segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A Ópera de Petrônio

Meu nome é Petrônio. Petrônio brasileiro, como milhares de outros Petrônios, com milhares de outros sobrenomes.

Minha história começa no rigoroso inverno de 1943, ano de guerra, maldita ira insensata dos homens.

Foi quando vim ao mundo, numa cidadezinha bem ao sul do Brasil, chamada Santa Rita dos Inválidos. Não adianta procurar no mapa, ela não está lá; é tão insignificante quanto eu.

Como ia dizendo, nasci no tal dia. Minha mãe dizia que eu tinha a mesma cara de sapo assustado que todo recém-nascido tem, mas que, na época, apesar das terríveis dores do parto, ela me achou mais lindo e fabuloso do que qualquer coisa sobre a face da Terra.

Meu pai levou pecinhas de tricô que eu poderia precisar vestir; agia como tolo, como se aquele primeiro encantamento de paternidade o tivesse reduzido ao mesmo estado de jocosidade gratuita e inocência completa daquele bebezinho, que completava o bucólico Auto de Natal junto ao resto da família.

Bom sujeito o meu pai: Sr. Gioachino Antonio; mais tarde eu descobriria ser por causa do Rossini.

Como o caro leitor já deve ter percebido, tratava-se de um italiano legítimo. E o governo federal ordenara que os nobres herdeiros do Lácio entregassem seus aparelhos de rádio. Depois, foram convocados para lutar contra os fascistas de Mussolini, que já mais pareciam fantoches de Hitler na Abissínia e no Mezzogiorno.

Falaram-me de mamãe chorando, agarrando-se a ele pelas barras das calças, na nublada tarde de despedida, como uma Tosca ou uma Lucia de Lammermoor num desespero lancinante de perder o homem amado.

Durante os muitos meses seguintes, Dona Amália teria de se virar para cuidar de mim. Lavando, passando, cozinhando, costurando para fora.

Nunca sequer chegara carta da Itália. Comecei a engatinhar, falar, andar. Brincava com um chocalho de lata, às vezes acertava minha própria cabeça e desatava a chorar. Minha mãe logo acudia, preocupada com minhas moleiras.

Meus avós maternos vieram então ajudá-la nos afazeres domésticos. Nunca saberei ao certo se para exercer solidariedade ou se para preencher o vazio de suas próprias vidas e dar sentido a um casamento esvaído pelos anos. Pelo menos, ao que demonstravam, parecia estar-se mais perto da última opção.
Tudo transcorria calmamente como a pequena horta de alface, tomates e manjericão que mantínhamos nos fundos da casa; silêncio total, talvez quebrado por uma briga de pardais, pelo leve roçar de um ouriço nas plantas da cerca ou duma lesma despencando do muro.

Um dia, eis que surge do horizonte como miragem, eu devia ter lá pelos meus dois anos: um homem em trajes militares, um rosto possuído por um misto de melancolia e alegria, uns olhos fundos de quem tudo viu e preferia não ter visto.

“Papá é aquele, mamã?”

Faz muito tempo, mas me lembro bem dos abraços distribuídos. Lembro até de tê-lo ouvido falar, alguns anos mais tarde, da vitória em Monte Castelo, duma história de descanso e de mulheres na Suíça não muito bem explicada. Lembro dos almoços com frango assado, espaguete, porpeta. Lembro do cálice de vinho de meu pai e de seu olhar distante que às vezes demorava horas para voltar-se ao seu redor.

Depois de certo tempo, meu pai assumira mais estranha postura. Chorava ao ombro de minha mãe, contava sobre o Tenente Maurício, que pisara numa mina e ficara reduzido a órgãos expostos e a uma pasta uniforme de sangue escuro. O recruta Gioachino foi incumbido de recolher os pedaços e guardá-los num saco de lixo.

A vida na roça também já não o agradava. A calmaria talvez lhe parecesse artificial demais no mundo que agora ele sabia tão cruento.

A aspereza do trabalho de carpir sob o sol, a mísera mediocridade do dia-a-dia, as roseiras vermelhas dos sítios, vermelho que ele odiava com veemência; tudo ali continuava a matá-lo.

