quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Os Sinos de Saratov

A igreja de Saratov era triste. Como todo o povoado às margens do Volga, pairava sobre ela uma mancha de passado, uma marca opressiva que preferiu se calar depois da Revolução.

No topo da tímida construção, as torres escorriam como num castelo de areia, exibindo maciços sinos de bronze que aprenderam a resistir ao tempo. Rachaduras sobrepunham-se a um branco pálido, desgastado; branco ruidoso das paredes que circundavam portas resmungantes.

O átrio, ladeado por colunas de estilo coríntio, resguardava um frondoso jardim, das mais diversas espécies vegetais. Este era o verdadeiro tesouro das senhoras de Saratov: a vida e o verde, que brotavam do mesmo solo um dia pisado pelos doentes mentais do Asilo Público.

Lá fora, no mundo menos tranquilo, mas ainda pacato, onde se assentava o parque, cães que se espreguiçavam e dançantes melodias das balalaicas disputavam o direito de transmitir sons.

Dentro desta atmosfera vaga e imprecisa, embebida no vinho do ócio, os sinos falavam por si só, e tinham sua própria história. Presentes do czar, metal do Oriente, timbre específico.

Havia os dois maiores, imponentes, de som grave e pesado como um velho monarca. Havia os intermediários, feitos de um bronze mais lapidado, de som mais desenvolto como damas num passeio. Havia os pequenos, sem muita espessura, de expressão aguda e penetrante, como lindas donzelas. E havia os ainda menores, feitos de cerâmica, delicados e puros como infantes aprendizes.

Todavia, o que os singularizava de fato, por assim dizer, era o sineiro. Ao mesmo tempo regente e executante da orquestra, era um marujo solitário de cidades aéreas, suspenso sobre cordas e músicas de improviso.

Yuri Yuritchim Yurianov era assim chamado desde os tempos do orfanato, pois nenhum registro havia sobre seu verdadeiro nome ou sobrenome. Apareceu de repente, deitado sobre o chão frio, envolvido por uma echarpe de pelo de marta, na porta do Orfanato da Igreja Ortodoxa. E foi lá que cresceu.

Acostumado a comer a famosa e rançosa sopa de batatas – no desjejum, no almoço e no jantar – Yuri apenas aceitava seu destino, pois nenhuma força ou talento, até então, parecia revelar-se para ele. Vivendo sob a alcunha de “retardado”, era sempre ele que varria os amplos salões, limpava as latrinas, observando todos os outros aprenderem a escrever.

O menino preferia não se dirigir aos seus colegas. Vivia absorto em seus pensamentos, sorrindo aos céus como se pudesse desafiar com uma felicidade criada a miséria da sua existência.

Nas aulas, nada mais sabia colocar no papel do que desenhos – rabiscos confusos como seus pensamentos.

Hoje, Yuri tem seu próprio mundo, um lugar que ninguém pode aceitar ou compreender, a não ser a lagartixa que carrega em seu bolso.

O sineiro já aparenta idade, possui cabelos ralos e brancos, parcos dentes na boca que ainda se mantêm intactos e profundos leitos de rio lacrimoso nas faces.

Mas quando lhe perguntam sobre seu passado, palpita uma voz concisa e experiente: “A Segunda Grande Guerra ou a Repressão de Stalin levou os meus pais”.

Verdade ou não o que lhe contaram, isto não importa. Pelo menos garante uma imagem mais heróica do que um mero abandono de bebê por uma mãe perturbada ou despreparada.

Então reina o silêncio, e a conversa termina.

Poucos sabem que foi o contra-revolucionário religioso Alexander o salvador de Yuri. Extravagante e populista? Poderia até ser. Mas o jovem sacerdote envergava ao peito um verdadeiro coração cristão, condizente com o enorme crucifixo que jazia sobre ele, embora muitos usassem o símbolo como os fariseus usavam suas orações.

Padre Alexander agia mais como o publicano, reconhecia-se pequeno e imperfeito, por isso podia aceitar outros seres humanos, tão pequenos e imperfeitos como ele. E em sua pequeneza e em suas crises de melancolia, era maior e mais amado pelo povo do que toda a tirania política dos homens sem Deus.

Yuri dele recebia conselhos sobre o poder do perdão, sobre resistir às tentações, sobre a vinda do Reino dos Céus. Então olhava para a cúpula e as paredes da igreja e os ícones lhe pareciam ganhar vida, como parte de uma história da qual ele mesmo faria parte um dia.

Na mente confusa do menino, Padre Alexander trabalhava como o assistente direto de Jesus, o Salvador, e lá estavam todos eles, pisando nuvens, assentados à roda de uma mesa grande, com muitos pães diferentes para se comer, servidos pela Virgem Maria, preparados por anjos, na companhia de São José, com suas mãos calejadas de carpinteiro e seu sorriso condescendente de sabedoria e resignação, de São Nicolau que lhe trazia os presentes de Natal, de São Serafim de Sarov que já em vida falava com os anjos e com os animais do bosque, de São Jorge que contava e recontava a história de como matou o dragão do pecado, e de São Pedro, sempre com a chave do Paraíso pendurada ao cinto, chave sempre pronta a abrir as portas do Céu a Yuri na hora dos sonhos da noite.



Os dois eram vistos sempre juntos, nas filas para comprar comida e nas aulas improvisadas na torre.

Um dia, a triste carta do bispo chegou ao sacerdote. Os sinos deveriam se silenciar, por ordem da Duma. Se o Estado não conseguira acabar com a fé em Deus – o que considerava uma superstição medieval que continuava a oprimir o povo – que ao menos fosse desencorajada e nunca mais anunciada.

Foi demais para o sonhador Alexander. Com toda a força de seus pulmões, ele bradou em sua mais alta voz, chegando a assustar Yuri: “Toque o sino!”

Eis o início de tudo. A tímida arte só reconhecida por aqueles que aprenderam a rezar em silêncio. Foi a primeira vez que Yuri assumiu seu ofício de sineiro, e a balbúrdia dos sinos foi tanta que o céu se enrubesceu e o padre foi embora com uns homens vestidos de cinza que lhe batiam, para nunca mais voltar.

O garotinho limpava o pequeno nariz nas mangas da camisa, subindo as escadas num ímpeto desatino e, a partir de então, o bronze não deixou de tinir a cada alvorada e a cada pôr-do-sol, mesmo sem haver mais missa alguma.

Desta vez, o Estado não interveio. “Era só o menino, o retardado”. "Quem atenderá à sua canção de lamento?" 

  Quando o Império implodiu e um novo clérigo chegou, Yuri foi dar-lhe as boas-vindas, apresentando-se como o melhor tocador de sinos de todas as terras que a linha do horizonte pode alcançar.

A Igreja Ortodoxa ressurgiu, a Máfia governou, as pessoas correram aos bancos. Tudo isso não interessava ao sempre presente Yuri, que aprendera uma simples mágica da Natureza, que só o Onipotente pode criar e manter, um feitiço que tem seus efeitos, mas não se explica, não se mede e não se conclui. Isso se chama “Vida”.

As rosas do átrio pareciam mais perfumadas e vistosas do que nunca. Um pombo alvo como a neve alçava vôo, migrando em direção aos picos coloridos da Vasilia Blazennogo, a muitos quilômetros dali.

Um besouro pousou sobre o parapeito da janela, mas o sineiro não quis tocá-lo. Ao vê-lo com as pequenas patas para cima, esperneando sem trégua, Yuri deixou correr uma lágrima. E sorriu.




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