segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Abertura Solene de 1870

                                            Diário de Guerra do Tenente João Marcos


Agora que tudo passou e só vive em memórias, posso retratar o estranho acontecimento, que tantas marcas deixou em minha alma.

Não falo como médico ou combatente, mas como alma perdida deste mundo.

Somos matéria desconhecida. Cumprimos rumos extravagantes no milagre que se chama vida, infinita jornada.

Onde estaria o limite entre a realidade e a loucura?

É o que me intriga, desde que conheci aquele ser, tão extraordinário quanto peculiar.

Foi ainda durante a guerra. Abatíamos duramente as forças de Solano López. Ainda não sabia que eu servia a interesses britânicos, apenas zelava por minha pátria e pela lenta recuperação de meus soldados.

Certo dia, enquanto preparávamos tudo para o acampamento, num final de tarde, percebi a bandeira de aviso sendo acenada.

Aproximei-me receoso, imaginando encontrar ali algum prisioneiro inimigo ou algum aliado gravemente ferido.

Ainda não sei ao certo o que encontrei.

Meu espanto não foi menor que minha repulsa e minha ojeriza. Nunca vira antes coisa tão disforme a se delinear em minhas retinas.

Era uma trincheira abandonada, cheia de pegadas nas poças de lama.

Havia escombros, muito lixo, muitos insetos e muitos ratos.

Em meio a tudo, a criatura.

Olhei-o dos pés à cabeça.

Era preto de sujeiras e queimaduras. Tinha um olho costurado; parecia até mesmo assumir um aspecto pastoso e fantasmagórico.

Os outros homens apontavam suas armas, prontos para atirar naquilo, o que quer que fosse.

Coberto de lixo, coberto de pústulas cancerosas, cheirando mal como a própria podridão.

– Precisamos tirá-lo daqui. – eu insistia.

Mas ninguém tinha coragem de tocar nele.

Foi quando estrondou a voz, grave, mas bondosa e assertiva:
– Eu fico aqui.
– Matem essa coisa! – bradavam os mais exaltados.
– O que temem? Posso ajudar. Posso limpar esse lixo para vocês. É minha função.

Agora todos estavam boquiabertos. As aparências enganam? Aquele homem não fazia de tudo para que o maltratássemos?

– Quem é você? – perguntara-lhe meu colega José do Bagre.
– Não sou ninguém. – respondeu a coisa.

E assim ficaria conhecida por nós: o Senhor “Ninguém”.


*                                          *                                              *


Chegou a primeira noite. Eu o observava da barraca.

Continuava trabalhando. Às vezes desfalecia de cansaço; apoiava-se sobre as pernas raquíticas, vomitava sangue sobre os detritos.

A cena daquela miserável forma de vida mantendo-se de pé a muito custo e recolhendo lixo num gesto quase obsessivo era deprimente.

Por que não se banhava num regato próximo? Teria medo de dissolver-se? Comecei a suspeitar inclusive que não tivesse um corpo propriamente dito. Os restos de terra e o estrume de vaca é que lhe davam substância.

Resolvi dormir em paz naquela noite e esquecer de tudo. Meu encéfalo se apagou da fadiga como se apaga um lampião de querosene.

A escuridão era ampla e tinha braços. Parecia poder atingir-me com seus tentáculos de pavor e insegurança. Os uivos lupinos serviram de pretexto para minha insônia.

Só pelas três da madrugada é que consegui dormir um pouco.

Um sono recortado de pesadelos. O pesadelo enjaulou-me, sangrou-me os punhos e os tornozelos, roubou-me lágrimas.

Um grito foi ouvido no Abismo: “Tirem-me daqui! Foi a Guerra Franco-Prussiana que me colocou aqui! Preso, entre dois lugares ao mesmo tempo!”

Acordei com minha própria hemoptise. Era manhã, a luz solar entrava por pequenas frestas, formava um grande crucifixo no teto. Meu leito bem que poderia ser meu Hades, rodeado de vampiros, bruxas e cadáveres de batalhas.

Senti um rumor de vermes por perto.

Olhei diante de mim. O Senhor “Ninguém” me observava, estático.

Agora meu grito fora bem maior.

Os soldados entraram na barraca. Agrediram duramente “Ninguém” com pedaços de pau e estiletadas.

Ele grunhiu e correu de volta ao trabalho.


*                                          *                                              *


Chorava baixinho quando me aproximei, se bem que não me chegasse mais do que três metros.

Limpava o esterco com uma pá.

Cheguei a pensar que pretendia atirar tudo aquilo em mim, mas não.

– Seu João!