Só agora posso entender. É como Homero descrevia em suas personagens atormentadas na Ilíada e na Odisséia. As mulheres foram feitas para a maternidade. Os homens foram feitos para a guerra. A isso lhes empurravam seus instintos, a isso conduziam suas vidas cegamente.

Então resolvemos vir para São Paulo.


*                                          *                                              *         


Fomos morar na Lapa de Baixo. Não era a Lapa boêmia do Rio, mas tinha seu romantismo.

Lapa, bairro tipicamente urbano-industrial, terras provindas de sesmarias e fazendinhas de jesuítas, crescimento provindo das ferrovias do café, piqueniques à beira do límpido igarapé Tietê, afluência de imigrantes italianos e eslavos, olarias e sítios sendo substituídos pelo loteamento do Grão-Burgo da Lapa, engenheiros ingleses da via férrea indo morar na City Lapa, no Alto da Lapa, financiamentos da Caixa Econômica, implantação das tecelagens e vidraçarias, bandinha do Largo da Lapa, colégios tradicionais de professores implacáveis, casas de comércio, Shopping Center, migrantes do Nordeste, comércio informal na Rua Doze de Outubro, bairro esquecido pela Prefeitura Municipal, história tragicômica...

Meu pai tornara-se um operário. Levantava-se cedo todos os dias para juntar-se à manada de seres iguais a ele, que moviam máquinas em ritmos iguais, quase sem parada, para retornar em noites iguais de luares e pernilongos, com salários iguais por muitos e muitos anos.

Nossa casa também era tipicamente operária. Nós três éramos os primórdios da evolução do bairro. Tínhamos toda a resignação do mundo perante as circunstâncias e ouvíamos aflitos a disputa de Marlene e Emilinha Borba pelo título de Rainha do Rádio.

Matricularam-me na escola quando cheguei à idade certa. Lembro-me agora que uma de minhas primeiras tristezas foi perceber os instintos de guerra no coração dos meninos, os instintos de totalitarismo no coração dos professores e do bedel, os instintos de futilidades no coração das meninas...

Seria por isso que acabava sempre levando a palmatória, a repreensão em olhos irados, o castigo na sala do diretor? Não havia espírito mais livre do que aquele menino que fui, nem havia maior prisioneiro na face da Terra. É o que eu ainda sou até hoje.


*                                          *                                              *

Meu pai agora parecia melhor. Voltara a contar entusiasmado suas histórias de sempre.

Disse-me que na Itália a ópera era extremamente popular. Poderia ficar horas falando sobre Verdi ou Puccini, mas por alguma razão lhe fascinaram as lendas alemãs, que ele conhecera de uma obra de Richard Wagner.

Foi numa tarde feia e chuvosa de abril de 1953 que ele me contou aquela história que iria mudar minha vida. Não sei ao certo por qual motivo, mas a maneira simples e canhestra com a qual meu pai narrava aquela epopéia, sobre os males e enganos da ambição no coração do homem, transformou-me para sempre num espectador escrupuloso do mundo, um contemplativo amargurado que vivia nem dentro nem fora do restante da raça humana.

Segundo ele me dizia, no início dos tempos, quando ainda os deuses influenciavam a vida dos bárbaros da Germânia, o rei dos deuses – Wotan – o mesmo Odin dos vikings, resolvera construir um novo castelo no Valhalla, a morada dos bem-aventurados.
Dois gigantes foram contratados para o serviço: Fafner e outro de quem eu não me lembro o nome. O mais importante para o enredo é Fafner, porque mais tarde ela mataria o outro para ficar com o pagamento do trabalho.

Acontece que não havia dinheiro no caixa dos deuses. Sabe como é, Freya, deusa da beleza, devia torrar com cosméticos; Loki, deus da mentira, devia desviar umas verbas, e Heimdall, que vigiava o fim do arco-íris – única ponte entre Asgard e Midgard (o reino do Céu e o reino da Terra) – devia cochilar de vez em quando...



Wotan então decidiu tiranicamente apossar-se do tesouro dos Nibelungos, anões que forjam riquezas das entranhas do solo.

