no que se dizia comum ou salutar

– Eras de fato um calvinista bem peculiar –

 

Perseguido depois, co’a restauração monárquica,

Já cego diante de teus livros, como um Jorge Luis Borges,

Cruel ironia e pesada sina atávica,

Deste aos anglos versos épicos e fortes.

 

Alguns a chamam quase uma segunda Bíblia,

Mas cheia de liberdades poéticas e fictícias

Com que narras a Criação, a Queda, a Redenção,

Fazendo da estultícia de Satã o protagonista da ação.

 

Descreves sua hordas, suas falanges:

Belzebu, Belial, Baal, Astarote, Moloch, Mamon,

Os titãs, os gigantes, as bestas infames,

O Pecado e a Morte guardando as portas do Caos,

Que depois invadem a Terra com seu terror.

 

Descreves os exércitos celestiais:

Uriel, Abdiel, Gabriel, Rafael, Miguel

E sua legião de querubins, arcanjos e serafins

A combater-lhes o tropel.

 

Descreves o homem e a mulher

E seu mau uso da liberdade,

A sedução, a cobiça, por que os quer?

O fruto da Ciência da absurdidade.

 

E por fim, no Conselho Celestial,

O Filho que se apresenta ao Pai,

Para remi-los, Cordeiro de Deus, de todo o mal,

Fazendo-se um deles para a sentença de Adonai!

 

Seu Paradise Lost é uma canção de pranto

Mas de esperança num mundo em ebulição.

Tu o experimentaste com tão pouco acalanto,

Mas nos puseste em estado de beleza e graça,

Com tua pena de tanto esmero e inspiração. 

 



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