terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Sobre a Justiça (excertos)

Justiça, Justiça!
Que palavra é esta
Que no humano jugo a esperança planta;
Que ao Divino por Si se imanta;
Que aos desprovidos de Si quebranta?

Que a todos apregoa viver honestamente;
Que a todos quer pagar devidamente;
Que a todos se isenta de ferir gravemente?

Se ainda és a deusa dos olhos vendados
Para não enxergar teus favoritos;
Se empunhas a temível espada
Para punir os malditos;
E se és a deusa que porta a balança
Para pesar os argumentos;
Por que permites que manchem de sangue
Tuas alvas túnicas
E que te obliterem com montanhas de papel
Que só te ocultam as tenazes súplicas?

Os vikings te chamaram Forsetti:
Um deus monótono que ninguém ouvia.
Os gregos: Têmis, Diké,
A quem se louvava, mas pouco se obedecia.

Mais tarde te atribuíram a Deus:
O coração de Deus no coração do homem;
A eternidade na contingência do transitório;
A tradução do valor do espírito no mundo das concretudes;
Eras então mais bela e mais virginal ainda.

Dessacralizada, inda guardavas a nobreza
Daquilo que não sendo celeste é ainda indispensável
E faz parte dos cotidianos afazeres do homem
Para que o próprio homem inda viva e faça.

Seja acreditada de um Direito Divino,
Seja razoavelmente justificada em Direito Natural,
Seja diminuída e impressa em Direito Positivo,
Formalizada e amordaçada no Estado Liberal.
Ou talvez tingida de vermelho no Estado Socialista,
Ou híbrida e demagoga no Estado do Bem-Estar Social.

Ainda és adornada da coroa áurea de esperanças,
Das mãos ásperas de terra,
Dos braceletes resplendentes dos séculos
E do pingente lacrimoso das desilusões.

Seja no topo das pirâmides das Constituições
Ou mais abaixo, nos vagarosos trâmites das leis ordinárias,
Ou nas diuturnas burocracias das portarias e resoluções,
Ou nas ações propostas contra as medidas arbitrárias,
Na tradição das leis do civil law
Ou no primado do precedente do common law,
És ainda a desejada das nações
E a musa-profetisa dos tomos históricos
Que sustenta o espírito humano em austeros templos dóricos.

(...)

Talvez o caro leitor
Conflite sua lamúria oprimida
À minha ode tão quimérica,
Achando graça nos portentosos elogios
A uma realidade tão diferente e tétrica...

Não entendes o que digo?
Não te espelhas a realidade?
Sei o que pensas, amigo:
O conflito do sonho co’a fatalidade!

A culpa, de quem?
Da mercantilização dos cursos de Direito?
Da enxurrada de profissionais sem jeito?
Da vil colonização de um país mal feito?

De fato, advogados há que só procrastinam
E interpõem agravos como quem troca de roupa
Outros da indenização do cliente se apropriam
E nos jornais de classe discursam com coerência tão pouca...

Há alguns cartorários que só fazem uma juntada nos autos
Pagando-se-lhes um cafezinho e coisas tais
E alguns oficiais de justiça que uma citação
Só o fazem por trezentos reais.

Outro dia deu no noticiário
Que um promotor de justiça
Douto representante do Parquet
Preferia em verdade diverso métier
Sendo guardião de órfãos, idosos e consumidores
E titular da ação penal contra os infratores
Encostou o carro em plena luz do dia
No encalço de uma menor que se vendia
E sem fazer cerimônia de criar má-fama
Perguntou-lhe quanto era o programa.

Inda outra noite noticiava-se
Que um juiz de direito dava início
A uma quadrilha de venda de sentenças
E se gabando de ser vitalício
Mercanciava ainda outras pertenças:
Habeas corpus, alvarás, mandados de segurança,
Liminares, penhoras on line, fianças.

Sei que me interrogarás
Se se pode confiar em fonte tão exangue
A imprensa – sempre tão orgânica –
Que só gosta de lágrimas, esperma e sangue;
Que costura como quer a opinião pública;
Que ergue a todo momento um novo bode expiatório;
Que ofende o princípio da presunção de inocência
E o princípio do contraditório.

Mas aceita o relato de um desiludido
Que após exercer por cinco anos seu ofício mísero
Inda retém com orgulho a carteira vermelha
Porque acredita na prédica de Cícero;
Que mesmo tendo escolhido a docência com exclusividade
Por ser seu único verdadeiro talento
Ensina aos moços a beleza da Ética e da sobriedade
E explica-lhes a Lei e seu nobre intento.

Ouve o testemunho de quem muito viu
Com jovens olhos cansados;
As provas de quem pouco sorriu
Por adquirir o siso precoce dos jurados.
  
Já vi empresários e seus mundos a cair
Na Vara de Falências e Recuperações.
Já vi estáveis e ternos laços a ruir
Na Vara de Família e Sucessões.
Já vi gente enfartar
Ao receber intimações.
Já vi sonhos de uma vida inteira leiloados
Na hasta de pregões.
Já vi empreendedores sérios
Barrados em licitações.
E vi candidatos aptos em concursos
Não passar por falta de pistolões.

Eu já vi belas jovens causídicas
Subir de posto ilusório
Ao descer à cama adulterina
Dos donos do escritório.
Já vi office boys sem compaixão
Cobrando reembolso a mais do valor da condução.
Já vi secretárias fofoqueiras
E estagiárias mexeriqueiras.
Já vi folhas de pagamento
C’um salário líquido nojento
E meninas de RH constrangidas
Por estarem no mesmo barco suicida.

E assim enforcado por gravatas,
Medindo cada palavra em meio a um vespeiro;
De braços atados por ternos caros
Que me levavam o ordenado inteiro;
Ouvindo ao telefone berros de clientes passionais,
Correndo feito louco com os prazos processuais;
Eu sonhava entre audiências
Com o dia em que minhas preces seriam ouvidas
E fantasiava, entre petições,
Sobre as noites em que novas poesias seriam redigidas.

Hoje derribei das costas o grande peso
E construí nova vida para mim
Mas mantenho tímido o último farol aceso
A acreditar que a Justiça não teve fim!




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