Um dos tesouros em especial, o anel do anão Alberich, era o mais cobiçado.

No entanto, as filhas do Reno montavam guarda e prometeram uma maldição eterna a quem roubasse o ouro, escondido sob suas águas: sua vida destruída!

As jóias foram roubadas mesmo assim, e entregues aos construtores (sendo que só um sobreviveu, Fafner, como já mencionado) e agora, metamorfoseado em dragão, guardava-as como se fossem sua vida.

Enquanto isso, no plano terreno mortal, surge uma misteriosa caravana, onde reluz a beleza de uma rainha e de sua filha.

De repente, um grupo de bandidos os ataca, matando a nobilis regina e raptando a princesa, cuja mão foi entregue como prêmio a um rude lenhador.

Os dois foram morar numa casa estranha, no mínimo extravagante. Era toda construída ao redor de um carvalho gigantesco, árvore secular que trazia encravada a espada do dono. Tal Excalibur de Artur, ela só poderia ser arrancada por aquele que roubasse definitivamente o coração da moça – selo do pacto do destino ou descuido convidativo ao adultério?

Pois não é que o lenhador arrumou um novo amigo, Siegmund?

E não é que o amigo ficou desejando a mulher do próximo?

E desejou ainda mais, ao descobrir que suas histórias se cruzavam, que eles eram irmãos, filhos bastardos de Wotan.

Os deuses são incestuosos, sempre o foram em qualquer panteão. Mas quem, fora de sua família, partilharia de seus dons?

Siegmund arrancou a espada da árvore, fugiu com a mulher do outro e causou a maior confusão. Isso porque Fricka – a mesma Frigga dos vikings – que era deusa do casamento e mulher de Wotan – ficou ensandecida. Já desapontada com seu marido por causa de umas outras histórias por aí, exige vingança: o velho monarca deveria matar o rapaz atrevido e adúltero.

Ele recusa, desespera-se. Siegmund também era seu próprio filho!

Então transfere o dever para Brunhild, uma valquíria (as valquírias são deusas responsáveis por conduzir as almas dos guerreiros mortos ao Valhalla, e nasceram de um caso de Wotan com a Terra).

Mas Brunhild se nega, afinal era seu irmão. O rei dos deuses resolve castigá-la: condena-a a adormecer sobre um rochedo, em torno do qual se produziu um cinturão de fogo ardente, impedindo o acesso à donzela radiosa.

Wotan, numa cena de incomparável pesar e decepção, parte a espada encantada e mata o próprio filho.

A viúva morre de amargura, sobre o cadáver do marido.

Resta o fruto desse amor proibido: Siegfried.

Este miraculoso bebê cresceu criado por um anão (ou duende, não sei) que exercitava o ofício de ferreiro, e que reforjara a espada de origem divina.

Ouvindo as lendas sobre a caverna de Fafner, e o tesouro que havia por lá – resolve enfrentar o desafio.

O jovem herói mata o terrível monstro, banhando-se com seu sangue. Todavia, uma folha cai, grudando-se em suas costas: este ponto de seu corpo será como o calcanhar de Aquiles.

Então se apossa de toda a fortuna do monstro, agora consistente em um anel e um elmo.

Depois, segue em busca de outra lenda: A valquíria.

Agora invencível, Siegfried atravessa o fogo e desperta Brunhild (sua tia, na realidade).

Como o rapaz nunca vira uma mulher, apaixona-se perdidamente, o mesmo acontecendo com a donzela recém-desperta.




Brunhild recebe o anel dos Nibelungos como presente de noivado. Siegfried fica com o elmo, e parte.

É recepcionado num castelo mágico. Seu anfitrião, Hagen, feiticeiro disfarçado, fornece-lhe uma bebida contendo a poção da amnésia. O herói se esquece da própria identidade e de seu amor passado. Apaixona-se pela irmã do feiticeiro, Gutrune. Aquele, aproveitando-se da situação, oferece a mão da nova amada de Siegfried em casamento, como prêmio em troca de um favorzinho: o vilão desejava a fama de ter salvo Brunhild.

Dessa forma, o ingênuo rapaz apaixonado (com a aparência transfigurada na do maléfico mago) consegue tomar a valquíria à força e levá-la ao palácio.