Chamou-me várias vezes durante aquele dia.

– Que é que há, Seu “Ninguém”?
– Nada, não, sinhô. Eu só queria ver Seu João. Eu vos perdôo, viu? Sinhô no fundo é bom. Pretende voltar pra Petrópolis?
– Como sabe? Que é você, afinal?

Aquele homem começava a me incomodar profundamente.

– “Ninguém” sabe que Nhô João trata bem os escravos, reza toda noite e ajuda o orfanato, si bem qu’isso não vai adiantar muito quando chegar a hora de prestar as contas. Sabe também que o sinhô ama a paraguaia. “Ninguém” lê seu coração!
– Eu a abandonei!
– Por ter medo de perdê-la na guerra! Mas ama sim!

Sentia-me já enjoado e atônito. O que era aquela criatura? A par de toda a sua imundície misantropa, sua alma era pura, convincente e sincera. O olhar triste e distante, mas incrivelmente são.
Subia as colinas apoiado em seu cajado.

– Vocês não podem decapitar assim esses velhos e crianças, vocês me ouviram? E esse Conde D’Eu que não faz nada pra impedir? O Caxias era um homem melhor!

Os soldados riam:

– E quem se importa? O que mais pode nos acontecer? Tudo já aconteceu!
– Dostoiévski explica. Já leram Dostoiévski? E Tolstói? Um dia, esses pobres inocentes, essas mulheres violentadas, essas aves do pântano, tudo se voltará contra vós, os grandes cairão, o sertão vai virar mar!

As gargalhadas se acentuavam.

Mas afinal, de que falava aquele homem? Seria mais um Antonio Conselheiro vagando pelo mundo? Ou será que o Conselheiro nunca morrera? Ou será que ressurgira?

O céu exibia a fuga do Sol no horizonte.

Tons confusos de Vincent van Gogh pelas atmosferas.

Paisagens sombrias de um noturno de Chopin tomavam conta de meus olhos e eu me recordava de minha velha e calada mãe, dedilhando com melancolia as partituras do mestre polonês.

Entregava-me à minha preguiça poética, quase Gonçalves Dias, quase Rimbaud, quase Baudelaire.

Tudo era mágico e heróico, sem nenhum feito.

A calmaria das bombas livrava da penumbra o meu exército: negros, cafuzos, mamelucos, estancieiros gaúchos, mato-grossenses, tropeiros de São Paulo, Minas e Goiás.

Sinto vontade de voltar para o Rio de Janeiro, temo o Senhor “Ninguém”.

Resolvo visitá-lo no acampamento, ou, melhor dizendo, na trincheira.

Agora ele tinha um semblante contrariado.

– Pronto para voltar a seu ócio e inutilidade, Tenente João?
– Mas que petulância é essa?!
– Teus amigos, tua sociedade. Tudo máfia italiana amiga de Garibaldi! Pensam-se melhores? Melhores que os trabalhadores que vivem em meio ao lixo?
– Mas, senhor, eu não compreendo...
– Quieto! Sou eu quem falo agora! – e quando ele começava as advertências era quase impossível resistir a ele, tamanha a autoridade e o brilho nos olhos com que falava. – Minha missão se cumpre. Você abriu caminho pra mim. Verá seu mundo ser transformado. Quando os pilares desabam, todo o templo vem para baixo. Pena que o próximo templo é tão iníquo quanto o de vossas orações. Corra irmão, antes que não possas mais correr!

Aquela criatura parecia amar-me gratuitamente.

Tentei abraçá-lo, sem conseguir, devido às sujidades.

Ofereci-lhe uma vida mais digna, banho, comida, engajamento às Forças Armadas. Retrucou-me que a nossa vida é que era indigna.

Propus-lhe uma conversa franca, de homem para homem, que me esclarecesse sobre seu passado e sua verdadeira missão.

Ele parecia animado.

– Amanhã – respondeu-me.


*                                          *                                              *


Dirigia-me, bem cedinho, à trincheira, procurando pelo grande e misterioso mestre.

– Senhor! Senhor! O homem desapareceu!

Fui verificar. O prato com feijão e carne de porco estava intocado. Nenhuma pegada. Nenhum vestígio. Sumira tão misteriosamente como aparecera.

– Despediu-se de mim antes de tomar chá de sumiço. – dizia Zé do Bagre. – Falou que veio de Belém do Pará, um maluco que vem se martirizando a vida inteira. Disse que é pelos pobres e oprimidos.
– Deus meu!
– Não se aperreie não, Seu Tenente! É cabra safado, herege e mentiroso! Contou umas histórias estranhas de destino, missão no mundo, nascer de novo, entrar no rio que tem espumas flutuantes... Doidim, doidim!

