segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Outono (de "Quatro Estações")

Vi folhas antes verdes, hoje pálidas,
Caindo em redemoinhos dos ipês antes floridos;
No chão, o morto espetáculo de cores antes cálidas,
Hoje nos provam a efemeridade, nos galhos torcidos.

Em tons acastanhados de inerte matéria,
Expande-se a visão de um solo decadente;
O ciclo continua e destrói a bromélia,
Faz do salgueiro morto e do cravo silente.

Preciso agora mais do que tudo
De uma musa inspiradora.
Escolhi-te, sem culpa, mudo,
Para falar-te na poesia narradora.

Em ladrilhos irregulares rastejei,
Buscando a água que nunca acaba.
Sob o salgueiro chorão também chorei;
Meu álbum de fotos no rio rodopiava.

Por uma pedra opaca enxergava
Cenas do passado remoto.
Por que a lamúria do presente espelhava
O temido futuro ignoto?

Pensar sobre o tempo pode ser perigoso,
Como uma barca rudimentar sem norte.
Em seu fictício caráter tríplice e espantoso,
O tempo é linear até a morte.

A partir daí transforma-se em bifurcação
Entre os inocentes e os condenados;
Ou melhor, os inocentados pela graça da crucificação
E os propositadamente desviados.

Longe do tempo cíclico d’outrora,
Longe do eterno retorno;
Descobrimos a Verdade, agora,
E era tão simples que bastava olhar em torno.

Um sistema perfeito em si mesmo
Que revela respostas para tudo, 
Que nunca nos deixa a esmo,
Que dita condutas até diante do absurdo.

Antigos sábios apontavam a luz,
Mas nunca deram um passo à frente.
Cegos guiando cegos, a fazerem jus
Ao seu caminhar, circular e inconseqüente.

Mas deixemos de lado o pensamento.
Pensar demais faz-nos caminhar por trilhas tortas.
Estava envolto em outono e em nobre sentimento,
Numa estrada lamacenta, pisando folhas mortas.

Folhas mortas como meu coração,
Principalmente quando estas são pisadas por teu menosprezo.
Folhas secas por tua ausência de ação,
Filhas tristes de teu covarde desprezo.

Mas é outono.
Tudo decai, inclusive eu.
Não tenho sono.
Recordo com saudade do último riso teu.

É aqui que o céu tem um azul profundo,
Com nuvens flutuando a criar formas,
Um céu que parece conter o mundo
E filtra raios solares de sensações mornas.

Impressão, rainha do momento.
Sentir, pressuposto da invenção.
Solidão, fonte do talento.
Silêncio, som da imensidão.

Não existem escolas para poetas.
Se existiram, certamente falharam.
Deve ser inata a epifania dos estetas;
Pois palavras, do ar as capturaram.

A linguagem é expressão neurológica do sagrado.
O Verbo é o meio pelo qual Deus cria.
O Universo é Seu projeto emanado,
No qual ama e jamais se distancia.

A cada vez que penso em coisas belas,
É inevitável pensar em ti,
Forma de vida clara e alva como o fado que anelas,
À semelhança etérea do querubim que ri.

Aura de noite sem vento!
Violeta de poções purpúreas!
Halo lunar argênteo!
Helena de troianas lamúrias!

Há momentos em que a beleza me invade
Como a garra de um tigre atroz.
Vendo-te, aprazível manchu, rainha de jade,
Falo o poema e calo minha voz.

Depois da chuva, é sempre como um novo dia.
Restauram-se as forças milenares do ar.
Como a nuvem em forma de menino que sorria;
Que se parecia comigo na infância a brincar.

Dancei em círculos no minuto que se findava,
Fiz ciranda com labaredas invisíveis do sonhar,
Ocultei-me do canto das nereidas, que atormentava
E fiquei ali parado, assustado diante do mar.

Que direção escolher se foi perdida a noção de espaço?
Como contar os dias se foi perdida a noção de tempo?
É incrivelmente vazio o trilho férreo por que passo.
E o amontoado de dias que vejo, incrivelmente lento.

Não mais te vi, em meu sublunar error.
Quero que fujas das heresias, antes do cair da tarde.
Chama ao meu delírio amor:
Proibido, secreto – sol esquivo enquanto arde.