Vendo Siegfried voltar à sua verdadeira forma, julga ter sido traída por seu amado. Como vingança, revela ao pérfido mago o segredo de seu ponto fraco, nas costas.

Siegfried é então apunhalado, sorrateiramente.

A traição verdadeira é finalmente revelada. A valquíria, arrependida, atira-se à mesma pira mortuária do jovem semideus covardemente assassinado.

O vilão místico tenta apossar-se dos despojos dos cadáveres carbonizados, momento em que é arrastado pelas filhas do Reno para o fundo das águas.

Enquanto isso, no canto do cenário, o castelo do Valhalla está caindo aos pedaços, os deuses morrem aos poucos, perdidos em atônita amargura...

Esta é a tetralogia chamada “O Anel dos Nibelungos”, da qual fazem parte “O Ouro do Reno”, “A Valquíria”, “Siegfried” e “O Crepúsculo dos Deuses”, e é encenada ao longo de cerca de quinze horas.

Meu pai nunca pode vê-la. Ouviu-a de um soldado alemão desertor, que se escondia na casa de camponeses suíços, logo depois da guerra. Esse alemão foi encontrado morto perto do poço da propriedade onde vivia. Havia lágrimas em seus olhos, uma partitura de uma ária de Brunhild na mão esquerda, e um anel de belíssimo e ofuscante brilho na palma da mão direita, fechada com uma estranha insistência.


*                                          *                                              *


Eu devia ter os meus doze anos de idade, quando o destino resolveu derramar sua mais estranha dádiva sobre mim.

Foi quando conheci Berenice.

Na escola, ela brilhava mais do que aquela luz que os esquimós atribuem às tochas que os espíritos dos mortos carregam ao atravessar o céu, e que os cientistas chamam de aurora boreal.

Tinha graciosos cabelos louros e encaracolados, olhos azuis de água-marinha, pele branca como brotos de dália.

Nós passamos a dividir nossos livros e cadernos, nosso lanche na hora do recreio, nossos segredinhos de ansiedade pelo futuro.

Às vezes, quando brigávamos, ela me via com aquela cara de cão amuado, a dizer-lhe em voz murmurada: “Bice...”.

Então me perdoava. Deixava eu apertar suas bochechas, que se tornavam rubras, e sorria de um jeito tão lindo que me lembrava das ninfas voando sobre os bosques da Arcádia.

Eu não conhecia ainda os riscos desse sentimento tão grandioso.

Não sabia perscrutar o caminho em busca de pedregulhos, mas, mesmo assim, deitei-me ao chão esperando pela chuva ou pelo sol, naquela passividade afetiva que só a inocência e o encantamento das crianças podem ter.

Guardo as lembranças como diamantes num cofre-forte: memórias do verde da grama, do parquinho, do balanço, das aulas de música que meu pai me prometia e nunca deu, o Nero – cachorro vira-lata que resolvi criar, e o aniversário de minha princesinha, quando apaguei as velinhas pela última vez.


*                                          *                                              *


Um dia, ou melhor, uma noite, o bairro pôs-se num murmurejar lacrimejante, que logo despertou meu interesse.

Estava com meu pijaminha branco, abri a janela.

Um assustador cortejo fúnebre levava o corpo de Berenice.


*                                          *                                              *


Três meses depois, já com um ar de maturidade e personalidade noctívaga, pude voltar à escola.

Não mais desmaiava ou batia minha própria cabeça contra a parede, aceitava a comida e os contatos sociais básicos, mas me recusava a sorrir, nunca mais voltaria a sorrir em minha vida.

Passei a frequentar a biblioteca com mais constância. O ambiente valioso porém abandonado, repleto de prateleiras empoeiradas com os mais belos clássicos, parecia-se com uma metáfora de minha própria existência – esse arcabouço infinito de epifanias e de megalomanias, deixado para trás por todos e por mim mesmo, ilha de versos e de notas tristes em que eu mesmo me exilei.

A leitura transformava-se em poder de oratória, em expressão do incontido sempre mudo, arma mais poderosa de meu espírito rancoroso e inconformado.