A ida de “Ninguém” perturbou-me, como antes sua presença me perturbava.

E, ao menos na minha cabeça, foi a sua partida que desencadeou o que vi na noite posterior, como se sua companhia benfazeja fosse a responsável por manter a maldade do mundo em níveis aceitáveis e controlados.

Foi após o grande êxito obtido na batalha de Peribebuí, agora estávamos em Nhu-Guaçu, ou em Campo Grande, como se diz em língua civilizada.

O exército inimigo era formado em sua maioria por crianças, adolescentes, velhos que mal sabiam marchar. O ditador paraguaio os recrutara à força como uma tentativa desesperada de manter-se vivo por mais tempo.

Eles chegavam bufando como animais, com olhos revoltos, como se estivessem indo ao matadouro, e mal tinham forças para empunhar as baionetas e espadas.

Alguns já deviam ter sido infectados pelo cólera, tantos o foram, inclusive nas nossas trincheiras.

Nossos homens receberam ordens de partir para cima deles, sem misericórdia. A resistência incansável do exército inimigo acirrava a ira de nosso lado, ira que causaria os fatos mais detestáveis da história brasileira.

Naquela noite, ouvi uma marcha triunfal e diabólica, saída dos metais do inferno, com o ritmo marcado pela salva cadenciada dos canhões que mutilavam e explodiam e pelos cascos dos cavalos que retumbavam seu caminho sem volta. Até os músicos que acompanhavam as tropas para animá-las ao combate usavam seus instrumentos para golpear o inimigo na cabeça, enquanto este tentava furar-lhes o ventre com seus facões de lavrador.

O campo aberto se cobria de sangue e o cheiro de pólvora e carne queimada subia aos céus como um holocausto ímpio, oferenda de trevas que fazia a maioria de nós vomitar e virar o rosto para não ver mais.

Mas era impossível não ver. Os ataques vinham de todos os cantos e a insanidade se apoderou dos homens de nosso lado e dos meninos e criaturas senis do outro lado.

Havia urubus voando em círculos pelos ares, como harpias tornando podre tudo o que tocavam – nunca vi tantos urubus! – aguardando o banquete de carniça humana que lhes era preparado.

Fomos vencedores, se podemos chamar aquilo de vitória.

Muitos de nosso lado tombaram, mas nada se compara ao genocídio causado do lado deles.

Atendi tantos moribundos naquela madrugada que não tenho a conta de quantos vi morrer.

Dormi por dois dias ininterruptos depois daquilo, o sono incompleto e atormentado dos injustos.




Semanas depois, chegou-nos o decreto de Vossa Majestade Pedro II: era finda a Guerra do Paraguai.

As tropas do General Correia da Câmara chegaram ao último acampamento paraguaio, em Cerro Corá, e Solano López foi ferido a lança pelo implacável cabo Chico Diabo, e depois crivado de balas.

Os brasileiros ficaram satanicamente eufóricos depois disto. Mataram civis, incendiaram barracas e choupanas, trucidaram feridos e doentes nos ranchos.

Vossa Majestade declarava lamentar os eventos e afirmava que preferiria López preso a morto.

Mas o imperador recuperou sua popularidade. Nas notícias levadas a prelo na Capital, dizia-se que “a justiça divina fora feita”.

A justiça referida pelos meios oficiais consistia na morte de mais de trezentas e cinquenta mil pessoas, no quebrar os joelhos de um país que nunca mais se reergueria e no manter a América do Sul longe de fazer nascer qualquer potência com influência maior que a regional.

Retornei a Petrópolis. Observava a residência da Família Real, lembrava-me minha doce infância, quando passava a noite acordado, esperando o Sol nascer. Então dançava nu pela grama, pisando a terra fofa. Na varanda, minha irmã já aprendia a coser com nossa ama-de-leite.

Tudo passou, tudo varrido. Pensava agora no que significava ser um homem e um cidadão.

Todas as profecias do homem se cumpriram: vi o fim da escravidão e da Monarquia. A proclamação da República e o governo dos marechais. Numa emboscada por questões de terra, o tiro que inutilizou minhas pernas: “Não mais possa correr!”.

Ainda vejo aquela criatura, numa secreta caverna, como imortal deus guarani, em sua missão de profeta de palavras desconhecidas.

Espero sinceramente não o ter desapontado, pois tudo quanto desejo e tudo quanto levo em mente é tornar-me tão nobre quanto o Nobre Senhor “Ninguém”.





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