segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Poema da Irlanda do Norte

“Vem, humana criança, ao folguedo!
Para as águas e para o arvoredo
Uma fada te traz pela mão,
Pois no mundo há tristeza demais para a tua compreensão”.
                                                                                                        W. B. YEATS


          I

Rememorar pedaços de mármore sobre os estilhaços da minha alma,
Guardar com cuidado a carta que nunca foi escrita,
Pois ela diria o que nunca poderia ser dito
(O que nunca poderia ter sido).

Veja, como é bela a poesia,
Como é caro e insuportável o preço que tive de pagar por ela;
O caminho sem volta, o coração apressado é descompassado e despedaçado.
Mas manda a morte esperar mais um pouco, muito.
Há ainda quem precise revelar sua vez de me matar.
Há ingressos reservados na bilheteria do escárnio.
Eles precisam pisotear meus sonhos até que deles não reste nem o pó da esperança.
Eles precisam sorrir enquanto passo carregando o fardo,
Eles precisam ver a cruz que carrego sem poder trocá-la pela coroa da vida,
Pois me falta o conhecimento do que seja vida.
Só o tenho da morte, a morte em vida, que é mais fúnebre.
Elas precisam soltar seus gracejos e gargalhadas,
Pois o palhaço está em cena a declamar o poema,
O palhaço a chorar e borrar a maquiagem
Como um cão a quem se nega a máscara da sociedade humana.
Elas precisam tecer a mortalha da alma do ser:
O ser pungente que desfalece sem ser visto ou ouvido.
O ser não é cego.

Elas precisam quebrar suas asas,
Seu sangue será extirpado
E a humilhante balbúrdia se levantará
Como a podridão dos túmulos.
Elas precisam desprezar os lirismos presentes em tudo
– Ele saberá.
O jogo está preparado desde o início.
A comédia prossegue.
(Só o protagonista é quem não acha graça...).
Elas estão muito felizes
Nos braços de quem as tem
E o artista, humilhado em seu espetáculo do ridículo
Tem o vento para abraçar
E as trevas caridosas que o receberão entre as pernas
– Único jugo de cavalos raquíticos que correm sempre fora de hora...

Que horas são?
Meu coração se aperta dentro do peito.
Como uma concha vazia.

Você guardou meus sonetos?
Os livros com meus poetas favoritos?
Você é capaz de sentir a música quando eu a sinto?
De estremecer com a pele recoberta de lágrimas e febres intermitentes
Quando o mesmo acontece comigo em minhas preces noturnas e decepções [matinais?
Você prevê que eu gostaria que tudo terminasse para sempre?
Você pode cuspir ou oscular meu rosto pálido quando desperto atolado 
[no pranto de uma madrugada inteira?
Dance para mim, bailarina, em seu lago de cisnes imaginários, quando ninguém está [olhando.
Catequize-me com os livros a mais de sua Bíblia católica,
Para que eu me esqueça ao menos hoje
De que sou um protestante com um amor proibido.

Dispo-me agora para pecar em meio à inocência mais santa,
Possuindo a alma estática do vazio que me surpreende,
Quando abraço meus sonhos e meus fracassos.
Posso bramir o indizível com meus lábios em sua testa
Na despedida mais terna e casta possível.
Posso mentir e guardar isto em segredo até a morte.
Posso trançar meu destino com a solidão contemplativa
Ou com outro alguém, sem deixar de representar.
Posso representar sorrisos de congratulações no seu casamento
Com quem irá possuí-la segundo a lei e o entendimento de Deus.
Posso chorar sem que ninguém saiba,
Por não vê-la nunca mais,
Por vê-la sempre,
Por saber que me esquece,
Por saber que me encanta,
Por saber que não sabe,
Ou por saber que finalmente descobriu,
Ou que sempre soube.

A menina de louça e os anjinhos de porcelana são brinquedos que lhe dei,
Que enxergam com meus olhos
E carregam meu coração como um trem que os leva para longe.

Só que você vive em mim.
Já é uma cantiga que cantarolo tristemente.
É morte que invalida os passos de minh’alma.
É vida.
Minha vida.

Vive em meus braços o reflexo de seus movimentos de repulsa disfarçada,
Quando abandono a festa do piso inferior
E fecho a porta atrás de mim, para ver minha coleção de moedinhas,
– Tornar-me pequeno como elas
E chorar para desenhar pássaros e flores no assoalho de madeira
Com a água salgada de olhos antigos,
Antigos a fitar a janela.

Quando me lembro de tudo que deixei para trás,
Nos rostos, nas ruas, nas árvores de Natal
E em tudo o mais,
Vejo que da festa nunca fiz parte.
Lá estive como um poste de luzes apagadas
E a vida passou como nunca quis que ela passasse,
O barulho nos trilhos era cruel e implacável,
Os duendes e pirilampos que separei para você
Não dançam ao seu redor,
Pois não posso ordenar-lhes que mostrem sua face entre o brilho eterno,
O brilho eterno do meu amor,
Pois já não vivo.

Não vivo, mas vejo.
Mas o que vejo?
No seu rosário minha frutificação.
Aspergir do plenilúnio, afagar-se,
Morrer de tédio no recôncavo lunar,
Submergir a todo vapor de fúria, luxúria e loucura,
Estar-se a deitar na multidão sombria,
Sobrevoar sem asas o abismo e não cair nunca;
Olhos que embriagam a mente
E sobrevivem sem um rosto,
Pele de anjo maduro da pluriexistência,
Reflexo de galáxias ao espelho,
Luzes da última noite de esperança,
Graça e dança sinuosa e face e encanto:
A única face do encanto.

Vinho de emulsões de estrelas,
Facho de luz, momento sereno, pranto, glória,
Parte do exílio do jardim dourado,
Do arco-íris, do cativeiro ilhado,
Donde fogem pássaros multicoloridos em todas as direções
E trazem ramos entre os bicos e preparam poções
E renascem na relva como pétalas de um diamante
Reluzindo, reluzindo na madrugada sem fim,
Levam meus sonhos e minha oração calada a seus ouvidos,
Como única forma de dizer
Que quem julgou não mais ter o direito de amar
(Por já se julgar morto),
Agora revive, por um único instante,
Para lhe trazer esta rosa e dizer
O que há muito tempo se diz,
Mas nunca deixou de ser um poema: Eu te amo.
  
II

Na noite estrelada que se cala,
Longe da Bizâncio de Yeats,
Na odisséia cotidiana de Joyce,
Na doce fábula de Oscar Wilde,
Meu peito repousa em rude vala,
Após nefasto diagnóstico e constatação:
Eis a sina e a cinza da opressão!         
           
III

Eu sei que nesta noite até os anjos choram
E a neve recobre sonhos até sufocá-los.
Eu sei que a névoa circunda os olhos de quem chama
E as lágrimas embalsamam o corpo do amor findo.

Eu sei que o vento não encontra resposta
E que os restolhos navegam sem direção.
Eu sei que o canto da montanha é mais fúnebre agora
E que não há um único canto em paz dentro do meu coração.

Eu apenas vejo... minto... sinto,
Sinto, na verdade, que a cura não foi encontrada ainda
E que a tempestade que bate com ímpeto à porta
É uma tentativa desesperada de dias de sol.

Abri a porta.
A tempestade assassinara a esperança.
O amanhã nunca chegará,
Pois o passado adormeceu o presente.

Com o pranto contido em meus olhos,
Eu vi caído aos meus pés um cadáver:
A possibilidade de amar – era seu nome 
E apodrecia com todos os cadáveres de mulheres que jaziam dentro de mim...

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