Comecei a ir muito bem na escola. Futuro brilhante? Não para gente pobre no Brasil.

Com meus 14 anos, peguei o diploma do Ginásio e fui procurar emprego.

Tornei-me office boy em diversas empresas do Velho Centro.

Cortava o cabelo numa espelunca da Avenida São João, e, uma vez, andando à toa pela Rua Aurora, como gostava de fazer, conheci a imprevisível Carmen, espanhola de idade nunca revelada, que aceitava só os clientes que escolhia.

Minha cara de menino triste levou-a a me escolher, como ela mesma diria depois.

Estive enredado em seus braços de cobre e em suas palavras perigosas, sempre ditas em voz muito alta, por poucas vezes. Depois nunca mais a vi. Dizem alguns que voltara à Catalunha, outros que agora vagava pelas ruas, arruinada pela sífilis. Eu prefiro pensar que ela voltou para o lugar de onde eu pensava que viera, um templo de Eros e Afrodite numa colônia grega que não existia mais.

Em uma das últimas tardes em que voltava mais tarde do trabalho, com a indispensável parada no quarto miserável de Carmen, encontrei um grupo de pessoas que olhava ao chão com feições de repulsa e compadecimento. Era meu fiel e amigo cão. Nero estava estirado numa poça de sangue. Gania desesperadamente.

Tivemos de chamar o veterinário às pressas. Ele foi sacrificado com uma injeção letal.

Enterramo-lo no quintal. Joguei flores amareladas sobre sua cova, flores mortas como meu coração.

Durante toda a madrugada, minha mãe tentou baixar minha febre, que começou a me conduzir pela trilha dos delírios.

Naqueles dias, passei a ver Berenice pelos cantos da casa, e Nero me aparecia como o Cérbero dos infernos, sempre me impedindo de tocar minha amada que se escondia por detrás de véus brancos tecidos no Hades.

Dormia na chuva, desejava a morte bradando às alturas, mas como medo de que Deus me ouvisse e castigasse.

Por uma única madrugada, pude ter um sonho: vi a bela Suíça de que meu pai falava em minha infância, com paisagens, odores, comidas, vestimentas, histórias, montanhas e pastos, tudo.

Chamou-me a atenção a presença de um filhote de cervo, com pintas e cauda branca, entre a pelagem acastanhada e luzidia. E enquanto este bebia água dum riacho, nada mais eu percebia que a imortalidade de sua fragilidade e de sua pureza.





*                                          *                                              *


Algum tempo se passou. Ainda não conseguira emprego fixo em um escritório.

À noitinha, imagens perversas e esparsas das curvas de Carmen voltavam e me incomodar.

Quando tinha por volta dos dezoito anos, sob certa pressão dos pais, prestei um concurso na Light, na busca de um futuro mais estável. Eu consegui.

Não é muito ruim ser funcionário público no Brasil. Especialmente porque a palavra estabilidade não significa muito para a iniciativa privada. Com uma desculpa esfarrapada de empreendedorismo, o neoliberalismo tenta abandonar todos à própria sorte e fazê-los se sentirem culpados por isso.

Fortuna favet fortibus, disse Virgílio há mais de dois mil anos. Talvez por isso eu nunca tenha tido sorte na vida. Ou talvez a sorte seja isso mesmo que ela significa, pura sorte, acaso, dama oculta e caprichosa que escolhe seus favoritos a esmo, e que também lhes retira tudo quando cisma em girar a roda. Assim é o mundo.

Com meu novo emprego, minha única e preponderante obsessão era uma viagem à Suíça.

Foi o que amarguei por todo o tempo, até o colapso nervoso de meu pai. Soube que ele guardava livros marxistas para ajudar os estudantes da UNE. Era a época do AI-5.

Começou a receber ameaças, ficar nervoso, quase a andar pelas paredes.

Teve um acidente vascular cerebral. Padeceu toda a família junto dele, foram-se minhas pequenas economias com tratamentos ineficazes.

Sua renitente vida foi tirada por um ataque cardíaco. Estava eu a amargar, vestido de preto outra vez.

