quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O Lied de Adolf

Um velho decrépito se arrasta pelos amplos salões de um abrigo subterrâneo, portando uma arma de fogo e uma ampola de cianeto de potássio.

Sua esposa Eva já encerrara com a própria vida, agora jazia ensanguentada sobre um divã.

Ele sabe o que deve fazer, e, como todo ser humano possui a estranha mania de recapitular o passado nos seus derradeiros momentos, assim também lhe sucedeu.

Lembrou-se então das tenras planícies pastoris de Braun-no-In, de quando era o menino Adolf Shickelgrüber, filho de uma dona-de-casa submissa e de um severo funcionário de alfândega, alcoólatra e trinta anos mais velho que a esposa.

Crescera com espírito livre e solitário, vagando pelos pomares do sul da Áustria, brincando com tanques de guerra de brinquedo e lendo sobre as táticas de batalha.

Napoleão, César, Alexandre, Carlos Magno habitavam seus sonhos como as meninas habitam as fantasias dos adolescentes.

Em pouco tempo, descobrira que esta distância da realidade o transformara num garoto incapaz de relacionamentos significativos. Na escola, fora tido como inadaptável, insociável, alienado.

Assim era e assim se sentia quando espiava de longe a bela Geli, quando esta retirava água de um riacho, ou quando se inflamava para responder às perguntas do professor de História e nada conseguia dizer.

A tirania paterna foi outro longo drama, mas que se encerrou quando da morte do encarquilhado Alois.

Sua vida continuou difícil e atribulada; assumiu o sobrenome de um dos amantes de sua mãe, agora seu pai adotivo: passara a se chamar, aos 16 anos, Adolf Hitler.

Pouco tempo depois, morria-lhe a mãe, a única pessoa a quem confessou amar de verdade.

Os outros irmãos o rejeitaram. Na realidade, só se aproximaram muito mais tarde, quando sua influência no Partido era absoluta e quando era possível tirar vantagem disso.

Resolvera então se aventurar. Viajou a Viena, negligenciou os estudos, fez pequenos “bicos”, instalou-se em inúmeras espeluncas, onde passava a madrugada devorando livros doutrinários e panfletários sobre a culpabilidade dos judeus-marxistas na desordem do país e sobre a necessidade da derradeira unificação entre Áustria e Alemanha, bem como da anexação de todos os territórios onde houvesse um considerável contingente da raça ariana, destinada a dominar o mundo.

Em nome da soberania germânica, amava as óperas de Wagner e as epopéias nórdicas, mas foi desenhista e projetista frustrado. Era homem sem amigos, sem mulheres, sem reconhecimento para seus talentos.

O ódio se apoderava de sua alma como a paixão autodestrutiva se apoderara de seu herói Sigfried. A timidez o castrara e assassinara, e, desde então, construíra sua carapaça de pedra muito sólida, de ufanismo xenófobo e vingativo fanatismo pessoal.

Assim foi no silêncio perante a dor, quando baleado nos testículos na Primeira Grande Guerra. Assim foi perante o medo, na prisão onde escreveu o seu Mein Kampf depois do Golpe de Estado fracassado. E assim foi perante o júbilo, nos discursos do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães – o futuro partido Nazista – e também na chancelaria do governo Hindenburg, na posse como supremo ditador, nas aparições públicas nas Olimpíadas de Berlim, na decisiva invasão da Polônia.

Suas ideias megalomaníacas afundaram a humanidade numa Segunda Guerra Mundial, porém, agora, depois do Dia D, era a vez e hora dos aliados.

Britânicos, franceses e ianques de um lado; soviéticos sedentos de sangue de outro, era o cerco à capital.

O marechal Rommel saíra humilhado do norte africano e Goebbels não conseguia mais incutir patriotismo pela propaganda totalitarista.

O führer, prova viva de que uma patologia psicológica justificada pela histeria coletiva poderia assumir a Coroa de um Estado, agora tremeria se precisasse falar em público. Temia ser pego e virar um troféu nas mãos dos desertores, ser espancado, esfolado vivo, urinado, como fora Mussolini com a amante Clara Petacci.

Ainda com a costumeira taquicardia, suicida-se na fria manhã de 30 de abril de 1945. Adeus aos malditos croquis e poemas de um passado artístico frustrado, adeus ao maldito fumo das reuniões diplomáticas, adeus ao maldito fantoche de Eva Braun!

Os soldados mais fieis cremam seu corpo inerte, e as ruínas do Bunker, o perpétuo esconderijo, cuidam de lhe servir de jazigo, como se quisessem esconder aquele que não fora capaz de demonstrar amor à mamãe Klara e à apaixonante Geli, mas que demonstrara com ódio supremo a natureza de sua alma a seis milhões de judeus exterminados nos campos de concentração, a cinquenta milhões de soldados e civis mortos, a vinte e cinco milhões de mutilados, e para um mundo arrasado pela bombas e pela depressão econômica.

Ali jazia o cadáver daquele que resolveu deixar de ser humano, como os monstros que resolveram guardar o amaldiçoado ouro do Reno... 




Nenhum comentário:

Postar um comentário