terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O Bolinho-de-Bacalhau Antropomórfico

Foi mais um dia em São Paulo. 08 de julho de 1977.
Ninguém conhece essa história; por motivos óbvios, foi sempre “encoberta” pelas autoridades locais.
Narro-a como um observador onisciente, pelos relatos colhidos numa lixeira de delegacia do Jardim Ângela, um dos mais “barra-pesada” de nossa cinzenta cidade. Escrevo como jurista e insano, buscando uma verdadeira “autópsia” da questão, ainda hoje tão complexa a meu limitado espírito.
Tudo começou numa singela e popular pastelaria de imigrantes chineses.
O Sr. Deutério de Sampaio, 49 anos, paulistano nato, solteiro, R.G. nº. 333333-3, residente na Alameda dos Volitivos, estava cabisbaixo.
Místico pela própria natureza, resolveu acreditar em numerologia. No tão esperado dia 07/07/1977, apostou tudo o que tinha no Jóquei Clube, no cavalo número 7.  
E não deu outra: sétimo lugar!!!
– Maldição! - gritava o homem exasperado. Era tarde demais.
Com as moedinhas que lhe restavam no bolso, comprou um bolinho de bacalhau na referida pastelaria. O aroma era tão sedutor, que lhe inebriava, como se fosse das mais originais receitas culinárias lusitanas.
Aproximou o quitute às narinas famintas de mais estímulos, e depois mordeu. Mas mordeu com raiva, com paixão, com uma excitação quase sexual. E ouviu o grito – o grito de ninguém na estampilha do nada!
Desistiu de comer. Parecia-lhe uma voz tão pungente...
Como se saísse das entranhas de sua alma pobre e servil, do esmalte de seus dentes, das papilas gustativas de sua língua agridoce e febril.
Tapou os olhos com as duas mãos, e começou a chorar feito uma criança perdida. Olhou para o prato. O bolinho desaparecera...

           Naquela tarde, havia uma dor ambulante, que ninguém compreendia, que não tinha voz, não tinha identidade, que nada compreendia à sua volta, a não ser o peso e o negrume doloso daqueles olhares frios e doentes.
Alguém gritou, perplexo:
– Olhem! Um bolinho de bacalhau correndo, com perninhas!
Foi um tumulto geral. Todos queriam pegá-lo, vê-lo, pisá-lo, apalpá-lo.
Um cão pôs-se a persegui-lo; mas como ele corria, oh!
E correu, correu, correu e correu mais, e mais e menos, e menos, até parar para descansar, vinte e dois anos depois. Seu peito arfava. A língua quase saía para fora da boca. Só que então? O que significava? Bolinho de bacalhau? Entranhas de peixe morto? Nascido de uma fornalha? E que estranha consciência era essa que possuía? Sabia de tudo e não podia mudar sua dor insuportável?!
          