Mais do que nunca, a viagem à Suíça se tornara um ponto de honra imprescindível. O sonho de meu pai agora só poderia ser realizado por mim. Essa viagem era a única coisa que poderia desatar os nós da minha existência, ou fazer-me encontrar o único fio da meada, ou pelo menos era isso que eu esperava.


*                                          *                                              *


Aprendi a lidar com toda a burocracia que se me apresentava.

Dinheiro? Investido na minha quitinete, no meu fusquinha, depois trocado por um chevette.

Minha vida passou como um encanto ruim, com a viagem sempre adiada e a monotonia sempre presente.

Em cada trem lotado, em cada hora perdida num engarrafamento, em cada dia em casa passado diante dos programas estúpidos de televisão, morria o ser vivente e sonhador dentro de mim.

Nada de incrivelmente biográfico. Aliás, os escritores só têm biografias fascinantes porque adquiriram a capacidade de recriar sua própria história. De resto, dá tudo na mesma.


*                                          *                                              *


Eu já era um cinquentão quando conheci Beatriz.

Ela foi trabalhar na mesma repartição que eu. Felizmente, os computadores, a crise asiática e as privatizações não roubaram nossos cargos de supervisores.

Ela sempre foi atenciosa comigo. Trazia-me compotas de doces, que ela, como nativa do Sul de Minas que era, aprendera a fazer com mãos de fada desde a infância.

Era viúva, tinha uma filha problemática que nunca parava em casa e dois netos muito educados e vivazes, que ela trazia em casa para assistirmos desenhos animados e fazer artesanato ou preparar algum bolo.

Os olhos azuis de Beatriz eram uma promessa de céu, e de Berenice.

Nossa amizade foi muito pura, embora eu não soubesse se era exatamente assim que eu a queria. Ela foi meu último consolo.

Bia lembrava Bice.

Quando íamos ao litoral, perto de Mongaguá, eu a via sentada sobre as pedras, na divisa com a Praia Grande, observando as ondas, sob o sol alaranjado do poente.

Então chamei-a “deusa do arco-íris e do mar”.


*                                          *                                              *


Como em poucas vezes da minha vida, senti-me feliz de verdade.

Comecei a sentir que tinha alma de artista, observava as pessoas em seus mínimos detalhes, amava e odiava com furor e com frequência.

 Num único domingo, assisti a um concerto no prédio da FIESP, duo de piano e violoncelo apresentando sonatas de Beethoven e Shostakovich e o Grand Tango de Astor Piazolla, e os músicos poetas manghaniyars e langas do Rajastão indiano, no SESC Pompéia.

Incrível como o Governo do Estado anda promovendo a cultura e sucateando o ensino público. Fico me perguntando se isso não serve para manter uma realidade elitista e anestesiada.

Mas o que importa é que eu andava procurando o caráter tríplice da vida: o masculino, o feminino e o hermafrodita dos deuses africanos; os três tipos de escrita dos japoneses; minha mãe, Berenice e Beatriz – as três mulheres que dominavam minha vida...


*                                          *                                              *


Foi em abril que começaram as dores no peito.

Passei a trancafiar-me cada vez mais.

Ouvia o Rio Moldava de Dvórak, que corria melancolicamente como os prelúdios, noturnos e berceuses de Chopin, como as águas barrentas e turbulentas do Tietê, do Tamisa, do Tamagawa, do Sena, do Reno...

Tudo corre e tudo flui.

Flui minha juventude e todo o tempo. Não mais um garoto que vivia de imagens de filmes de Sean Conery, de Charlton Heston, de trilhas sonoras de Enio Morricone e Henry Mancini. Não mais um Canio a vestir uma máscara de palhaço sem sua Colombina, diante de um público pagante que não conhece o que se passa na coxia.

Como dizia T.S. Eliot: “O tempo se conquista unicamente pelo tempo”.
Mas o que eu conquistei?

Talvez precisasse ligar para a Beatriz, talvez precisasse de promoção no emprego, de extinção dos conjuntos de pagode, de ressurreição do Partido Comunista, talvez.

Não é assim que a maioria dos seres humanos vive? Por uma causa, por um brinquedinho novo? E quando se acabam as causas e os brinquedos, foi tudo um espetáculo a se debater em vão?!

