segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Amantes Perdidos

                          Dedicado ao concretista Décio Pignatari

            Não quero mais saber de lirismo que não é libertação.”
MANUEL BANDEIRA 

            Falarei de meus singelos versos,
            De meu precoce amor pelos livros,
            Da fascinação pela grafia e pelos sonhos homéricos
            Que me acometeu como a paixão acomete aos vivos.

            E nos estudos literários dos outros,
            Nos livros – didáticos ou não – de literatura,
            Eu encontrei meus mais preciosos tesouros:
            Entre pó e cupins, eu li a mais arcaica ternura...

            Nos velhos livros de poemas,
            Na fábula, drama, novela, conto,
            Nos clássicos romances de parnasianos estratagemas,
            Eu teci boa parte de minha vida, ponto a ponto.

            Por isso, no tributo que devo
            Ao que me manteve vivo e me deu alegria,
            Assim eu vou, ou pretendo, sem medo,
            Contar a minha versão da história da poesia:

            Encontrei-a já na Índia da pré-história,
            Nos hinos escritos em sânscrito
            Pela classe dos poetas – divinal escória,
            Consagrando a Shiva os seus cânticos.

            Uma mulher, Madeviaca, cantava os versos,
            Mesclando o sagrado com instintos perversos,
            Unindo-se carnalmente aos deuses como uma prostituta desbocada.
            Estranhas preces a percorrer a madrugada!

            Mas notei que todos os poetas falavam de amor,
            E avançando, na Grécia Antiga dos dísticos,
            Conheci por tanto lirismo, erotismo e langor,
            Safo (a lésbica), além de Alceu e Íbico.

            E cantando a grandeza do Império Romano imortal,
            Às vezes até em sátira e pornografia:
            Catulo, Horácio, Virgílio, Propércio, Juvenal, Marcial,
            Grandes nomes da latina iconografia!

            Na China, mais fortemente na dinastia Tang,
            Os poemas foram pintados como quadros lúdicos
            Por Li Po, Tu Fu, Po Chu-I, num idílio platônico e exangue,
            Aos quais se somariam os aforismos de Confúcio.

            Semelhantemente fariam Issa e Bashô,
            No Japão medieval, entre cerejeiras dispersos,
            Com suas penas produzindo hai-kais,
            Singelos dizeres de apenas três versos.

            Sim, chegamos à Idade Média, temporariamente,
            De trovadores e cantigas, castelos e damas,
            Poemas cantados, acompanhados musicalmente:
            Vidal, Vogelweide, Dom Diniz, a Carmina Burana...

            Já no século XV, separa-se a música da poesia,
            Que passa a ser declamada,
            Com requintes de megalomania
            E não menos adorada.

            Com a efervescência do Renascimento,
            Falemos de Shakespeare, num dado momento,
            O príncipe dos dramaturgos, na língua inglesa inesquecível.
            Já leste seus sonetos reunidos? Indescritível...

            Mas dele passamos a Burns, ali perto,
            Um escocês, um poeta camponês,
            Orgulho nacionalista já desperto,
            Cantando o universal em dialeto local.

            E depois Goethe, Heine e Schiller, na Alemanha;
            Na França, Victor Hugo, também romancista,
            Na Itália, Leopardi, eterno enfermo que nunca ganha,
            E finalmente os três prediletos da minha lista:

            Na glamourosa Paris do passado,
            Rimbaud, ainda adolescente, em noites de inverno,
            Rebelde e tumultuado,
            Conduz-nos a uma temporada no inferno.

            Lá também, Baudelaire,
            Dito de mau gosto e obscuro,
            Tão compreensível quando ouço as ondas de Debussy em La Mer
            Deitado num quarto escuro.

            Na verdade, um revolucionário
            Que observava através da fachada da existência.
            Escondido num biombo etéreo e refratário,
            Era o albatroz que alçava vôo rumo à essência!
           
            E Apollinaire, o polonês,
            Amando u’a aristocrata quatrocentona, fora de cena,
            A qual se apavorou com sua eloqüência e embriaguez,
            E o abandonou à visão melancólica do Rio Sena.