Recordarei para sempre,
Mesmo que não queiras, no meu exílio.
Não importará então por onde ando ou o que faço,
Mas unicamente que precisarei do teu auxílio.

Revivido então, gostaria de, se não me condenares,
Quantas vezes, possuir-te em sonho sob o crepúsculo,
Pois teu arbítrio não poderia influir sobre meus penares,
Nem impedir-me ao dedicar-te, humildemente, o presente opúsculo.

Esperarei as bodas para ofertar-te como presente?
Não sei. Nem ao menos sei se chegará às tuas mãos.
Não sei se ainda estarei vivo para terminar o épico sorridente.
Talvez morto por dentro, como sempre, tecendo versos vãos.

Deus tudo sabe, eu nada sei.
Marchando estou entre anônimas fileiras,
Num combate que nem mesmo iniciei;
E só eu poderei contornar-lhe as trincheiras.

Sobrevivendo ou não, não importa,
Prosseguirei atrás da estrela cadente.
Guiado posso ser até a grande porta,
A que se abre apenas ao soldado valente.

Batalha grande é do que podemos chamar
A atribulada existência do cristão.
Peregrino, andarilho, beduíno a clamar,
E grande é a espera pelo juízo da salvação.

Um dia maravilhoso que sonhamos em sonho frágil;
Pois “a fé e o amor e a esperança residem todos no esperar”;
Uma existência perigosa que nada tem de fácil;
Onde, paradoxalmente, o que temos de mais belo é o que nos mandam ocultar.

Eu vislumbrei um baile de esmeraldas sobre ti;
Eu sonhei que tu estavas tão linda...
Como ave matutina ou aristocrático rubi;
Pétala outonal, canção do sempre do nunca e do ainda.

Enquanto dormias,
Eu morria um pouco a cada dia,
E dormia enquanto me socorrias.
Estavas surda, e eu tremia.

Éramos fantasmas na noite distante e veloz,
Onde éramos e não éramos, estávamos e não estávamos.
Mantenha-me vivo no pensamento e na voz.
Nunca poderei morrer nestes versos em que viajávamos.

Guarda-me frágil e translúcido dentro do peito,
E as minhas asas te envolverão,
Tal o invólucro transparente das crisálidas sobre um leito
De um rio qualquer, perdido nas vértebras da imaginação.

Mais uma vez pisarei o passado
Como se pisa em areias fumegantes de centelhas,
E tu gostarás deste fato atrasado,
E descobrirás dentro de ti o frasco de estrelas.

O bálsamo se converterá em fogo,
Transformando em sonho que se desfaz
Todas as damas mortas do antigo rogo,
E viverás em mim, como a poesia que mais me apraz.

Como se me escondesses numa caixinha de música
Da sinfonia branca dos nossos seres,
Do silêncio que tudo diz numa súplica,
Da explicação disto para entenderes.

Ainda engatinhamos e aprendemos a voar...
Quando a criança era criança tinha muitas perguntas a fazer;
E no entanto as crianças estão nas trevas a dançar;
E matar a Luz foi seu único entreter.

Às vezes, onde havia vida,
Resta o pensamento confuso
E uma ampla ferida,
Com toda carência inerente a seu estado obtuso.

Eu disse para a solidão
Que entrara no quarto pelo vento frio;
“Não penses que estamos juntos no estio...
Que com minha memória formamos um trio...”.

O que pequei foi minha escolha.
O que fiz, não o fiz por esperar ser compreendido,
Já que nunca o fui; fui uma morta folha.
Assim sempre seria, no outono ressentido.

Sei, foi um erro pessimista exagerado,
Ato de aborto da esperança,
Troquei de pele; assassinei antigos eus, enclausurado,
Foram meus erros, todos os cometemos com relativa constância.

Mas não te preocupes com minha vileza;
Dorme serenamente, plácida princesa,
Carregando no peito a certeza
De que escrevendo, imortalizo tua nobreza.

Velo teu sono ao longe
E na angústia e no suspiro e no desejo de um longínquo abraço,
Com perseverança e delicadeza de monge,
Canto docemente através do espaço.

E quando puder cerrar meus olhos, em muito pesar,
Gotas de orvalho tocarão tua face,
Favos de mel tocarão teus lábios, a procurar,
E meu espírito se despedirá em paz de teu enlace.

Nenhum comentário:

Postar um comentário