Ainda por cima tinha razão, sentidos, olhos, boca, nariz, pernas e mãos para sentir, identificar e acariciar. Como um homem. Antropomórfico!
Disso se regozijou muitíssimo.
Todavia, tudo o levava a pensar: “Quem era? De onde veio? E por quê? Quando morreria? O que faria enquanto estivesse vivo?”
Suas divagações ecoavam pelo beco onde se encontrava, quando se aproximou uma figura estranha.
Um rato enorme estava a observá-lo com claras intenções.
O rato pensou alto e disse:
– Pára de pensar perto de mim. Estou fazendo cálculos há tanto tempo com o castor e com minha esposa, que sou sensível a qualquer raciocínio em todo o mundo dos vivos. Agora me responda, caso queira continuar vivo: qual a resposta final? Aquela de que Einstein quase chegou perto? Decifra-me ou te devoro!
– Mas de que fala, rato estúpido?
Sua salvação foi a fêmea do rato ter chegado.
Percebeu logo que era fêmea pelo tamanho gigantesco da reentrância vaginal, já que para ele todos os ratos eram gigantes. E ela disse:
– Descartes, deixe-o em paz, amor! Esse pequeno Frankenstein não merece nossa atenção.
“Frankenstein? Por que diabos falava aquilo?”, pensou.
Era melhor parar de pensar. E de novo sebo nas canelas! Só correu...
Tropeçou...
Doeu...
Acordou meio babado. Na boca de um cão Labrador.
Foi colocado cuidadosamente no chão.
Sentiu a terra vermelha e a grama pela primeira vez. Descarregou seus elétrons, sentiu-se unido a tudo, banhado pelo Sol, eterno, despido, confortável, supremo. Seu cerebrozinho tinia feito fagulha. Um impulso percorria sua medula espinhal, explodia no ventre, no órgão genital, seus músculos se contraíam todos; sentiu um orgasmo.
Ainda bailavam em sua visão estrelinhas amarelas e roxas, quando uma voz rouca estremeceu tudo:
– Spinoza! Spinoza! Vem, cãozinho do papai!
E para completar a cena sarcástica, uma menininha muito atrevida, que devia ser a filha do cara de lá, começou a brincar com o aspirador de pó da casa.
Foram sugadas folhas gramíneas, sementes, pólen, pedrinhas, pó, seu próprio esperma então invisível, ele mesmo e tudo mais.
Estava quase morrendo sufocado, tossia, esperneava.
Ele espirrou. O espirro ecoou dentro da máquina sugadora. A menina abriu a tampa e começou a chorar convulsivamente.
Tudo bem, nada mais compreensível, por seu primitivo estágio de evolução mental. Mas era só o que lhe faltava! Uma gigante boboca e medrosa!
O pai logo acudiu, querendo ver o que era. Jogou o conteúdo do aspirador num saco de lixo, atirando-o lá fora.
O caminhão da prefeitura recolheu tudo. E que nova luta surgia!
Aquela coisa lá dentro... Triturando tudo!
O Bolinho-de-Bacalhau Antropomórfico (sim, porque todo ser vivo merece nome próprio!) nadou e se segurou na primeira barra de ferro que encontrou.
Pulou para fora do caminhão e se machucou um pouco.
Foi cair em pleno aterro sanitário, em meio à montoeira de lixo.
Mas passara a encontrar beleza mesmo ali. Viu que detrás de toda pedrinha havia uma montanha, e detrás da montanha um arco-íris e assim por diante.
Tudo que parecia concreto em nossos sentidos provinha de algo muito maior e indefinível.
Um menininho com cara de esperto sorria sarcasticamente. O menininho tinha cara de Esfinge de Gizeh com o poder dos três faraós, sempre três: Quéops, Quéfren e Miquerinos. O menininho estava aprendendo, muito a contragosto, a falar uma nova língua, e gostava de brincar com as palavras:
– Mc Donald’s? Microsoft? Max Scheller! Max Scheller!
Ele viu a cara de Esfinge e se lembrou do “Decifra-me ou te devoro!” que ouvira do rato nesse mesmo dia, e novamente fugiu.
Entrou numa pastelaria. A mesma pastelaria onde tudo começou!
De dia, escondia-se atrás da caixa registradora ou debaixo das mesas, com muito cuidado para não ser pisoteado.
Mas à noite, quando todos saíam, ele também saía de sua toca.
Foi quando avistou a deliciosa esfiha de frango com catupiry.
Apaixonou-se repentinamente.
Sempre a beijava com ternura, abraçava-a, deitava-se sobre ela.
Mas por que tudo parecia tão unilateral?
O real com o sonho? O sexo com a masturbação? Tudo como beijar uma parede e bater com a cabeça contra ela? Meu Deus, por quê?!
E numa noite lancinante, fazendo amor de forma agressiva, ele viu que a esfiha se rasgava por inteiro, e uma avalanche de requeijão cremoso inundou o chão daquele estabelecimento comercial.
Ele percebeu, enfim, que ela nunca adquiriria a consciência que ele tinha, e resolveu partir.
Com o coração desfeito em fragmentos sanguinolentos de memória, ele vagou pela metrópole despreocupadamente.
Vislumbrou por um momento a diferença entre os homens. Viu que alguns eram pobres e outros eram ricos, e o seu sangue subiu todo à cabeça.
Ficou vermelho de raiva, tão vermelho, que percebeu que o vermelho não era coisa de igualdade, mas cor de sangue derramado.
E por isso mesmo, passou a caminhar de uma forma muito lenta, sem ter mais qualquer outra idéia que prestasse.
Tudo era tão triste, mas tão triste, que a Sonata ao Luar de Beethoven começou a tocar em seus ouvidos, e uma pluma gigante caía do céu, patética, “apassionata”, para acariciar seu rosto também com ternura, enquanto que uma estrelinha verde era a única coisa a brilhar por entre as nuvens!
Um homem magro, paupérrimo, vestido com um paletó muito amassado e uma gravata em frangalhos - o resto do corpo nu - e que já tocara no Teatro Municipal, interpretava um trecho da Nona Sinfonia, também de Beethoven.
Ele chorava, tocava o violoncelo e cantarolava; tudo ao mesmo tempo:
Freude, schoner Götterfunken...
Freude? Freud? Então era isso? Freud explica tudo! Ele era mau e egoísta!”
Destarte, pôs-se a dançar num ritual estranho, e pediu ao deus Tupã para que enviasse chuva e calamidade.
Fechou os olhos, imaginou-se abraçando o mundo até esmigalhá-lo.
O chão começou a tremer, tempestade de raios e trovões, as pessoas morriam.
De repente, alguém bradou do meio da multidão:
– Olhem! É ele! Ele é o culpado de tudo! Chamem a polícia!
E virando-se para trás, desesperado, teve a visão mais linda de toda a sua existência: sua amada, antes sem vida, agora portadora de consciência, a lhe dizer:
– Foge, Prometeu Acorrentado! Logo entrarás em estado de putrefação, e não obstante, o amor que me juraste é eterno; e só será eterno se tua vida também for eterna! Foge, Prometeu aprisionado no Cáucaso, com tua tocha das mil verdades! O ser humano ainda não é capaz de compreender seu salvador!
O Bolinho-de-Bacalhau Antropomórfico, tão ciente de si, tão feliz por saber que seu sonho de amor se concretizou, porque amou, lutou e a teve em seus braços, apenas obedeceu.
Correu, correu, correu. Ouviu o Parsifal de Richard Wagner e comandou um navio viking até a outra margem do rio.
E lá correu mais um pouco.
No caminho, as pessoas que o observavam pareciam ter um ar de lamento, como se entre os seus dentes amarelos sussurrasse por vontade própria um pedido de socorro a chorar “por favor...”.
Parou perto da sarjeta, quando viu o miserável.
Sentiu compaixão, de forma plena.
Viu que o outro estava com fome. E estava cansado de fugir.
O medo que alimentara por toda a sua vida, de ser engolido, devorado, como um bolinho de bacalhau deve ser, não se fazia mais presente.
Entregou sua vida ali mesmo.
Viu com repulsa que era coberto com catchup estragado, mordido, envolto em saliva, engolido, deglutido, despencado, até o fundo do estômago.
Ali mesmo viu no ácido a sentença de seu fim, calando-se em prol de tantos que gostariam de falar tantas besteiras; e migrou para os intestinos, e para o meio externo.
O Bolinho-de-Bacalhau Antropomórfico é agora um monte de despojos, numa esquálida instalação sanitária.  
O referido é verdade e dou fé. Juntem-se aos autos do processo.



 
               

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