            Engajado no exército francês como artilheiro,
            Sem nada a perder, com a morte as núpcias convola,
            No campo de artilharia corre ao encontro do ceifeiro,
            Escarrando seu próprio fim em gripe espanhola.

            Mas ainda viajei nas páginas dos livros por todo o mundo:
            Até o Paraíso Perdido do cego Milton, e seu requinte protestante,
            Até a saga interminável dos Nibelungos,
            Até a Comédia mais humana que Divina do inefável Dante...
           
            E conheci Lord Byron – o Don Juan real,
            E Molière – o reformador moral;
            Augusto dos Anjos – o morto excêntrico imortal;
            Mallarmé e Valéry – a vida literária da terra de Pascal.

            Sem conhecê-las,
            Amei Laura e Beatriz, Penélope e Medéia.
            Sem possuí-las,
            Raptei Ofélia e Lavínia, Helena e Dulcinéia.

            De passagem à Espanha, percorrendo de Santiago a via,
            Peregrino, paguei meu primeiro tributo à prosa,
            Abandonando um pouco a poesia,
            Ainda sem saber quão poética poderia ser a narrativa honrosa...
           
            Miguel de Cervantes, um épico.
            Seu Dom Quixote, talvez anti-ético,
            Sátira dos fortes cavaleiros
            E fim das novelas da cavalaria, romances passageiros...
           
            Ainda como peixe fora d’água, como literário embuste,
            Aventurei-me no romance do século XIX.
            E conheci o francês Marcel Proust,
            Cujo enredo tanto intriga o jovem.

            Críticas à falsidade, à anti-naturalidade,
            Temperadas com experiências, amores proibidos,
            Como Balzac, olhos cruéis sobre a sociedade,
            Na mesma coletânea, Em busca do tempo perdido.

            Em nossa amada língua, também os temos,
            Os grandes embaixadores do Parnaso,
            Valorizá-los, como nunca fizemos, devemos
E à nossa imaginação dar azo!
           
Já nossos antepassados, Os Lusíadas, intrépidos,
            Foram descritos pelo incomparável Camões.
A saga dos navegantes cheios de passado e méritos
Que se lançaram ao Bojador e às índicas monções...

            Lá também de onde nascemos, outro nome veio:
            Bocage, o conquistador incorrigível,
            De versos amorosos, tradicionais em seu meio,
            Mui diferentes das anedotas que se lhe atribui a canalha imperecível.

            E a lusa tríade se fecha com Fernando Pessoa:
            Existencialista, conservador, lírico,
            Ocultista, revelador, onírico,
            Por si ou por pseudônimos, quantos Fernandos, quantas Pessoas!

Seus versos inda ecoam como num frio lajeado:
            “Ó mar salgado,
            Quanto do teu sal,
            São lágrimas de Portugal!”

            Mas eles foram o que ficou para trás,
            E o Brasil lutou por atravessar o pórtico.
            Ainda que tímida, aqui a plêiade não foi fugaz:
            A última flor do Lácio foi bela como nunca nos trópicos!

            Desde os versos do Padre Anchieta, devotas homilias,
            Que olhou para os índios como almas perdidas,
            Ao olhar forte e heróico de Gonçalves Dias,
            Que cantou o estertor de civilizações esquecidas.

            Ou devemos falar de Gregório de Matos, a Boca do Inferno,
            Descendo a lenha na vida e no cotidiano,
            Nos líderes do verão tupiniquim e do luso inverno;
            Moralista, amoral, excomungado, fariseu, publicano...

            Só perante o fúnebre altar garboso,
            Depois de tanta esbórnia virou religioso.
            Preocupou-se com o lugar para onde iria;
            Depois da morte, com o que aconteceria.

            Escreveu nesse momento como um poeta-sacerdote
            O conflito espiritual tão presente em sua época.
            Mas depois, como uma livre mudança de mote,
            O Brasil se tornava independente e livre para sempre (utopia tétrica)
           
A identidade nativista dos setecentos e oitocentos
            Parecia mais real
            E a poesia atingiria o seu auge como nacional,
            Gerando um ímpar panteão de atormentados elementos:

Castro Alves, que deu voz aos lamentos
            Dos negros, um pranto de escravidão:
            Vozes d’África, estético ungüento,
Obra-prima sobre a servidão.