Uma senhora no apartamento ao lado colocou para rodar uma velha vitrola, e cortou meu pensamento.

A voz de Beniamino Gigli inundou a sala:

Nessun dorma! Nessun dorma! Tu pure, o Principessa,
nella tua fredda stanza
guardi le stelle
che tremano d'amore e di speranza...
Ma il mio mistero è chiuso in me,
il nome mio nessun saprà!
No, no, sulla tua bocca lo dirò,
quando la luce splenderà!
Ed il mio bacio scioglierà il silenzio
che ti fa mia.

Só acabei acordando no hospital. Beatriz dava socos no meu braço: “Reaja, desgraçado, reaja!”.

Minha mãe chorava a um canto da parede.

Il nome suo nessun saprà...
E noi dovrem, ahimè, morir, morir!

Então dormi de novo. Um sono muito mais profundo do que jamais sonhara antes.

Dilegua, o notte! Tramontate, stelle!
Tramontate, stelle! All'alba vincerò!
Vincerò! Vincerò!


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Naquele dia, Petrônio deixava suas amarras presas nas linhas do tempo.

O passado, o presente e o futuro transformaram-se em pó diante de seus olhos, num imenso palpitar de Allegros e Prestissimos que pouco a pouco transmutavam-se em majestoso Adagio sostenuto, imutável.

Visões de campos de papoulas e tulipas. Grandes tufões de luz, castiçais de fogos-fátuos.

Pardais gorjeavam, soava o terceiro movimento do Inverno de Vivaldi. O Grande Arquiteto recriava a realidade. Ou seria esta a realidade suprema por detrás da ilusão?

De repente, a velocidade do flutuar no quase-vazio de tempo-espaço diminuía bruscamente.

Uma planície garrida de flores surgia à sua frente, com um perceptível aroma de lavandas.

A música que Petrônio ouvia agora era a Suíte número 1 para violoncelo, de Johann Sebastian Bach, executada por um menino vestido em tons pastéis, a combinar com suas faces rubras.

Um homem de rosto estranhamente luzidio, trajado de azul e dourado, ofereceu-se para conduzir Petrônio e lhe indicou um portal tecido em estranho fogo, que parecia não queimar e não se consumir.

O portal foi atravessado, como na viagem de Dante, não sem temor, e Petrônio chorou, pela primeira vez em anos ele chorou.




Então, o homem sem nome e sem mácula iniciou a lhe mostrar todas as estâncias de sua vida.

Por fim, as imagens exibidas no lago cristalino mostravam o corpo inerte, um cadáver de touro ou bisonte negro, que se afundava num lago de putrefação da antiga Babilônia.

Uma chuva de folhas de outono varreu tudo da paisagem.

Foi então que ouviu uma vez terrivelmente familiar, a qual aumentava cada vez mais e mais. Virou-se. Seu pai Gioachino Antonio corria em sua direção.


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Petrônio fora levado a uma vasta campina, que, de tão banhada pelo Sol, assemelhava-se a um trigal. Seu pai parecia ansioso e lhe preparava uma surpresa.

“Petrônio, filho meu, quando você atravessar o trigal, sem temer os corvos, e descer a colina que existe ao final, onde crescem os girassóis, você encontrará o que busca”.

E ele foi.

Quando se afastava, seu pai se voltou para o homem desconhecido e indagou: “Já é chegada a hora?”.

O homem assentiu com a cabeça, e Gioachino, abrindo suas mãos indefinidas, quase sem matéria, susteve sobre as palmas um anel de grande porte, pesado, antigo, radiante, misterioso, e com uma fisionomia de alívio atirou-o ao ar. Na sua queda, a jóia foi tragada pelo chão que se transformara nas revoltas águas do Reno.


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No fim da colina, na dobra das eras, as densas paisagens da Suíça desvelaram-se diante dos olhos de Petrônio, enquanto um cervo bebia água de um riacho.

Ali, coroada de narcisos, recostada em um rochedo à beira do lago de Wallenstadt, Berenice lhe sorria como Brunhild sorrira a Siegfried. 


   

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