segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

História de Uma Mulher

                         Dedicado a Lygia Fagundes Telles e a Clarice Lispector

O relógio bate como pulso n’água
E adentra as horas do tempo infindo
Corre o ponteiro, a cruz de mágoa
Hoje não mais a vejo, nem mais a sinto
Talvez seja o risco de rímel nos olhos
Talvez o vestido rasgado de baile
Talvez seja a ira dos destinos inglórios
Talvez a escrita de teu corpo em braile.

Soa a primeira hora da madrugada:
Que alegria! O dia em que nasceste
A escrita, trêmula e magoada
O futuro de que te esqueceste
Foi escrito nas estrelas
Teu primeiro risinho foi imortalizado
É o livro das centelhas
Por Deus autografado.

Soa a segunda hora da madrugada:
É tua doce infância de sonhar
A mãe, a boneca, a grama espalhada
Teu sono é embalado na alegria de brincar
As coisas ganham vida e o resto não vive
Se longe do teu sonho, nada se compreende
Teu pequeno mundo, sem abismo, sem declive
Tão grande mundo, pra quem vive, pra quem sente.

Soa a terceira hora da madrugada:
Canta hoje teu jovem coração
Choras e ris, extasiada
Confusa e angustiada, perdendo uma ilusão
Eles te incitam novo palpitar
Uma esperança gera um novo afã
Fala de teus ídolos num quê de murmurar
E confessa tua angústia deitada num divã.

Que fato, destino, pacto, selo?
O desconhecido, que logo é teu dono
Uma história de rosa em teu cabelo
O primeiro amor, teu longo sono
“Por que não me enxerga?
Eu disse chega!
Não! Não!”
“Não?”
“O teu Não! Não diga não!!!”

Soa a quarta hora da madrugada:
Teus brinquedos e cadernos se rasgam
O sonho é concha concreta na enseada
Teus espíritos se condensam e se maltratam
O espinho ainda fere tua mão
E vives como flor de sangue n’alma dum ditador
Tu gritas, tu choras, desfaz-se a cama de paixão
E ainda imploras por verdadeiro amor.

Soa a quinta hora da madrugada:
Teus anseios te preparam para a lua da vontade
Nos passos de um bolero, encontraste a toada
E abraçaste aquele homem, como certeza, como verdade
A sombra nasceu da mesa, de que tiraste o pó
Nasceu das mãos, de que tiraste o pão
A luz nasceu do ventre, uma vez só
De que tiraste, com tanta dor, o filho varão.

Soa a sexta hora da manhã:
Teus dias te pesam nas costas
Os passos entortam até o amanhã
Não há uma trilha para tuas respostas
O bar esvazia: “Mas quê, mulher?!”
O mundo miragem, o marido paisagem
“Eu não quero mais ser alcova, babá, prazer, imagem!”
“Mas o que, então, mulher?”

Soa a sétima hora da manhã:
“Eu quero ser amada
Ter uma cantiga nos ouvidos
Ser com um beijo acordada
Achar um poema no chão
Uma rubrica no meu diário
Um porta-retrato saudoso e anfitrião
Uma noite completa, não um sumário.

Soa a oitava hora da manhã:
“Eu quero ser solteira
Dançar até tarde, até de manhã
Sambar na laje, viver de bebedeira
Quero viajar aos quatro cantos do mundo
Comprar tudo que me der na telha
Matar a sede no poço mais fundo
Encontrar em ti o que mais se me assemelha!”

Soa a nona hora da manhã:
“Eu quero ser meretriz
Vagar pelas ruas, pelas pontas de esquina
Deitar-me em qualquer cama, gozar feito atriz
Arranhar vagabundos, cuspir esta vida
Colhendo bêbados, tratando-lhes os piolhos
Sem rumo, sem casa, sem caráter, dividida
Recebendo o dinheiro, tapando meus olhos!”

Soa a décima hora da manhã:
“Eu quero ser freira
Reconciliar-me com Deus
Parar de falar besteira
‘Platonizar’ os olhos teus;
Eu quero pedir perdão
Achar uma cura para o sofrimento
Sem tentação, sem descontentamento!”

Soa a décima-primeira hora da manhã:
“Não, mulher, eu disse chega!”
E ela já era uma velha, maltrapilha, malsã
Diferente da nora: uma beleza grega!
E tecia eternamente, macambúzia
Jogava as cartas, num tarô, assim,
Seus lindos bordados eram já mais de uma dúzia
E mais não se fariam antes de seu fim.

“Olha aqui, eu estou tremendo
A desmanchar todo este novelo.
Só o livro de Anäis Nin,
A voz de Gal Costa, de Elis Regina
Podem cantar minha dor-de-cotovelo!”
“Por que não se foi?”
“Porque você chorava, e implorava
Recostava a cabeça ao meu seio
E então ficava”.

Soa a doce luz do meio-dia:
Finalmente nascia uma aurora
Desacordava-se, final agonia
“Sinto muito. Ela foi embora.”
Lamúria, pernas encolhidas,
Dentro do caixão se espremia,
E a lembrança: torrentes revividas
– o cadáver soluçava e se debatia –

Viagem de três dias e três noites;
Inda os clamores dos anjos, as injúrias dos demônios...
Corriam horas num relógio
Feito aves de arribação
Procurava o próprio solilóquio
Sete palmos abaixo do chão!

“Deixem-me dormir!
Só me acordem quando a vida começar!”
“Mas ela já acabou!
Não pode recomeçar!”
Mas o que é que a afligia tanto?
Esse torpe sabor de vazio?
Mas o que ninguém sabia, por enquanto,
É que seu primeiro amor causava cio.

E ele voltou e se tornou maior do que tudo,
E mais, dentro da tumba, ela tremia,
“Meu Deus! Que nefasto! Que absurdo!”
E mais e mais, mutilada, se encolhia;
Então uma voz grave, uníssono, bramia:
“A vida é assim mesmo, inconseqüente,
Um dia a maré vira, no teu dia!”
E Adelina sorriu timidamente...

Nenhum comentário:

Postar um comentário