            Álvares de Azevedo, o enfermo d’alma,
            O que foi poeta, sonhou e amou na vida,
Falando de amor e de morte, sempre e sem calma,
Escarrando sangue na vigília do fim da lida.

            Que mais direi?
Fagundes Varela?
            Casimiro de Abreu? Amarga grei!
            Junqueira Freire em sua cela?

            Marília, Dirceu, Gonzaga, Tiradentes?
            Ouro Preto? Marqueses? Barras de ouro? Entrementes...
            Dói mais o exílio da Coimbra da conveniência
            Ou o suicídio dos poetas da Inconfidência?

            Chegamos ao século XX,
O mais conturbado da História.
            Uma gama variada de autores, de crueza ou requinte,
            Que ditaram movimentos inda frementes na memória.

            Manuel Bandeira, às vezes trágico, às vezes realista,
            Capta a essência do poeta, e a singela palavra...
Na Recife do passado a irreal Pasárgada, a emoção mista,
Os amores puros, os que dormem profundamente, a tuberculose macabra...

Ó chumbo nos pés que impede de voar para os céus!

            Cecília Meirelles, dama onírica e etérea da poesia.
            Irmã das coisas fugidias, a Viagem pelo efêmero que me concedeste
            Foi como uma dança sobre o Mar Absoluto da luz do dia,
            Que se consumiu na Vaga Música com que me enterneceste...
           
João Cabral de Mello Neto, o áspero canto de uma sertaneja agonia,
            A educação pela pedra, do sertão a Sevilha,
Uma Morte e Vida Severina,
            Dessas que os jornais escondem em surdina.

            E Carlos Drummond de Andrade, o enterrado-vivo,
            Melancólico solitário de uma cidadezinha mineira,
            Que foi ser gauche na vida de observador esquivo,
            E encontrou esse vasto mundo de Raimundo e fez falar a Amendoeira,
            E num Boitempo impreciso e ruminante viu a pedra no meio do caminho,
            Entre pessoas, casas e laranjeiras de Itabira, o triste menininho.

            Mais intensamente viveu Vinícius de Moraes,
            O diplomata dos amores e infidelidades,
            Dos caprichos e lirismos tropicais,
            De Itapoã, Ipanema, uísque e múltiplas vaidades.

E finalmente, nos anos 60, o concretismo:
            Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos,
            Uma poesia visual, gráfica, assassina do subjetivismo,
            Extraindo a necessária emoção dos traços pretos e brancos.

            Chegaram até a querer fazer poemas por meio de cálculos,
O que distanciou daí outro homem das palavras:
Ferreira Gullar, ainda portador do lírico báculo!
Depois Paulo Leminsky, o herdeiro das nipônicas lavras.

            Mas foi importante pela liberdade alcançada.
            Hoje praticamente não há regra.
            Escrevemos de forma rebelde ou requintada 
            E a crítica literária continua cega...

            Mas só pra terminar incluo mais três monstros sagrados:
            No Chile, Pablo Neruda,
            A sensibilidade que fez tantos estragos,
            Ao enfeitiçar com palavras de cordilheiras mudas,
            Ao empunhar o vinho, a bandeira rubra, o Canto Geral de um povo em agruras,
            E ainda de quebra arrebatar a bela Matilde e o Prêmio Nobel de Literatura!
           
            Na Argentina, Jorge Luís Borges, o decano,
            Habitante do labirinto dos sonhos em antigas bibliotecas,
            Poeta cego como Milton, o puritano,
            Fascinando-nos com ficções tão reais quanto precisamente estetas;

            E Emil Ciorán, na distante Romênia,
            Uma figura sempre tão misteriosa para mim,
            Desde que soube dele, sem suspeita, sem vênia,
            Num pequeno artigo de jornal que falava assim:

            “Poeta da morte e filósofo da amargura”,
E como eu andava angustiado,
            Encontrando na adolescência minha sombra e sua tecedura,
            Compartilhei minha dor com o velho do passado.

            Vendo aquela foto, de boné e bengala (futuro Eu?)
            Debaixo da noite, olhar ao infinito...
            Não, aquilo era mais que a tristeza do leste europeu...
            Era a tristeza de toda uma era de solidão e absinto!
           
E dele só conheci duas frases de agonia:
            Que a depressão dá a um homem
            O dom da poesia
            Sem ter o suporte do talento,
            E que devemos atentar para aqueles que renegaram ao amor,
E à vida,
            Para aqueles que se abstiveram da carne,
            Àqueles que renunciaram ao poder,
            Porque um dia eles voltarão, para retomar tudo à força...

            E nesse instante eu ouvi milhões de marchas e mil discursos de ditadores,
            E chorei, e quebrei um espelho,
            E o considerei parecido comigo, em prantos e valores,
            E suas palavras como meu rastelo.

            E mesmo não tendo ido a seu enterro,
            E nunca o tendo visto fora dos limites daquela desbotada figura,
            E só sabendo que tem um livro chamado No cume do desespero
            E outro que se chama Silogismos da Amargura,
           
            Intriguei-me e me entreguei à escrita
            De minhas memórias póstumas publicadas em vida,
            E compreendi em parte minha função in vita,
            E cantei os versos tristes do desencontro e da despedida.

            Há tantos que sentem assim...
            Tantos poetas espalhados pelo mundo...
            Uns calados, outros gritando, outros buscando o próprio fim...
            E os que mais admiro são os anônimos, flores alvas em solo imundo...

            Por eles contei uma pequena história   
            E falei do mundo encantado que conheci
            Apesar de não me lembrar de todos de memória
            E escrever por puro prazer de retratar o que vi.

            E uma vez que a rima está me cansando,
            Deixo-a por ora.
            Ela me tolhe e vai me enervando,
            E o desfecho desta peça já se demora.

            Eu brinco com as palavras,
            Juntando opostos numa antítese,
            Inventando que aquilo é aqueloutro,
            Nas minhas metáforas mais absurdas;
            Eu igualo tudo com comparações também irracionais,
            Repito sons, em assonância ou aliteração,
            Mas de quando em quando nem ao menos tenho
            Ritmo ou rima, pois não combina;
            Estou escrevendo em versos livres,
            Sem nada rimando ou metrificando,
            E não vou agora rimar jade com abade
            Porque isso é estúpido e nada tem a ver
            Com o que estou dizendo
            Só por esse motivo, apenas.

            São versos picotados
            Como a biografia dos poetas
            São versos picotados pela eternidade...

            E eles são amantes perdidos
            Buscando eternamente o enlace
            Com o corpo místico da musa
            No leito de paz derradeira que nunca chega...
           
            Cada verso é uma linha mágica
            E com quatro ou seis versos de cada vez
            Eu construo uma estrofe com vida própria.

            Sempre mudo o número de palavras
            E até de versos.
            A arte é livre, infinita e sem forma,
            Moldável, etérea e eterna.

            Minha arte é expressão pura
            De minha própria metafísica interior
            Que sobe aos céus e se abre
            Na forma de um leque de luzes multicolor.

            Atinge Aquele que habita acima das estrelas
            E cai em forma de chuva prateada,
            Respingando em cada mente aberta às minhas palavras.
            Sou tudo e todos, num só, eu mesmo.

            Mas quando abro os olhos, vejo-me no mundo real,
            Dentro do meu quarto,
            Escrevendo num caderno velho
            Com uma caneta que está falhando.

            Esperando a boa vontade de alguns editores
            Que dêem valor ao meu trabalho e quiçá o publiquem,
            Para que eu possa atingir mais pessoas...
            Seria esse o último requisito para se tornar um poeta de verdade?

            Então por que escrevi tudo isso?
            Não para me colocar entre os grandes aqui citados,
            Nem para sonhar ser grande,
            Mas para dizer somente uma coisa:
            Os poetas enxergam além,
E sentem as dores do mundo,
            A dor de viver e a dor de amar;
            E em meio à imensidão das palavras
            Eles são os amantes perdidos a suspirar!


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